Escritor, antigo jornalista, cronista em títulos como Visão, Expresso e Diário de Notícias, criador do podcast “Sem Barbas Na Língua”, guionista de séries como “Até que a Vida nos Separe” ou do êxito internacional “Rabo de Peixe”, Hugo Gonçalves, de 47 anos, fala-nos acerca do seu percurso e de Revolução, o seu mais recente livro.
Quando começou o seu interesse pela escrita?
Bem, acho que desde muito cedo percebi que gostava de escrever. Na adolescência, comecei a conhecer alguns escritores como Saramago e Lobo Antunes, alguns poetas, como David Mourão-Ferreira e Al Berto. Mesmo antes da faculdade já colaborava no jornal do liceu e no jornal regional. Mais à frente, já no curso de Comunicação Social, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, tornou-se claro que seria uma profissão.
Considera que a formação em Comunicação ajudou-o a ser melhor escritor?
Não sei se o curso em si, mas claramente o trabalho como jornalista. O curso era muito teórico e não me ajudou a escrever melhor. Além do jornal da faculdade, quando comecei a minha vida profissional, aí sem dúvida que o jornalismo foi uma escola muito importante. Cria uma forma de ver e de pesquisar o mundo. Dá-te ferramentas, curiosidade, saber onde deves procurar a história, como contá-la. Senti-me sempre inclinado para fugir ao jornalismo diário e procurar um formato mais longo e profundo.
Exerce diversas atividades. Existe uma com que mais se identifica?
Não sei… mais do que tudo, a oportunidade de fazer várias coisas, o risco de as fazer e o prazer das mesmas sempre foi algo que me cativou. Sempre as vi como um privilégio. Tanto posso escrever uma crónica, como já fiz, como posso escrever um livro ou um guião de série, isso é uma felicidade. Diria que gostando de todas, é como ter filhos, não convém dizer que se tem um preferido. Mas aquela que me extasia mais é a escrita de romance, como o meu novo livro Revolução.
No livro Revolução, aborda a história de uma família no fim do Estado Novo e início da revolução de abril. O que simboliza este livro?
No livro há uma personagem que é o Ricardo Walker. É um jornalista, filho de uma portuguesa e de um inglês que escreve para jornais britânicos e vem fazer a cobertura da revolução. Como tal, tem o distanciamento necessário para poder fazer uma análise menos apaixonada e menos enviesada do que os portugueses. A determinada altura, ele diz a uma das personagens: “O direito da liberdade implica o dever de memória.” Embora o meu objetivo fosse escrever sobre uma família, claro que o plano de fundo eram os últimos anos da ditadura, de um sistema autocrático com quase 50 anos. As dores de crescimento e a metamorfose de um país, à medida que uma família também muda, todo esse processo acelerado pelo processo revolucionário. A ideia de podermos olhar para trás e ver o que Portugal era em 1974, antes da revolução, e naquilo que se tornou, é importante pois é muito fácil esquecermo-nos. Há aquela frase do Mark Twain, um escritor americano, “a história não se repete, mas rima”, e quem esquece o passado arrisca-se a repeti-lo no futuro. Eu não escrevo livros como um ativista, escrevo romances, sou um ficcionista, portanto, não escrevo livros para mudar o mundo, escrevo para entender o mundo.
Acredita que este tema poderá, de certo modo, aludir aos tempos que avizinham Portugal?
O livro tem alguns ecos do presente. É verdade que durante o PREC as pessoas estavam muito polarizadas e era tudo muito preto no branco, os motivos da polarização de hoje são diferentes, são menos válidos. Quando aconteceu o 25 de abril, Portugal tinha perdido um pouco dos movimentos de libertação dos anos 60. Não só havia urgência de recuperar esse tempo, como havia necessidade de reparar, as pessoas estavam ressentidas, tinham estado oprimidas. Hoje, essa polarização tem motivos diferentes, não só de algum mal-estar social, mas também muito a ver com o uso da tecnologia. Antigamente, as pessoas saíam para a rua e iam-se manifestar, hoje, as pessoas fazem ativismo em casa. Eu não sou contra a tecnologia, traz coisas brilhantes, mas a utilização da maioria das pessoas é mais de obediência e quase de escravatura do que propriamente de utilizar em favor de crescimento, sabedoria e sensatez. Então acho que sim, há ecos desse tempo atualmente, na questão da polarização e tribalização, e na ascensão de movimentos radicais e extremistas. É muito fácil, quando nós estamos zangados, sermos mais vulneráveis àqueles que gritam e fazem promessas fáceis para problemas complexos, os populistas. O facto de as instituições não estarem a funcionar na perfeição não significa que ela tenha de ser destruída, nós temos uma democracia cujas bases são sólidas, cuja constituição é uma das mais modernas. As pessoas tendem a romantizar e, às vezes, esquecem-se que a democracia exige compromisso, todos os dias tem de ser trabalhada.
Já publicou desde romances a relatos biográficos e ficções políticas históricas. Qual das suas obras foi a mais desafiante até agora?
É um lugar comum, mas será sempre a próxima. No outro dia, alguém me disse “todos os teus livros são diferentes” e isso para mim foi um enorme elogio. Mais do que encontrar uma voz coerente, eu tento que cada livro seja um desafio diferente. A ideia de estar sempre a contar a mesma coisa, geraria a negação da génese do que é ser um criador, escritor… um artista. Então, no próximo livro, tentamos sempre que seja um desafio enorme em relação ao outro. Eu lancei o Filho da Mãe que é um livro biográfico, que funcionou e que os leitores ainda hoje me abordam com ele. Teria sido muito fácil cair na tentação de “olha isto funcionou, deixa-me fazer uma coisa parecida”, mas lancei-me no vazio a fazer algo completamente diferente. Passei de um livro biográfico, para um livro passado em 1940, histórico, de uma realidade alternativa. Esse para mim é sempre o principal desafio, o próximo livro.
Existe alguma obra com a qual já não se identifique tanto como na altura da publicação?
Sim e não. No sentido em que para eu ser o escritor e pessoa que sou hoje, tive que escrever aqueles livros. Nós detemos a ideia de que possuímos uma continuidade psicológica, que somos sempre a mesma pessoa. A verdade é que entre o Hugo Gonçalves que tem hoje 47 anos e o Hugo Gonçalves que chegou a Nova Iorque aos 24 e deixou o jornalismo para escrever o seu primeiro romance há muitas mais diferenças do que aquelas que eu construo na minha cabeça. Nós não temos noção disso. Por uma questão de coerência e de sobrevivência, vamos criando uma espécie de continuidade psicológica. E os livros são isso também, eu identifico-me com eles porque fui a pessoa que era naquela altura, portanto, se os renegasse e de alguma forma já não me identificasse também ia negar a pessoa que fui.
Que parte do seu processo de escrita considera mais difícil?
Não sei, nunca pensei nisso. Gosto muito de escrever, de fazer pesquisa, de editar e rever. Quando eu digo “ok, quero fazer isto” e essa ideia começa a contaminar os meus pensamentos, ela vai crescendo, torna-se uma espécie de bola de neve e vou vendo isto com entusiasmo. Claro que há dias de maior angústia e há dias em que as coisas não correm tão bem. Porém, surge tudo muito naturalmente. Quando estou a escrever um livro, o facto de estar sempre nessa realidade mental deixa-me num estado de êxtase que me agrada bastante. Acho que começar é sempre o mais difícil, aliás, quem escreve romances percebe isso. Na metade do romance é que as coisas começam a ganhar outro corpo, outra profundidade de que no início por mais pesquisa que façamos. Portanto, o começar, quando ainda estamos à procura da história, da voz, de conhecer os personagens é talvez aquilo que é mais desafiante.
Considera que a literatura em Portugal, inclusive os autores portugueses têm o reconhecimento devido?
Nunca ninguém acha que tem o reconhecimento que merece. Acho que há países onde a literatura tem uma maior presença na sociedade, nos meios de comunicação. Basta pensar nos países escandinavos, e até em Espanha. Vê-se a presença dos escritores nos jornais, nos programas de televisão, o sucesso dos livros em Espanha, já nem falo na Alemanha, na França ou nos países escandinavos que têm níveis de leitura muito superiores. Tenho pena, gostava que fosse diferente, não apenas como escritor, mas como leitor. Acho que uma sociedade que lê está melhor preparada para tudo.
Foi um dos guionistas do êxito “Rabo de Peixe”. Acredita que a literatura portuguesa, inclusive as suas obras, poderão vir a tomar esse enorme passo?
Acho que nunca tinha feito algo que tivesse tanto alcance, ficámos todos muito felizes, foi vista por milhões de pessoas em todo o mundo. Um livro dificilmente atinge a proporção de uma série. Uma série da Netflix está apresentada numa plataforma que é global, não precisa de ser traduzida, isso jamais aconteceria na literatura, é preciso que haja interesse. Já tive livros publicados fora de Portugal, espero que volte a acontecer e que chegue a mais países.