Sinopse:
“Em fevereiro de 2006, os Bombeiros Sapadores do Porto resgataram do poço de um prédio abandonado um corpo com marcas de agressões e nu da cintura para baixo. A vítima, que estava doente e se refugiara naquela cave, fora espancada ao longo de vários dias por um grupo de adolescentes, alguns dos quais tinham apenas doze anos.
Rafa encontrara o local numa das suas habituais investidas às zonas sujas, e aquela espécie de barraca despertou-lhe imediatamente o interesse. Depois, dividido entre a atração e a repulsa, perguntou-se se deveria guardar o segredo só para si ou partilhá-lo com os amigos. Mas que valor tem um tesouro que não pode ser mostrado?”
Crítica:
Afonso Reis Cabral é admirável por ter escrito esta obra. Ganhou-lhe o Prémio José Saramago 2019, e retrata o caso de 2006 em que uma morte trágica abalou Portugal, mas foi rapidamente esquecida, tal como os problemas do nosso país. Com este livro, o autor traz esses assuntos de novo à tona.
A história, verídica com ficção à mistura, é contada do ponto de vista de Rafael, um dos rapazes que participou no espancamento. No entanto, nunca somos levados a pensar que ele é uma pessoa má, pelo contrário, rapidamente percebemos que é um miúdo a crescer. Com 12 anos, Rafael já se colocou em situações maiores do que ele é. É uma criança a fazer-se de adulto. Para se provar a si mesmo que é maturo, o rapaz começa a reconstruir uma bicicleta velha e quebrada que encontra num supermercado Pão de Açúcar inacabado. Aí, conhece Gisberta, uma mulher brasileira velha e quebrada, que inicialmente causa repulsa no jovem.
No entanto, acaba por sentir pena da situação dela, e recruta amigos para a ajudarem. Dão-lhe comida, abrigo e conversa. Rafael e os amigos acabam por ter de ajudar quem não recebe ajuda de mais ninguém, e vão crescendo. Uma semana depois, estão entre os agressores de Gi.
Nesta obra, Afonso Reis Cabral não utiliza as ruínas do supermercado apenas como cenário de fundo, mas também para descrever todas as personagens e todas as situações por que estas passam, bem como a tragédia em si. O Pão de Açúcar é deixado em ruínas, tal como este caso foi deixado para trás pelos media. É abandonado pelo Estado, tal como Gisberta, e inacabado, tal como Rafael, que ainda tem que crescer.
Utilizar Rafael como narrador foi uma escolha inteligente. Permite-nos ver o interior da história, mas na perspetiva do “agressor” e não da óbvia vítima. Muitas das vezes, ao ler um caso assim nas notícias é fácil ver tudo preto no branco: existe o mau que matou, e a boa que foi morta. Claro, Rafael não é santo nenhum, e nem é o objetivo do livro pintá-lo como tal – pretende, sim, mostrá-lo como humano. Nesta história todos são vítimas das circunstâncias.
Os jovens que conhecemos neste livro vivem em situações tóxicas, quer estas sejam familiares quer escolares. São pressionados a ser violentos. O que não desculpa as suas ações, mas coloca-as em perspetiva. Vemos que eles próprios têm preconceitos, culpa da falta de educação. Por momentos, pensamos que a sua bondade e empatia vão prevalecer, que vão conseguir ajudar Gisberta – Cabral faz-nos ter esperança ao ler uma história cujo fim já sabemos – mas no fim as circunstâncias prevalecem.
A maneira como o autor descreve Gisberta é ótima: muito facilmente poderia ter puxado logo pela palavra “transsexual”, mas apresenta-a apenas como uma mulher. Podia retratá-la como um estereotipo ou uma personagem passiva, mas, em vez disso, faz dela uma critica à maneira como a sociedade trata minorias. O facto de ela ser prostituta é especialmente forte, pois muitas das vezes acaba por ser a única opção de transsexuais e mulheres imigrantes, algo que é pouco falado.
Poderia ter havido um maior foco nela, apesar de ser compreensível isso não acontecer devido à história ser a partir do ponto de vista de Rafael. Depois de ser construída a situação tensa de Gisberta, queremos ler mais acerca dela, pelo que as partes em que se regressa às interações de Rafael com os outros rapazes do instituto sentem-se arrastadas e ficamos tentados a saltar para a parte interessante.
Pode-se argumentar que desculpou demasiado os jovens envolvidos, mas a verdade é que mostra exatamente o que um rapaz de 12 anos pensaria ao encontrar-se envolvido numa situação assim. Mostra os seus preconceitos, partilhados pelos colegas que eventualmente o levam para maus caminhos, produto do seu meio; os sentimentos de criança a crescer; o conflito consigo mesmo enquanto ajuda quem sempre pensou excluir; e a dor que é deixada no fim, nunca cuidada.
Este livro faz justiça a todos os envolvidos, deixando a sua história ser ouvida. Em 2006, o caso fez notícia pela morte de uma mulher transsexual, que, se não o fosse, teria a sua morte ignorada por completo. Nunca os media abordaram desta forma as dificuldades por que passam transsexuais e imigrantes neste país como abordou este livro, ou o dano psicológico dos jovens envolvidos. Bastou uma história bem contada para se verem as verdades.
Recomendo o livro a todos. Apesar do tema, não é uma leitura pesada, e permite-nos refletir e ver realidades que infelizmente ainda acontecem no nosso país, em pleno século XXI. Um livro que faz doer e faz pensar.
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