Anabela Neves foi repórter parlamentar durante quase três décadas, ao serviço da SIC. Começou cedo a informar os cidadãos sobre a Assembleia da República, à qual chama “casa”. A sua vida sempre passou pelo jornalismo e continua a defender que o jornalista deve preservar “a honestidade e seriedade para com o público”. Fora dos ecrãs, a jornalista assumiu novos projetos, como o início de um doutoramento na Autónoma.
Estudou na Universidade NOVA de Lisboa, onde se licenciou. Tem uma importância relevante porque é a primeira universidade a ter um curso de Comunicação Social. Que importância é que teve para a formação na sua área de trabalho?
Na altura, o curso de Comunicação Social tinha alguns problemas. Parece-me que o curso de Comunicação da NOVA ainda os tem, embora o conheça mal, não quero estar a ser injusta. Era um curso mais teórico e as ferramentas que vemos hoje em dia em universidades, como a Universidade Autónoma de Lisboa, uma régie, um estúdio de televisão, um estúdio de rádio, tudo isso não existia nessa altura.
Confesso que se me perguntarem, não me recordo de tudo o que foi a minha formação académica mas, de qualquer modo, gostei de fazer o curso e de ser pioneira numa área académica que teve o seu nascimento naquela universidade. É, sem dúvida, uma das universidades mais conceituadas do país.
Até à criação do primeiro curso de Comunicação Social, os jornalistas eram formados em redações. Qual a mudança que trouxe ao jornalismo este primeiro curso de Comunicação?
De facto, grande parte da formação dos jornalistas profissionais fazia-se na “tarimba”, uma expressão muito comum na altura. Estes jornalistas “tarimba” aprendiam fazendo, assim como eu, mas já ia com várias reflexões não apenas relativas à área da comunicação, mas também em áreas como a semiótica e a semântica. Já havia uma reflexão científica sobre como fazer comunicação. A existência de um curso vocacionado era importante para essa grande área que eram os média em 1979, que foi quando comecei o primeiro ano.
Os anos 80 e 90 do século XX foram marcantes para o jornalismo. Que geração de jornalistas foi esta?
É necessário perceber o que é a geração de jornalistas que surge no fim da década de 80. Uma geração que tem à sua disposição um curso vocacionado para a área, portanto, saem os primeiros licenciados. É uma geração que tem a sorte de ser participante ativa no nascimento de grandes projetos da comunicação social, como a TSF, a primeira grande rádio privada, o Público, em 1990, que era uma ‘pedra no charco’ em termos do jornalismo impresso e, depois, a SIC, a primeira grande televisão privada, em 1992. É desta geração de que se está a falar, e parte dela participou nestes projetos.
Esta geração de jornalistas políticos que se introduziu nos corredores do Parlamento era muito nova, tinha muita vontade de fazer coisas novas e existia liberdade para as fazer, com o incentivo por parte de quem comandava as redações, bem como dos proprietários. É essa geração que vai para o Parlamento e quer fazer diferente. Já como jornalista, quis ser assim.
“Tínhamos muita liberdade no exercício da função de jornalista parlamentar, podendo circular no espaço livremente, e tínhamos muita motivação porque fazíamos parte de órgãos que nos incentivavam a ser esse tipo de jornalistas”
Como é que surgiu o jornalismo parlamentar?
Ui, o jornalismo parlamentar… surge um pouco mais tarde. Quando saí da universidade, fiz um estágio na Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP), era a agência de notícias que existia na altura. Entretanto, penso que surgiu a Notícias de Portugal (NP) que era uma espécie de cooperativa. Três anos mais tarde, surgiu o desafio de ir para Assembleia da República (AR) com a Lusa, para ser repórter parlamentar juntamente com uma colega durante dois anos. É o meu primeiro contacto com o Parlamento.
Disse, em várias entrevistas, que fez um trabalho diferente na Lusa. Que trabalho foi esse?
É importante realçar o que é a Lusa. Era uma cooperativa que resultou da fusão da Notícias de Portugal (NP) e Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP). Até aí a tradição na Agência Lusa não era ser competitiva no mercado, no sentido de querer dar ‘cachas’. Quando vou para o Parlamento com esta minha colega, introduzimos isso. Tentamos igualar a maneira de estar dos nossos colegas do Público, da TSF e do Independente.
Ser jornalista parlamentar era criatividade na maneira de fazer jornalismo, iniciativa para procurar ativamente o que era notícia, ou seja, muito trabalho junto das fontes com quem conversávamos nos corredores para obter o máximo possível de informação. Em 1999, quando estou no Parlamento faço parte de uma geração onde a aprendizagem era feita coletivamente. Tudo isto era possível porque tínhamos muita liberdade no exercício da função de jornalista parlamentar, podendo circular no espaço livremente, e tínhamos muita motivação porque fazíamos parte de órgãos que nos incentivavam a ser esse tipo de jornalistas.
Acha que as pessoas sabem o que é o trabalho de um repórter parlamentar? E para si o que é ser um repórter parlamentar?
Ser um repórter parlamentar é imenso! Existe uma exigência de base que é transmitir aos cidadãos, de forma compreensível e contextualizada, uma realidade política que é muito complexa.
Já não sou repórter parlamentar mas, enquanto fui, tive um papel de vigilância, com a fiscalização que nos era permitida. Os jornalistas são atores de uma missão de serviço público, mas também são fiscalizadores da ação política, no sentido em que estão a acompanhá-la e a observá-la. Para mim, ser repórter parlamentar é talvez das especializações mais exigentes e mais complexas do jornalismo.
O trabalho que realizou na Lusa permitiu que chegasse à SIC. Como surgiu esse convite?
Foi uma situação interessante! Dois colegas meus, da TSF e da Antena 1, sugeriram o meu nome ao então editor de Política, António Carneiro Jacinto, que procurava, juntamente com Emídio Rangel, o diretor de informação, contratar uma ou um repórter parlamentar. Desejavam criar na televisão portuguesa a fidelização da ideia de um repórter parlamentar que estava a tempo inteiro no Parlamento.
Um dia, vou ao Parlamento e dizem que o António Carneiro Jacinto quer falar comigo. Foi aí que percebi que poderia estar a nascer uma nova oportunidade. Começou assim esta extraordinária aventura.
A SIC foi um dos grandes projetos do fim da década de 80, nasceu logo quando a Lei da Televisão Privada foi aprovada no Parlamento, penso que foi em 89 ou 90, e esta estação televisiva surge com um cariz muito forte de atração para recrutamento de jovens jornalistas. Só vou lá parar por ter sido repórter parlamentar da Lusa.
Sendo uma das fundadoras da SIC, sente que naquela altura existia a necessidade da criação de uma televisão independente do Estado?
Obviamente que havia, estamos a falar de um período de informação estatizada nas mãos do setor público. A abertura a canais privados só podia significar mais oferta, mais competição, mas também mais pluralidade. Uma informação apenas nas mãos do Estado obviamente que não garante, na minha opinião, essa pluralidade de visões do mundo que é necessária no caso dos media. A televisão privada tinha de acontecer, talvez de um governo inesperado, pela mão de Cavaco Silva, na sua segunda maioria absoluta e, por isso, tem esse crédito. Foi ele e um governo seu que abriram à iniciativa privada que, mais tarde ou mais cedo, penso que iria acontecer. No início da década de 90, era inevitável, nem podia ser de outra forma
“É a primeira década que marca e funda aquilo que é a SIC, estão lá as grandes marcas que nessa época transformaram ou catapultaram a SIC para o primeiro lugar na confiança dos portugueses”
No relatório da Reuters Digital News Report 2020, a SIC encontra-se em segundo na confiança em marcas noticiosas. Acha que, desde a fundação, o principal objetivo está a ser cumprido? Houve grandes mudanças no canal?
A RTP está em primeiro e a SIC em segundo no que toca à confiança…?! Hmm… Talvez faça algum sentido, são 28 anos de vida, praticamente quase três décadas de vida de uma empresa, é muito tempo. Há muita mudança nessas três décadas. Aliás, aos dez anos a SIC era uma coisa, aos 20 ainda era muito dessa coisa e quase perto dos 30 já não é bem tudo o que foi no início.
A SIC estaria eventualmente no primeiro lugar, o segundo hoje em dia, porque em alguns momentos afastou-se das marcas que deram confiança aos telespectadores.
É a primeira década que marca e funda aquilo que é a SIC, estão lá as grandes marcas que nessa época transformaram ou catapultaram a SIC para o primeiro lugar na confiança dos portugueses. Isso foi visível nas audiências, quando chegou a ter mais de 50% e não apenas na informação, mas no canal em si, e foi durante muito tempo. Nas primeiras duas décadas, a estação televisiva terá tido o primeiro lugar na confiança dos espectadores, até porque a SIC nasce como um grande projeto democrático de comunicação social. Está na sua génese o seu fundador Francisco Pinto Balsemão, um perfil de homem profundamente livre e democrata.
De que maneira é que a SIC se posicionou para se tornar o canal que é hoje?
A SIC queria cortar com a estatização da informação, mas também com a estatização do entretenimento. Queria chegar ao povo, esta era uma marca muito sem pretensões, no sentido de ser um canal de televisão que queria ser popular no melhor sentido da palavra. Nós, enquanto jornalistas, mas também todos os outros funcionários da casa, tínhamos por obrigação chegar às pessoas.
Uma das áreas mais fortes na SIC, durante vários anos, foi a política. Fomos muito criativos, no sentido de encontrar novas formas de fazer congressos, campanhas eleitorais e cobertura parlamentar. Era minha obrigação e tentei fazê-la, tendo sempre o dever de sermos muito bons, se possível, sermos os melhores e, se possível, os primeiros, era a mensagem que recebíamos com frequência na casa. Continuo a achar que o grande objetivo do jornalismo é chegar às pessoas, aos cidadãos, para que consigam percebem melhor as coisas e que tomem decisões mais informadas sobre a sua vida.
Falou de um elemento importantíssimo, que é a comunicação com a população. Como intermediária de mensagens políticas para os cidadãos portugueses, acha que a população é interessada e participativa na política?
Às vezes, estava em contracorrente com colegas meus. Sempre tive a opinião que os portugueses sabem escolher, sabem informar-se, sabem decidir e sabem o que querem. Vi isso ao longo dos anos em que estive no ativo. Estou a falar de eleições, por exemplo. Houve decisões muito claras do eleitorado que deu maiorias absolutas, se não me engano três, ao contrário do que muita gente pensará que houve muitas maiorias absolutas, mas não, houve duas de Cavaco Silva e depois a de José Sócrates.
Os portugueses não gostam de maiorias absolutas?
Os portugueses dão sinais que não gostam de maiorias absolutas, disseram ao longo destas quatro décadas de democracia que permitiram a formação de governos minoritários à direita e à esquerda.
Nos momentos de grande crise, e nós tivemos vários a seguir às maiorias absolutas de Cavaco Silva, os cidadãos foram claros a apontar caminhos para os partidos se entenderem em soluções de governo. No entanto, houve partidos que entenderam governar sozinhos, foi o caso de António Guterres, também de José Sócrates, no segundo governo, e de Durão Barroso. Esses governos acabaram em crise, porque não tinham maioria estável para aguentarem e governarem. Nessa altura, normalmente, o eleitorado mudou o ciclo, deu a maioria de governo ou possibilidade de formar maioria de governo à força oposta.
Acho que no segundo governo de Guterres, em que há um empate, o Partido Socialista empata com todas as restantes forças da oposição e Guterres não percebeu ou não quis ler os sinais, talvez seja o mais correto. Ele percebeu, penso eu. Não quis foi lê-los. Portanto, acho que os Portugueses sabem o que fazem na maior parte das situações. E nas Presidenciais idem e aspas.
Tendo os Portugueses uma noção do que querem, como explica termos a abstenção tão elevada desde 1979?
A abstenção não é tão linear assim, varia muito de ato eleitoral para ato eleitoral. Por exemplo, para as Europeias é muito maior do que é para as Legislativas. Não é o dado aqui mais significativo, nem me parece que [abstenção] seja às vezes tão preocupante como os comentadores querem fazer crer. Acho que há um número suficiente de votos expressos de forma maioritária para eleger e para fazer as escolhas. E atenção, se as pessoas se abstêm de votar, não fazem parte dessas escolhas. Estava a falar do universo que opta por escolher e esse universo é quem vota.
“Criámos uma redação com sede no Parlamento, o que é um caso de estudo, porque não há nada semelhante noutros parlamentos de democracias europeias e mundiais”
Que sinal é que as pessoas dão ao não querem votar?
Obviamente que entendo que a abstenção, em alguns casos e para algumas pessoas, é também um sinal de: “não me revejo no jogo que está à minha frente, gostaria de ter outro e, portanto, vou-me abster”. É legítimo e não vejo mal nenhum nisso, agora as escolhas principais são feitas pelos que votam.
Não acho que haja um aumento de abstenção nos últimos anos, vi muitos sinais interessantes por parte do público, por exemplo, as audiências na televisão. Não partilho essa ideia de que os portugueses estão desinteressados, de todo!
Na gíria da sociedade diz-se muitas vezes que os jovens não se interessam pela política. O trabalho que a Anabela desenvolveu no ‘Parlamento Global’ e no ‘Minuto a Minuto’ permitiram essa proximidade?
Foi um dos objetivos, obviamente. O ‘Parlamento Global’ nasce de forma muito curiosa, foi uma ideia que surgiu numa conversa de corredor, num fim de semana em que havia algum tédio. Tédio meu em relação à cobertura parlamentar. Já tinha muitos anos de cobertura parlamentar e estava a precisar de um novo desafio.
Em conversa com uma grande amiga, colega na altura, a Sofia Pinto Coelho, um dos rostos da SIC, sugeriu: “Por que não propor ao Francisco Pinto Balsemão um projeto multimédia?” Estávamos em 2007, a SIC e, no caso, o grupo Impresa tinha lançado a Impresa Digital, portanto, há dez anos estávamos ainda a começar a navegar a sério neste ambiente que domina as nossas vidas.
Achei que era um bom desafio e consegui, com um grupo de pessoas, lançar então o ‘Parlamento Global’ com o apoio total do presidente do Conselho de Administração, Francisco Pinto Balsemão e também da AR, na altura, através de Jaime Gama, o presidente.
O que era o ‘Parlamento Global’?
Era um projeto multimédia com características únicas. Criámos uma redação com sede no Parlamento, o que é um caso de estudo, porque não há nada semelhante noutros parlamentos de democracias europeias e mundiais. Um dos objetivos era, sem dúvida, fazer chegar o Parlamento aos cidadãos e aos jovens de outra forma. As novas ferramentas multimédia e digitais estavam a começar a ganhar força em alguns órgãos de comunicação social em Portugal e no Mundo. Estávamos ainda um pouco nos primórdios, hoje em dia há muita coisa que se fez que parece distante, mas só passaram 10 anos (risos).
Como é que tirou o projeto do papel e o colocou em prática?
Sempre entendi que o jornalismo, e no caso o jornalismo televisivo, deve fazer-se onde as pessoas estão. Se as pessoas estão na televisão é na televisão que ele é feito, mas se as pessoas estão também online é aí onde devemos estar e nada disso é incompatível, criam-se energias e a ideia do ‘Parlamento Global’ era criar energias.
Juntámos a Rádio Renascença (RR), que estava também numa grande aposta no digital, e o Expresso, conseguindo assim uma parceria que durou vários anos. Conseguimos outra parceria que permitiu um modelo de negócio. Digo isso, porque recebemos apoio de duas fundações na altura, a fundação Champalimaud e a fundação Gulbenkian, o que permitiu que criássemos uma redação financiada por essas duas instituições. Mais tarde, saiu a Champalimaud e entrou a fundação EDP. Com a Gulbenkian, estivemos 10 anos.
“O ‘Parlamento Global’ tinha o objetivo de chegar onde as pessoas estavam, fossem jovens ou não. No caso dos jovens, criámos o blogue ‘Minuto a Minuto’, o primeiro grande blogue político de acompanhamento dos debates”
Este projeto era de jovens para jovens?
Era um projeto de formação de jovens. Era a mais velha da equipa, mas a equipa foi formada por jovens e, ao longo dos dez anos da vida do projeto, essa equipa foi-se renovando, mas sempre com jovens universitários que fizeram a sua formação no ‘Parlamento Global’ e no Parlamento.
O ‘Parlamento Global’ tinha o objetivo de chegar onde as pessoas estavam, fossem jovens ou não. No caso dos jovens, criámos o blogue ‘Minuto a Minuto’, o primeiro grande blogue político de acompanhamento dos debates, com universidades em várias circunstâncias, nomeadamente no próprio Parlamento nos últimos dois orçamentos de José Sócrates, em 2009 e 2010, se não me engano.
Porque é que o projeto acabou?
Para já, o ‘Parlamento Global’ era um site de nicho, não era um site de milhões de pessoas. Depois, digamos que foi um resiliente, nem toda a gente na SIC e no Expresso achava que fosse uma aposta a continuar. Infelizmente, em Portugal os órgãos de comunicação social há bastante tempo que estão com dificuldades financeiras. O projeto apanha esse processo e não havia muita gente disponível para pagar uma redação que, neste caso, era uma redação de informação que formava jovens e formou!
O apoio inicial foi mudando e depois algumas das componentes foram caindo. A redação do ‘Parlamento Global’ ficou muito mais virada para fazer televisão tradicional e não multimédia, e isso acabou por dificultar a alimentação do site que era muito exigente. Por exemplo, tivemos, pela primeira vez, uma base de dados com as biografias em vídeo de quase todos os deputados de forma bastante apelativa.
O investimento foi diminuindo e o site acabou por morrer de morte natural, com muita pena minha. Adorava ainda estar à frente desse projeto, mas acabou por morrer. A equipa ficou praticamente dedicada ao acompanhamento político e do dia a dia do Parlamento, como cobertura televisiva na equipa política da SIC.
“O Parlamento nunca fechou portas aos jornalistas parlamentares, embora tenha existido uma tentativa. Acho que este convívio histórico é fundamental para alimentar esta grande ideia de transparência do funcionamento da AR“
Ao dizer que Portugal detinha uma Assembleia da República diferente e caso de estudo em todo o Mundo, praticamente ímpar na sua transparência, acha que a criação do canal Assembleia da República TV (ARTV) veio confirmar essa transparência?
O Parlamento português é um caso de estudo porque é um Parlamento de portas abertas, ao contrário da impressão que, infelizmente, às vezes causa na opinião pública. É, de facto, um Parlamento de portas abertas. A cobertura jornalística parlamentar beneficiou, mas também contribuiu para isso, no sentido em que os jornalistas, convivendo de forma livre com as suas fontes nos corredores da AR, levaram essa ideia de abertura e de transparência.
O Parlamento nunca fechou portas aos jornalistas parlamentares, embora tenha existido uma tentativa. Acho que este convívio histórico é fundamental para alimentar esta grande ideia de transparência do funcionamento da AR.
A AR, na década de 2000, ao decidir gastar dinheiro – e gastou bastante – e ao decidir apetrechar toda a casa com meios de difusão do sinal daquilo que estava a ser discutido deu um passo muito importante naquilo que chega aos cidadãos. Esse investimento foi sempre continuado até hoje e nos últimos anos aprofundado no que toca ao chamado ‘Parlamento Digital’. Para que se tenha uma noção, todas as salas onde possa ocorrer debate político substancial têm vídeo e áudio e é importante que estejam disponíveis para consumo por parte dos cidadãos, quer no sinal por cabo, quer no TDT, quer online.
Na maior parte dos parlamentos europeus, os repórteres não estão dentro das salas de sessões, acompanham os debates em circuito de vídeo interno. No caso português é diferente, porque o olhar dos repórteres é de observação e aquele lugar onde estão sentados permite essa observação em direto para as pessoas que estão a acompanhar. Nesse sentido, os canais generalistas beneficiaram dessa aposta.
A ARTV, juntamente com o nascimento dos novos órgãos e da televisão privada, é um processo que caminha em conjunto no sentido de uma enormíssima transparência do funcionamento da AR.
Em 1993, esteve presente no boicote ao Parlamento, quando os jornalistas parlamentares fizeram greve aos trabalhos e coberturas jornalísticas. Os jornalistas hoje têm os mesmos poderes, ambições, apoios e condições para lutar no que acreditam ser o certo?
Infelizmente, penso que não, está tudo muito mais difícil! Os órgãos privados de comunicação na altura eram atrevidos, no sentido em que queriam desmontar e levar às pessoas a verdade possível. Isto chocava com a maioria Cavaquista que tinha um entendimento da democracia parlamentar um bocadinho diferente.
O episódio ocorre em 1993, estávamos na parte final do Cavaquismo. A ideia de maioria dominava a Assembleia da República, eram escassíssimos os debates onde participasse o primeiro-ministro, por isso havia um funcionamento controlado pela maioria do PSD.
Existia guerra aberta com o Presidente da República, Mário Soares, e os caldos políticos, mediáticos contribuíram para que, em 1993, algumas pessoas dentro do partido, como Pacheco Pereira, e também o presidente da AR, Barbosa de Melo, decidissem que era necessário alterar as regras de circulação dos jornalistas dentro da Assembleia e isto provoca um tumulto. No fundo, este novo regulamento impedia que os jornalistas circulassem pelos corredores, como circulavam até aí. Tinham de pedir autorização para falar com os deputados.
Foi só um movimento dos jornalistas parlamentares ou também teve apoio das direções de informação?
Como disse, isto provocou um tumulto dos órgãos privados. Tivemos o apoio de Emídio Rangel, da SIC, Vicente Jorge Silva, do Público, e [também dos colegas] do Diário de Notícias, que alinharam imediatamente com os jornalistas e com a Associação de Jornalistas Parlamentares. Fazem o impensável, criam um boicote, fazem greve às notícias no Parlamento e, durante mais ou menos um mês, as notícias são só sobre o boicote.
Houve coisas muito engraçadas. Nós espreitávamos e abríamos a porta que dá acesso à bancada de imprensa, víamos onde os deputados estavam reunidos e, nessa altura o PSD, estava praticamente a falar sozinho, porque a oposição solidarizou-se connosco.
Como é que foi desbloqueado este caso?
Fomos recebidos por Mário Soares, cá está, um arqui-inimigo de Cavaco Silva e que nos apoiou. Felizmente, encetou-se um processo de diálogo e de negociação. Um mês depois, voltou tudo à normalidade, mas com mudanças. A regulação do espaço, foi uma dela. Já não podíamos andar tanto à vontade, o que fazia sentido. As regras foram aperfeiçoadas ao longos dos anos, mas aquilo não era o espaço onde podíamos andar de espingarda na mão ou de câmara na mão a disparar contra tudo e todos. E reparem, também não houve a celebração do 25 de abril, uma das pouquíssimas vezes em que não houve celebração.
“Compreendo algum cansaço com os debates quinzenais, eu própria já estava cansada deles enquanto repórter parlamentar. São, muitas vezes, pura guerra política”
Enquanto jornalista, como é que olha para o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro?
Pois… (Risos) não sei! Não estando agora no Parlamento tenho mais dificuldade em obter informações. Não conheço os bastidores desta decisão, mas compreendo algum cansaço com os debates quinzenais, eu própria já estava cansada deles enquanto repórter parlamentar. São, muitas vezes, pura guerra política.
Acho que não foi uma boa decisão e valeria a pena tentar ultrapassar esse cansaço, continuar a ter os debates quinzenais, sendo que acho que já não são tão acompanhados como eram. Não é puxar a brasa à minha sardinha, mas, enquanto fui repórter parlamentar, havia muito interesse em acompanhar os debates, as pessoas viam com muita atenção e tínhamos audiências ótimas.
Importa só dizer que a ideia do debate quinzenal foi introduzida durante o primeiro Governo de José Sócrates, que apoiou inteiramente esta decisão. Às vezes é importante lembrar estas coisas, também para fazer justiça às pessoas que tomaram estas decisões e, na minha opinião, tomadas no momento certo.
Acompanhou campanhas eleitorais desde 1994 até 2015. A campanha como a conhecemos hoje continua a ter o mesmo impacto e importância como tinha no início da sua carreira?
Infelizmente, acho que se perdeu alguma graça nas campanhas. Isto tem tudo a ver com a grande crise do jornalismo e, em particular da última década, mas não só, tem também a ver com os meios hoje em dia. O facto de termos informação 24 horas sobre 24 com a possibilidade de usar o teradek, semelhante aos telemóveis, que permite passar o sinal de forma imediata, permitiu muitos mais diretos e muito menos reportagem. Apesar de algumas mudanças tecnológicas serem extraordinárias, outras empobreceram o jornalismo.
Acho também que as redações empobreceram um pouco. Hoje em dia, há alguma falta de memória. Isso é fundamental para que os repórteres que estão no terreno compreendam bem e tenham contexto, ou seja, terem a tal memória de retaguarda para perceberem o que estão a ver à sua frente. Às vezes, por não perceberem o que estão a ver à sua frente, acabam por cair no jornalismo folclore.
Falou na falta de memória que existe nas redações. Não faria sentido as redações manterem os jornalistas de peso e fazer um equilibro entre a juventude e os nomes mais velhos?
Obviamente que a combinação entre jornalistas juniores e jornalistas seniores é fundamental em qualquer órgão de informação, porque a responsabilidade que os media têm perante os cidadãos é tão grande que a profissão exige que seja exercida com a máxima seriedade e isso implica, sem dúvida, redações mais apetrechadas do ponto de vista da memória.
O facto de ter vivido alguns momentos é útil para mim, mas também pode ser útil para quem está a ver, ouvir ou ler, e essa memória devia ser cuidada e alimentada. Portanto, há muitos jornalistas que abandonaram a profissão, como eu, em novembro de 2019. Abandonei, quer dizer, abandonei no ativo, porque ainda sou jornalista!
Há, de facto, um défice de idade nas redações e nota-se cada vez mais. Vai desde os cargos de chefia, onde há muita gente muito nova, até ao miolo das redações. Sem dúvida que precisávamos de inverter isto e é algo que os canais americanos fazem. Em Portugal, e não sei porquê, foram desaparecendo as pessoas mais velhas.
Como é que um jornalista que lida de perto com a política não se deixa toldar com alguma promiscuidade na relação entre o poder e o exercício jornalístico?
Levando isto muito a sério e sendo-se sério! O que mais devemos preservar enquanto jornalistas é a nossa honestidade e seriedade para com o público. Se o fizermos durante todo o tempo e não só de vez em quanto, evitamos a promiscuidade.
Para mim, ser sério é ser independente, por isso, não devemos criar relações pessoais e profissionais que tirem a independência. É isso que recomendo a qualquer jornalista.
“Sendo que não sou nada consensual, havia partidos que, em determinados momentos, achavam que estava a tomar posições. Portanto, nada disto foi um mar de rosas, bem pelo contrário”
Também é possível manter essa independência a nível editorial?
Diria que a receita é exatamente a mesma, sendo que um órgão de informação tem aquilo que é exigido a um jornalista, que é atender a todas as partes, permitir o contraditório e ser exigente nisso. São coisas que estão expostos nos conteúdos editoriais do órgão e que também fazem parte do Código Deontológico dos Jornalistas, portanto, aqui não há nada que aprender, está tudo claríssimo.
Na SIC, sempre lhe permitiram um trabalho independente e rigoroso?
Quando, por alguma razão, alguém não tinha essa visão, afirmava estes mesmos princípios. Fui muito clara nisso, porque vivia num meio muito sensível, como jornalista de política, onde há muitas opiniões e há muitas emoções. Acho que isso é um problema que está a marcar o jornalismo português, mas tentei fugir um pouco dessas emoções, apesar de virem muito ao de cima nas campanhas eleitorais. Sendo que não sou nada consensual, havia partidos que, em determinados momentos, achavam que estava a tomar posições. Portanto, nada disto foi um mar de rosas, bem pelo contrário.
Por que motivo saiu da SIC? Foi por já não se sentir confortável ‘naquele’ jornalismo?
Quis novos projetos e coisas muito desafiantes. Estou agora num doutoramento, algo que não imaginava, até porque não tinha tempo. Lá está, uma das áreas onde acho que há défice é na formação continuada dos jornalistas. Mas se havia algum desencanto com a maneira como o jornalismo português está?! Talvez… E isso foi uma das razões que me levou a ponderar se não seria a altura de fazer uma mudança radical na minha vida. Houve oportunidade de sair a bem, mas com alguma pena minha, porque gostava muito dos telespectadores. Achei que era altura de deixar caminho para outros, nomeadamente para a equipa do ‘Parlamento Global’, que ainda está na SIC.
Isto é assim.… uma geração sucede a outra, mas se fechei completamente?! Não sei… a qualquer momento posso voltar.
Mas não sai com medo de a porta da televisão não voltar a abrir-se?
Não… É engraçado, mas não! Pontualmente, pode voltar a abrir-se no comentário, mas voltar à redação não me parece. Foram mais de 35 anos. Para já, não me apetece voltar para o jornalismo ativo, mas pode haver outras formas de fazer jornalismo e há projetos que estão a ser cozinhados.