Encenador e produtor, Filipe La Féria é um dos nomes mais influentes do teatro português, reconhecido por criar espetáculos populares que combinam emoção, música e espetáculo visual. Nesta entrevista, passa em revista a sua carreira, o amor pela profissão e também o papel e a importância da cultura na sociedade portuguesa.
Iniciou a sua carreira na década de 60, durante o Estado Novo. Como foi começar a fazer teatro num contexto da censura?
Ainda há censura [risos]. É uma censura mais sofisticada. Infelizmente, agora tornou-se moda uma censura dessas novas filosofias punk, que é tão estúpida como a outra. É sempre horrível, um criador não pode ter censuras. Um artista está sempre a favor do que é humano, sobretudo a favor da liberdade de pensar, de sermos felizes, de podermos estudar, de podermos viver este milagre extraordinário que é a vida. As censuras são sempre algozes para a nossa vida, nós temos de ter a coragem de lutar. Era preciso ter coragem para lutar e muitas pessoas sofreram com isso (…) Foi Eva Perón, que eu fiz na Casa Comédia, a primeira peça a ser censurada após o 25 de Abril, porque era contra o peronismo. Um dia a ensaiar, estávamos com o Mário Viegas, a São José Lapa e entra o embaixador da Argentina e diz: “se os senhores fazem esta peça, a Argentina não vai exportar nem carne nem trigo para Portugal”.
O teatro é sempre uma arte de liberdade, porque é a palavra e a palavra é sempre perigosa (…) Não há nada que seja tão sublime como o teatro, porque ao contrário das televisões e das redes sociais, é a arte de um ser humano a falar para outro. Não há nada mais bonito, é uma arte para os outros, um espelho de nós próprios, do nosso mundo nos outros.
“Acho que o 25 de abril não chegou totalmente à cultura”
Durante a democracia sentiu maior liberdade de expressão?
Sempre tive dificuldades, este teatro não tem subsídios… Sempre levei um repertório a olhar para o público, não para o umbigo. Em Portugal a arte faz-se muito para uma elite. Acho que o 25 de abril não chegou totalmente à cultura. A cultura agora faz-se para elites, é essa que tem dinheiro, é essa que tem o subsídio. O povo se esquece. Eu não, faço teatro para toda a gente, para o povo, que, felizmente, aqui esgota diariamente, de terça a domingo as lotações do Teatro Politeama.
Com o crescimento das tecnologias e a facilidade do acesso ao entretenimento, chegou a pensar que o teatro poderia estar perto do fim?
Não. O teatro nasceu no homem primitivo, o homem das cavernas tinha necessidade de olhar para o mundo e perguntar o que é isto. Nas civilizações de agora, no século XXV, as tribos ainda fazem os seus teatros. O teatro é sempre a arte de chegarmos à nossa alma e também à grande interrogação que o homem faz deste mundo, do que não conhece, do cosmo, do que ainda tem tanto e tanto para descobrir.
Acredita que o teatro pode contribuir para mudanças sociais no contexto atual?
O teatro cria ao espectador interrogações. Por exemplo Fátima é um espetáculo que cria interrogações. Não quer dizer “aquilo é verdade, aquilo é mentira” (…) O teatro faz-nos pensar. Ao entrar no teatro, vai sair diferente, é isso que o teatro deixa no cérebro, uma pequena interrogação, uma pequena mancha que até pode modificar a sua vida.
“Para dominarmos a tecnologia, temos de ter cultura”
No coração de Lisboa, o Teatro Politeama é uma casa muito antiga. As paredes contam décadas de história e no palco vemos inovações tecnológicas, inclusive a possibilidade de legendas. De que forma a tecnologia ajudou a manter a cultura do teatro?
Sou a favor da tecnologia, estou apaixonado pela inteligência artificial. Para dominarmos a tecnologia, temos de ter cultura. É um jardim que se abre, uma floresta maravilhosa para descobrir, mas temos que estar preparados, não perdermos-nos naquele labirinto. Pode ser um labirinto e pode ser um caminho para o sonho.
Hoje o teatro compete com as plataformas digitais. Qual é a estratégia para tirar as pessoas do ecrã?
É diferente. Na plataforma digital, estás sozinho num quarto. No teatro, é um convívio. Não há nada mais forte do que o espetáculo ao vivo. A arte tem que ter vida e a vida só merece a pena viver se nós vivemos com os outros. Tudo o que nos reduz à solidão, a nós próprios, olhamos como Ícaro sempre para a nossa imagem, e esta a gente já conhece, mas às vezes não. Lembro de uma frase da Fernanda Montenegro, muito interessante, que ela diz: “o teatro fez-me conhecer a mim própria e quando conheci, quis fugir”. Dizia o Federico García Lorca que o teatro é sempre o barómetro de tudo o que acontece num país. Ainda agora vim de Londres, e vi dez espetáculos, e refletem o tempo que vivemos. Mesmo os musicais e as comédias, refletem este tempo de abismo que estamos a atravessar.
“O grande figurino do teatro é o ser humano”
Na peça A Bela e o Monstro, os figurinos transformam pessoas em objetos. Como foi o processo criativo de figurinos que se transformam em objetos?
O figurino é essencial no teatro. Nesta produção de A Bela e o Monstro, são as figuras humanas que se transformam em objetos. É um trabalho de José Costa Reis e está muitíssimo bem executado. É maravilhoso e só por isso vale a pena ver. Essa parte dos figurinos é uma obra-prima. Os atores, coitados, já vão para as 300 representações, andarem duas vezes, indo em dezembro e em novembro, às vezes seis vezes, com aquilo vestido todo o dia. É uma parte muito interessante e que cada peça tem os seus figurinos, não é? Mas o grande figurino do teatro é o ser humano.
Durante o ano é possível encontrar, espalhados pelo país, cartazes a publicitar as peças. Qual é a importância da publicidade para o teatro?
Muito. É transmitir às pessoas para não esquecerem. Ontem abri a televisão e estávamos quase com cinco canais de futebol. É muito difícil divulgar uma peça. A divulgação é muito cara e tem que ter uma invenção diária para chegar aos outros. A minha filosofia da vida foi fazer teatro para os outros, para o grande público. O teatro não é uma arte de elites, é para chegar ao coração de todos. Não se pode encerrar em si próprio. Não se pode fazer teatro só para o nosso umbigo. (…) A grande função é abraçar a cidade. Ainda bem que o Politeama está no coração de Lisboa para todos virem aqui. Nós não o representamos só para Lisboa. Representamos para todo o país e para muitos estrangeiros. Está agora a haver um fenómeno que muitos estrangeiros vêm a ver, sobretudo, Fátima.
Como consegue dirigir e conciliar grandes produções de diferentes géneros durante o ano?
Tem que ser. Isto é um transatlântico. À tarde é a Bela e o Monstro e à noite está Fátima… Isto é uma grande empresa. Uma grande empresa sem pilares para ser uma grande empresa. Nós só conseguimos à força de muito trabalho.
“O teatro, para mim, é eterno”
Tem sempre o mesmo olhar para as diferentes peças ou surge um “Filipe menino” para outras?
A minha paixão para o teatro veio de criança. Gosto muito do teatro para crianças, embora deteste que digam “teatro infantil”. É teatro para a família toda. Para A Bela e o Monstro às vezes há muito mais adultos que crianças. O teatro é uma arte e a criança percebe muito bem o porque é a arte do faz-de-conta. Costumo dizer que os meninos são todos bons atores. Em Fátima são geniais. Eles são como a Alice, passam para o lado do espelho com toda a facilidade. Depois, com a vida, com preconceitos que adquirem, com as dificuldades e a dor, torna-se mais difícil nós darmos o salto para o sonho. Mas as crianças não. “Faz de conta que estamos numa floresta” e eles vão e fazem tudo da floresta, veem bichos e pássaros no ar.
Como gostaria de ser lembrado no teatro português?
A mensagem da minha vida foi sempre trabalhar para uma arte que gostei muito, que sempre vivi. Sempre fui um homem de teatro. Basta ver os outros espetáculos de muitas gerações, porque trabalhei com todas. Convido-os também para vir para o curso de teatro do verão, onde eu vou buscar sempre jovens atores. O teatro, para mim, é eterno.