Corajosa, bem-disposta e uma verdadeira inspiração para os outros. É assim que Marine Antunes, 29 anos, é conhecida por todos. No início da adolescência, Marine conseguiu ultrapassar o cancro, um linfoma não-Hodgkin, e aprendeu a rir-se dele, inspirando milhares de doentes e sobreviventes a esta patologia. Com vista a ajudar os outros, a jovem criou o projeto “Se Podes Sonhar, Podes Concretizar” e lançou um blogue e três livros com o título: “Cancro com Humor”.
Como é que uma menina de 13 anos reage ao saber que tem cancro?
Bastante bem porque não tinha noção que tinha um cancro. É como se a ignorância me protegesse. Reagi de acordo com aquilo que sabia e não tinha ideia da gravidade desta doença. As crianças acabam por ter muita força e vontade de ficarem bem. Eu queria era voltar à minha normalidade. Nós adultos é que complicamos as coisas. Quando somos mais novos, encaramos a vida com outra facilidade e outro despacho. Lembro-me de dizer: “Pronto, agora tenho isto, o que posso fazer? Avançar e tentar que tudo fique bem.” Encarei tudo com muita praticidade. Sou uma miúda prática e já era na altura.
E como reagiram as pessoas à sua volta?
A minha família tentou proteger-me ao máximo, sempre com muita naturalidade e isso é muito importante. Tentaram fazer um “big deal” da situação por mais grave que fosse e mostraram-me que não era a única do mundo a ter cancro e que não haveria de ser a única a sobreviver. Claro que estavam mais preocupados do que eu. Os meus pais e os meus irmãos, que são mais velhos, tentavam descansar-me e proteger-me de certa forma. Não me davam todas as informações e acho isso muito bem. Não é preciso contar tudo. Disseram-me o que era importante saber, mas ninguém me aterrorizou, o que me ajudou.
A perda de cabelo foi um choque para si. Como recorda a situação?
O cabelo é uma parte muito importante, não só pela imagem em si. Para uma miúda de 13 anos é muito difícil não ter cabelo. Quando se perde o cabelo é que percebemos a gravidade da doença. Foi isso que senti. Não foi: “Ai Jesus, estou tão feia!”, foi mais: “Isto é mais grave do que aquilo que eu pensava!” Há uma perceção da doença mais real. Claro que foi difícil e, se calhar, agora não tenho tanta noção do quão difícil foi na altura. Chorei bastante, mas também encarei com relativa facilidade. Comecei a usar boinas e lenços. Estava preocupada em sentir-me bonita e não fiz da perda de cabelo o maior problema da minha vida. Lidei contra a realidade porque não me adiantava de nada estar a reclamar. O cabelo cai. Foi difícil voltar à escola sem cabelo, mas depois da primeira vez que encarei as pessoas, esqueci-me que usava boina. Agia com normalidade e, a certa altura, já estava a pensar noutras coisas. Encarei sem grande drama. Percebi que seria mais fácil assim. Se estivesse a choramingar seria mais difícil.
Como é que os amigos de escola lidaram consigo?
Foram espetaculares. Ajudaram-me muito. Diziam que eu estava sempre muito bonita. Quando me viram a chegar à escola novamente, deram-me muitos beijos na cabeça. Fui muito bem aceite pelos meus amigos. Se já tinha amizades fortes, com a doença ainda mais amigos fiz. Depois, houve o trabalho entre os professores que eram excecionais, pois conversavam muito com a minha turma. Além disso, a minha irmã também andava na minha escola, o que facilitava a integração. Fui muito acarinhada no geral. Aliás, é interessante porque a escola era o meu porto seguro, apesar de a minha escola ter 800 alunos. Sentia-me muito bem na escola.
Conseguiu ver o cancro de outra forma e começou a utilizar o humor como uma ferramenta para desmistificá-lo. Como é possível fazer rir pessoas com doença oncológica?
É exatamente através do que tenho vindo a dizer. Desde ir à escola a divertir-me com as coisas normais que eu fazia, a minha vida continuou a ser a minha vida. Continuei a fazer as mesmas coisas, as mesmas brincadeiras, ia às festas de aniversário. A Marine não desapareceu só por não ter cabelo e essa atitude é que é o Cancro com Humor. É conseguirmos ser nós próprios. Comecei a namorar, dei o meu primeiro beijo e estava com o cabelo curto com 14 anos. Fiz a minha vida como ela haveria de ser. A doença não pode dominar a nossa vida na totalidade. O humor entra aí. Nessa leveza que se pode ter. Não vivi para a doença, vivi para a minha vida e a doença fazia parte dela. É aí que está a diferença.
Com o objetivo de inspirar outras pessoas na mesma situação, em 2013, decidiu criar um blogue e, de seguida, lançar o seu primeiro livro “Cancro com Humor”. Como foram recebidos estes dois projetos por parte do público?
Quando criei o blogue sabia que estava a fazer algo inédito. Ainda não se falava de cancro desta forma e queria ajudar, transmitir e contar a minha história com humor e muito boa disposição. Começou com uma página de Facebook. Quando criei a página, aquilo foi uma loucura. Comecei a ter muitas partilhas. Fui convidada para ser entrevistada pela Conceição Lino, da SIC, e ainda não tinha projeto quase nenhum, só um blogue. Foi absolutamente assustador porque sabia que ia ter impacto, mas nunca na vida pensei que fosse tão rápido. E esse rápido assustou-me bastante. Comecei a ter jornalistas da TVI, da SIC e da RTP em minha casa, à espera uns dos outros para me realizarem uma entrevista. Tinha 21 anos e ainda nem sabia o que ia fazer com o projeto. As coisas cresceram mais depressa do que aquilo que estava a conseguir acompanhar. De seguida, lancei o meu primeiro livro e comecei a realizar palestras. Tive de recuar um pouco porque, para as coisas ficarem bem feitas, é preciso ter tempo e não gosto de ser atropelada. Foi muito violento no início, mas acabou por ganhar o seu ritmo e, ao longo destes oito meses, consegui chegar a vários doentes.
Partilhar para ajudar os outros
Também realiza diversas palestras motivacionais a doentes, nomeadamente, crianças e jovens. Uma vez que já passou pela mesma situação, que palavras encorajadoras lhes transmite?
Não consigo resumir em duas ou três palavras. Quando faço uma palestra motivacional, partilho a minha história e a ideia aqui mesmo é transmitir uma história de superação para que eles percebam que é possível, independentemente do que nos aconteça. Temos de ser felizes com a nossa condição, com aquilo que estamos a viver. Claro que nem toda a gente se identifica com a temática do cancro, mas não tem de ser com este assunto porque todas as pessoas têm os seus problemas. Não tem de ser uma doença, pode ser uma dificuldade qualquer. Tento encorajar através da partilha. Não tenho palavras ou uma fórmula mágica porque não encontro respostas para nada. Não acho que saiba mais do que ninguém, só partilho a minha história e crio algum tipo de identificação. Quando ouvimos alguém a dizer que ultrapassou um problema e nos identificamos com ele, é o suficiente para nos dar força. Se aquela pessoa conseguiu, eu também vou conseguir. O meu objetivo é transmitir alguma força através da minha história.
Chegou a viajar para o Brasil e para Cabo Verde para apresentar palestras. Como descreve a experiência de comunicar com pessoas de outra cultura e mentalidades?
É completamente diferente realizar palestras cá e lá. Curiosamente, foram os sítios onde gostei mais de fazer. Para já, não me conheciam de lado nenhum, não havia identificação e supostamente era mais difícil, mas foi mais fácil. Tanto no Brasil, como em Cabo Verde, as pessoas são muito sorridentes e bem-dispostas, por isso receberam o Cancro com Humor muito bem. Em Cabo Verde, os recursos são outros, são menores. Tive de falar mais na questão da prevenção e noutras temáticas mais básicas e que em Portugal já são abordadas de outra maneira. Havia muita abertura de toda a gente. Senti que fui muito, muito bem recebida. No Brasil, em relação ao humor, houve uma identificação direta, porque tenho muito espírito brasileiro, especialmente, no Carnaval. As pessoas se estiverem no Carnaval, mais felizes são. Com esse espírito foi extraordinário. Na primeira palestra, não couberam todas as pessoas, pois eram mais de 600 alunos de saúde. A adesão foi muita porque as pessoas são ativas, bem-dispostas, não têm tabus. Essas palestras vão ficar para sempre no meu coração.
Após estas palestras, foi convidada pela Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica a apresentar a primeira Gold Ribbon Awards, em Bruxelas, numa gala que homenageia personalidades na área da oncologia pediátrica. O que representou para si este desafio?
Foi uma experiência única na minha vida e a mais difícil porque o meu “calcanhar de aquiles” ainda é o inglês. Fazer humor noutra língua que não te sentes à vontade foi muito difícil para mim na altura, mas depois consegui. Correu muito bem, diverti-me imenso. Eu e o meu namorado éramos os mais bem vestidos (risos). Aproveitei aquela experiência. Foi um momento extraordinário e enorme honra. Eu estava ali com pessoas que se destacavam na área da oncologia pediátrica, não só profissionais de saúde, mas também investigadores, políticos, etc. Ter apresentado e ter feito cancro com humor foi assim…um dos momentos mais lindos da minha vida.
De modo a chegar um público mais vasto e por ser licenciada em Comunicação Social, escreveu para o Jornal i, para a Plataforma Capazes e ainda colabora com a revista Zen Energy. A partir destes meios, que informações pretende que cheguem às pessoas?
Para o Jornal i e para a Plataforma Capazes escrevi durante três anos. Agora, apenas escrevo para a Zen Energy. Escrevo coisas diferentes. Para a Zen, não escrevo sobre cancro, mas acerca do que me apetece. São textos leves, divertidos e tem um público, bem como uma plataforma que adoro. No Jornal i também escrevia sobre qualquer assunto que me apetecia, apesar de ser a rubrica ‘Cancro com Humor’. Quando escrevo para diferentes públicos, tento explorar diversos ângulos. Onde escrevo mais é nas minhas redes e na minha página onde escrevo sobre tudo. Recentemente, escrevi um poema, pois adoro escrever poesia e é algo que não tenho explorado muito. As pessoas que me seguem e que me conhecem já sabem que escrevo aquilo que me apetece, sem rigidez e sem tabus. Se quiser escrever um poema escrevo, o mesmo se for uma piada. Não sigo uma regra. Sou muito leal àquilo que estou a sentir. Assim é que faz sentido.
Em 2019, lançou o terceiro livro, inspirado nas palestras motivacionais “Se Podes Sonhar, Podes Concretizar”, realizadas em escolas. De onde surgiu esta ideia? Alguma vez sonhou que este projeto tivesse tanto impacto nos jovens?
O terceiro livro não é bem Cancro com Humor. Tem lá uma crónica sobre o facto de ter estado doente, mas não tem a ver com o tema. Está relacionado com o “Se Podes Sonhar, Podes Concretizar”, o projeto que tenho com o Tiago, diferente do Cancro com Humor. Diferente porquê? Porque é para o público juvenil, seja para falar de vários temas da minha adolescência, das minhas experiências na escola, do meu primeiro namorado, etc. Foi um livro que gostei muito de escrever acerca deste projeto, que nasceu da experiência de Tiago Castro na companhia de Teatro EDUCA, onde, durante três anos, fez espetáculos para os jovens dos 13 aos 17 anos. Deve ter chegado aos 100 mil jovens nesses três anos. Como o Tiago poderia contar, era um público amedrontado, falavam pouco uns com os outros antes de começar esta companhia de teatro, mas depois passou a ser o oposto. Pensámos que poderíamos trazer a nossa própria experiência para este público, o nosso testemunho. Desde 2018 que percorremos o país inteiro para fazer as palestras. O Tiago fala meia hora e eu a outra meia hora. Parámos por causa da covid-19. Temos muitas saudades.
Com a pandemia, estão a realizar palestras online?
Neste momento, não realizamos palestras digitais. O que fazemos é uma série chamada “Quem é Boss sabe escolher!”. Já gravámos duas temporadas. É uma produção que teve início no nosso projeto “Se Podes Sonhar Podes Concretizar”, onde fomos convidados pela Associação Nacional de Empresas de Bebidas Espirituosas (ANEBE) para produzir e criar conteúdo que pudesse alertar os jovens para os perigos do álcool. Percebemos que os pontos em comum que existam entre nós e este projeto é que, muitas vezes, temos de saber escolher e dizer que não. O consumo de álcool nestas idades tem a ver com o querer agradar: “Se ele bebe, eu também bebo.” Nesta série, não falamos sobre álcool, mas maioritariamente sobre escolhas. Depois, por consequência, falamos sobre o que é que podemos fazer quando alguém nos oferece uma bebida e não queremos. Passamos muitos dos nossos testemunhos de quando éramos jovens. Chegamos a todo o público jovem, de todos os estratos sociais. Tanto íamos a colégios privados como a escolas mais problemáticas com miúdos com muitas dificuldades financeiras e outros tipos de recursos. Podiam estar em más condições e mal sentados, mas esse público conseguia ser o mais atento. Naturalmente, o público é diferente. Sentíamos que as palestras funcionavam fosse para 40 ou para 300 alunos. Digitalmente, é o conteúdo que agora estamos a produzir. A primeira temporada correu muito bem e as pessoas pediram a segunda. Ainda temos uma coisa preparada para a série, mas por causa da pandemia ainda não podemos concretizar. Quando passar, vamos ter uma nova plataforma de comunicação dentro da série “Quem é Boss pode escolher!”
Onde poderá esse conteúdo ser visualizado?
Em dois sítios. Estamos nas páginas de Facebook, de Instagram e de YouTube Menores Nem Uma Gota, e na nossa página sepodessonharpodesconcretizar.pt, no Facebook.
Sensibilizar e desmistificar em multiplataformas
Recentemente, lançou o “Manual Para Descomplicar o Cancro”. O que é que esta publicação tem de diferente dos outros livros? Qual é o objetivo?
É completamente diferente. Nos textos, escrevo de uma forma, nos livros de outra e nas palestras de outra, pois tenho 60 minutos onde posso dispersar mais. O “Manual Para Descomplicar o Cancro”, no digital, são vídeos curtos, por isso, a informação, as piadas são muito mais diretas. Estar a falar diretamente para o doente oncológico é muito mais difícil, mais arriscado, não existe contexto. Enquanto numa palestra tenho uma hora para explicar, aqui são apenas três minutos e meio. Se a plataforma é diferente, aquilo que faço ou escrevo é distinto. Tudo aquilo que disser tem de ser bem dito e interessante, por isso é que é mais difícil. Mesmo assim, estou a adorar. Posso dizer que não faria este projeto sem o Tiago por que é ele que alinha os textos, edita os vídeos e filma. Sou eu que dou a cara, mas ele trabalha tanto ou mais que eu. É um produto mais bruto, no sentido em que é mais direto e frontal, mas estou a gostar muito.
Onde é publicado?
É publicado pela revista Visão em primeira mão e depois nas minhas redes sociais.
Além disso, também lançou um conjunto de máscaras com a assinatura Cancro com Humor. Como surgiu a ideia e como é que as pessoas podem adquiri-las?
É a maneira muito gira de um doente oncológico mostrar a sua forma de estar. São máscaras divertidas, coloridas, com frases fortes e inspiradoras. Um doente com uma máscara destas é como se estivesse a transmitir uma mensagem: “Estou bem, não quero ser vítima de nada. Estou aqui com uma atitude positiva”. No fundo, é mais uma forma de desmitificar e sensibilizar. As pessoas podem adquiri-las através do site da MU Store, uma loja que trabalha com várias marcas e produtos.
Como lida com a covid-19? Consegue recorrer igualmente ao humor para encarar a pandemia?
Não, é completamente diferente. Primeiro, porque o cancro vi-o na primeira pessoa. Nunca tive covid. Também estou sempre em isolamento. Está a ser muito difícil lidar com a covid porque não tem só a ver comigo. É algo global e que nos cria muitos medos. Tentamos viver todos os dias com boa-disposição e leveza. Nunca parámos de trabalhar, damos o nosso melhor. Como tudo na vida, há dias muito bons, outros muito maus, há dias assim assim.
Quando tiver filhos, que mensagem lhes pretende transmitir sobre a sua luta?
Para já, não sabemos se vamos ter filhos ou não. Ainda vivemos um dia de cada vez e não estamos nessa fase. Se tivermos, vou estar preocupada em serem boas pessoas, com o coração no sítio certo, serem melhores todos os dias e felizes. É só isso que me interessa. Depois, o resto faz-se. As pessoas têm logo muitos planos para os filhos. Querem que façam e sejam isto e aquilo, que estudam e sejam muito inteligentes. Não quero nada disso, mas sim que sejam felizes. Que consigam encontrar a felicidade nas pequenas coisas. Não quero miúdos egoístas e materialistas. De certeza que não vou ser aquela mãe que vai enchê-los de presentes e dar-lhes tudo no Natal. Tenho pavor a isso. Ainda agora tive a ver um vídeo de uma miúda que começou a bater com os pés e a gritar porque a mãe lhe tinha tirado o telemóvel. Eu não sou assim. Sempre fui uma miúda humilde, com plena noção do dinheiro. Os meus sobrinhos são os miúdos mais felizes e gratos, mesmo quando apenas lhes dão umas pintarolas. Não gosto nada de ver as pessoas a dar muitas coisas aos filhos porque a vida não é cheia de coisas. A vida é uma luta constante.
Em relação ao cancro, irei transmitir-lhes a minha história com naturalidade. Vou dizer-lhes que a mamã teve um dói-dói. Não tenho qualquer tipo de tabus porque isso é que origina aquelas vozinhas na cabeça. Eles vão conhecer o trabalho da mãe e vão ver que é natural falar sobre o cancro ou de outra coisa qualquer. A comunicação é muito simples.
De que maneira, tudo o que passou tem influencia no seu futuro?
Influencia totalmente. Influenciou a minha forma de estar, ajudou-me a viver mais no presente, a ser sonhadora. Transformou-me numa pessoa de fé e vai influenciar sempre porque são muitos anos a trabalhar nesta área que amo. Acaba por me ajudar a não esquecer de onde vim e a conhecer pessoas muito interessantes. Sempre que conheço outras histórias, acabo por perceber que a vida é muito valiosa. Ajuda-me a relativizar os problemas, por isso influencia a minha vida completamente, mas no bom sentido. Só retiro coisas positivas daqui.