São três os que abrem a porta de sua casa, onde moram juntos e falam sobre a sua história enquanto polycule. Por outras palavras, amam amores. Ao testemunho na voz de quem vive, viveu e tentou uma relação poliamorosa, junta-se Daniel Cardoso, investigador na Manchester Metropolitan University, no Reino Unido.
No apartamento que partilham, estão sentados à mesa da sala de estar onde fazem um regresso ao passado. Tudo começou quando Bruno e Mariana, aos 16 anos, atualmente 30 e 31, se conheceram no Fotolog, um site online criado antes do Facebook. “Posteriormente, cruzámo-nos num concerto, num bar, em Cacilhas”, diz Bruno.
A amizade deu lugar a uma relação, monogâmica, que durou nove anos, até deixarem ‘entrar’ outras pessoas. Pelo caminho, surgiu Cris, 25 anos. “Certo dia dei match no Tinder com o Bruno, não sabendo que era marido da Mariana e, entretanto, a nossa união já dura há mais de dois anos”, conta, dando uma gargalhada. São uma polycule, termo usado na comunidade poliamorosa para apelidar a família ou rede de pessoas que têm relações em comum. “Além de uma relação, é uma rede de afetos”, diz Mariana, atualmente uma das representantes do PolyPortugal, o coletivo português que se foca em não monogamias consensuais. É o maior grupo de discussão e apoio para pessoas que se interessam e/ou praticam o poliamor, em Portugal.
O poliamor é a capacidade de amar mais do que uma pessoa. Pressupõe uma relação amorosa e sexual, ou não, entre três ou mais pessoas ao mesmo tempo, com o consentimento de todos. É uma forma, entre outras, de não monogamia consensual. “É válido, possível e positivo para todas as pessoas envolvidas”, afirma o investigador Daniel Cardoso.
“A base essencial é o consentimento, associado à comunicação e à responsabilidade emocional e psicológica, por todos os envolvidos”
Como em qualquer relação, existem prós e contras. No poliamor são os mesmos de uma família “normal”, mas com uma estrutura maior. Há benefícios, como a partilha de responsabilidades e um núcleo que se cuida e entreajuda, bem como uma comunidade que acolhe e conforta. Daniel Cardoso afirma: “A base essencial é o consentimento associado à comunicação e à responsabilidade emocional e psicológica por todos os envolvidos.”
Quanto aos prós, Bruno aponta “a possibilidade de ser livre, sem posse”. Não há, portanto, o sentimento de exclusividade presente no amor romântico. “Gosto de conhecer outras pessoas e é ótimo fazer isso, estando num relacionamento”, diz Cris, acenando com a cabeça ao ouvir Bruno. “Ao nível sexual, para as pessoas que são sexuais, explora-se coisas novas, e não há uma única pessoa que tem de preencher as necessidades do parceiro. Não se pode esperar que o outro consiga dar tudo, o esperado numa relação monogâmica, porque ninguém tem essa capacidade. Numa relação não monogâmica não há essa expectativa”, refere Mariana.
“O que tenho com a Mariana não se alterou por amar a Cris. O que se divide é o tempo, não o que sinto”
Falando sobre as dificuldades, Bruno refere: “A gestão em termos de tempo e de energia.” A semana está dividida em três. “O Bruno está em parte na casa da Cris e a outra parte aqui em casa. No fim de semana, estamos os três juntos”, diz Mariana. “Não há uma regra nos dias, mas sim por uma questão de organização, que é fundamental”, acrescenta Cris.
“Não é fácil lidar com os ciúmes, principalmente no início, para quem tem uma relação monogâmica, como eu e o Bruno tínhamos, e depois deixarmos ‘entrar’ alguém”, diz Mariana. E completa: “É ultrapassável através da comunicação, da transparência e da segurança estabelecida. O problema é que as pessoas têm medo do ciúme em vez de lidarem com ele.”
Com a entrada de Cris para o núcleo, os pais de Mariana ficaram com medo de que isso magoasse a relação de nove anos com Bruno. “O que tenho com a Mariana não se alterou por amar a Cris. O que se divide é o tempo, não o que sinto”, diz Bruno. Apesar do receio inicial, Mariana diz que os seus pais agora estão “superconfortáveis” e, inclusive, “a Cris já passou o Natal, o Ano Novo e o Halloween com eles, todos juntos”.
“Há uma linha muito ténue que separa a promiscuidade do que é efetivamente amor livre”
Viveu sete anos num relacionamento monogâmico, até se separar. “Senti a necessidade de me encontrar num padrão que fugisse do clássico”, conta Joana, 35 anos, artista e ativista pelos direitos LGBTQIA+. “Após o divórcio, tive um relacionamento com um homem e mais três mulheres. Cheguei também a ter uma relação com duas pessoas, e duas pessoas tiveram uma relação comigo”, acrescenta.
Para si, o poliamor é ter a capacidade de se dar e ter energia suficiente para se partilhar, e partilhar o outro com outras pessoas. “Há uma linha muito ténue que separa a promiscuidade do que é efetivamente amor livre, e o que é estarmos dispostos à partilha de nós mesmos, e dos outros com outros”, afirma.
Atualmente solteira, acredita que “o poliamor é utópico” e diz: “É preciso o ser humano ser extremamente evoluído e maduro, o que não é, para que seja um conceito sustentável de adquirir.”
“O poliamor é a polarização daquilo que sentimos por nós”
Murad, 32 anos, trabalha na área logística e já teve a tentativa de um relacionamento poliamoroso. Questionado sobre o motivo do fracasso, refere que “não estava pronto”. Aponta que “era imaturo e não tinha certeza do que queria”, dizendo ainda que “as pessoas com quem estava refletiam aquilo que eu era”. Apesar do desejo, havia o medo da perda, do abandono e da rejeição. “Por todos esses motivos não resultou”, diz Murad.
“O poliamor é trazer a multiplicidade para o sentimento mais puro e grandioso que existe no universo, o amor. E está ligado à capacidade de, primeiro de tudo, amar-se”, diz. E acrescenta: “Não acredito que uma pessoa ame outra sem que ela não se ame. O poliamor é a polarização daquilo que sentimos por nós”.
“Existe a discriminação social, por parte da família, amigos e colegas de trabalho que gozam, menosprezam e olham de lado”
O poliamor representa a quebra do padrão da família tradicional, sendo conotado como imoral aos olhos dos bons costumes. Bons costumes que, não reproduzidos, causam danos para os que não seguem o modelo imposto pela sociedade, fruto da construção social.
“Existe a discriminação social, por parte da família, amigos e colegas de trabalho que gozam, menosprezam e olham de lado”, afirma o investigador Daniel Cardoso. Enumera exemplos relacionados com o funcionamento legal, económico e financeiro, da forma como a sociedade está ordenada: “As limitações ao arrendamento consoante o número de pessoas adultas, sem laços de consanguinidade, e o número de promoções que existem para duas pessoas, a pensar no casal. No caso de serem três pessoas, o mesmo não acontece.”
“Já sofremos preconceito por pessoas que não percebem a não monogamia. Nunca nos olharam de forma estranha na rua, talvez porque não lhes passa pela cabeça que temos uma relação”, diz Mariana. “Mas se, por acaso, nos beijarmos… acham estranho”, acrescenta Bruno. Com uma expressão descontente, Cris conta que o irmão não valida a sua relação como algo sério. “Ele acha que sou uma menina indefesa e que o Bruno se está a aproveitar de mim”, diz. Conta ainda ter sido alvo de comentários num antigo emprego: “Todos falavam mal de mim pelas costas por ser a ‘outra’ e por ‘não me dar ao respeito’”.
Joana aponta que também sofreu, e ainda sofre, preconceito por parte da família. Contudo, diz: “Sou eu quem vivo a minha realidade e apesar de ser a minha família não ligo ao que eles dizem.” E acrescenta: “Temos de nos impor e não permitir que o preconceito continue.”
“As pessoas estão sempre prontas a julgar, porque não acreditam que o amor pode ser pulverizado de diferentes formas. Não há só uma verdade”, diz Murad, que conta sofrer de preconceito pela forma de pensar. Para o investigador Daniel Cardoso, “a literacia é a chave ao combate à discriminação”.
“Sou vista como uma galdéria por estar numa família de mais de duas pessoas”
O poliamor é vivido de forma diferente por homens e mulheres, devido às pressões sociais que constroem os estereótipos de género. Mariana, Bruno e Cris acenam com a cabeça, em tom de concordância. “Sinto-me com sorte porque o homem é bem visto”, diz Bruno. “Os homens são vistos como os garanhões, e eu, como mulher, sou vista como uma galdéria por estar numa família de mais de duas pessoas”, acrescenta Cris. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Joana afirma: “É muito mais fácil para um homem ser poliamoroso do que para uma mulher, e não ser condenado, porque ele é visto como aquele que tem quem quer e ‘fode’ quem quer. As mulheres são vistas como ‘putas’.”
Em Portugal, não há nenhuma proteção legal a favor das pessoas não monogâmicas. Não é permitido casar e, por exemplo, incluir mais do que um membro no mesmo seguro de saúde. Além dos entraves jurídico legais existem, ainda, os vários dogmas religiosos.
“O poliamor não é encarado pela justiça portuguesa”, afirma o investigador Daniel Cardoso. Cita o crime de bigamia, que consiste na tentativa de uma pessoa se tentar casar com mais de uma pessoa, dizendo: “As pessoas poliamorosas não se podem casar enquanto estrutura poliamorosa, o que, por si só, é um problema de discriminação.” E acrescenta: “o problema também não se coloca porque as pessoas não tentam casar e, muitas vezes, o casamento não é visto como a ferramenta de manutenção da união”.
Certo é que o poliamor existe, quer com ou sem proteção legal, porque o amor não tem barreiras.