A inesperada paixão pelo mundo das artes começou muito cedo e nunca se imaginou a fazer outra coisa. Hoje, com mais de 50 anos de carreira e com 75 de idade, a atriz Lia Gama revela que continua a ser a mesma rapariga destemida que era quando se iniciou no mundo do espetáculo.
No anfiteatro do jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, numa conversa descontraída em dia de pausa nas gravações do seu novo projeto, Maria Isilda da Gama Gil desvendou ao UALMedia um pouco da sua vida. Em entrevista, Lia Gama fala da sua infância e adolescência, do filho e dos dois netos, dos tempos em que começou a trabalhar no mundo das artes e das dificuldades de se trabalhar em Portugal.
Não esconde que teve uma infância difícil… O que recorda com mais felicidade e saudade desses tempos?
Falas da entrevista ao “Alta Definição”?
Sim.
Aquela conversa no “Alta Definição” foi consequência de uma entrevista escrita que dei não sei onde e pegaram nesse tema da infância. Para uma atriz com um percurso de 50 e tal anos de trabalho, não é a coisa mais interessante [de se falar], quer dizer, no fundo é um fait divers de uma vida e todas as pessoas têm a sua história. Fui realmente uma criança maltratada e deixei avançar o entrevistador, neste caso o Daniel Oliveira, por esse caminho porque é o que vende mais! (risos) São os dramas das pessoas, a lágrima ao canto do olho e não se pode falar realmente de coisas trágicas da nossa vida sem emoção. Foi isso, deixei-me ir por aquele percurso porque pensei que era importante, numa altura em que se fala tanto, e com razão, da violência doméstica…
Na adolescência, antes do mundo do espetáculo, o que pensou que poderia vir a ser a sua profissão?
Repara, eu estreei-me adolescente, comecei a fazer teatro tinha 15 anos. Era adolescente e, para mim, foi sempre a profissão que quis ter. É estranho e bizarro porque era e sou de uma família provinciana pequeno-burguesa. Nada fazia crer que queria ser atriz. Provavelmente, nos anos 50, quando sonhei “quero ser atriz, quero ser atriz”, estaria influenciada pelos filmes. Sempre fui muito cinéfila e, sempre que podia, ia ver cinema, e mesmo teatro. Comecei a ver teatro muito cedo, a minha família ia ao teatro e eu via. Foi sempre o que eu quis ser: atriz, atriz, atriz, artista! O que dizia quando era miúda era: “Quero ser artista!” E a verdade é que assim que pude libertar-me do jugo familiar, saí de casa e com 15 anos estava já no Teatro Monumental, numa peça com a Laura Alves chamada Margarida da Rua. Depois interrompi e, com 18 anos, profissionalizei-me, estreei-me e nunca mais parei.
Estreou-se no teatro em 1963 e no cinema em 1967. Tem uma carreira de sucesso, com mais de 50 anos, como disse. Tem a vida com que sempre sonhou?
(Risos) Quer dizer, tenho a profissão que escolhi, tenho a vida que desejei ter, o percurso foi traçado por mim. Não há dúvida nenhuma, o livre-arbítrio funciona. É assim… quando se quer muito uma coisa e se luta por ela, consegue-se. Mas vivemos em Portugal e a realidade portuguesa é uma realidade, a nível das artes, muito… bem, é um país ingrato. Há pouco reconhecimento do trabalho dos artistas em geral, dos pintores, dos escritores, portanto, é uma vida muito difícil. Não estou arrependida de todo, não poderia nem saberia fazer outra coisa, houve mesmo alturas da minha vida em que pensei: “Eu tenho de arranjar outra solução, mas que solução? Eu não sei, nem quero saber fazer mais nada.” É uma profissão ainda por cima em que estás sempre a aprender, é um work in progress, e mal do artista que pensa que já sabe tudo. E no teatro, a arte de representar está sempre em mutação. Estão sempre a aparecer novas propostas, novos atores, novos dramaturgos, é muito dinâmico como profissão, como arte. Não poderia fazer outra coisa.
“Não é bom para os filhos serem ‘filhos de’, eles devem ter a sua própria identidade”
Ter sido mãe solteira prejudicou alguma vez a sua carreira?
Não fui mãe solteira, fui mãe casada! (risos) Não assumi um filho só para mim, ou seja, tive um filho de alguém que quis, por quem me apaixonei muitíssimo, e que, creio eu, se apaixonou por mim e tivemos um filho. Tivemos um casamento que durou muito pouco tempo. Mas é assim a vida, não é? Na realidade, criei o meu filho sozinha. O conceito de mãe solteira, sobretudo na minha geração, era muito “eu quero um filho para mim, vou criá-lo e não tem importância nenhuma quem é o pai”. No meu caso, não foi assim. Foi mais: “Quero ter um filho porque gosto deste homem, quero ter um filho de uma paixão!” Mas, realmente, os homens têm essa… (risos) particularidade: depois seguem outras vidas, vivem outras vidas e esquecem um bocadinho o que está para trás, negligenciam o seu lado de pai. Foi um bocado o que aconteceu com o meu filho, o pai era um pai ausente. Só estava presente quando queria, quando lhe apetecia e, numa certa altura, quase não estava [presente]. Na realidade, fui eu que o criei e eduquei, e acho que cumpri razoavelmente a minha função de mãe.
E foi fácil gerir tudo isso?
Não foi fácil, não. Foi muito difícil de gerir, porque o meu filho viveu sempre comigo até se casar. Tive muita cumplicidade com ele. Tive a sorte de ter um filho muito cúmplice e que andava sempre comigo, ia comigo para os teatros. O mundo dele foi sempre o meu, até ele próprio criar o seu caminho, rumo e mundo, mas mesmo assim acabou por estar ligado à minha profissão. Não é ator, mas é luminotécnico. Realmente, ele também não conhecia outro mundo, só conhecia o meu (sorriso) e foi sempre um filho fácil de criar. Tive muita, muita, muita sorte.
Esse filho tem agora 46 anos e é pai dos seus netos, com 18 e 13 anos. Eles sempre lidaram bem com a sua profissão e com o facto de ser uma cara conhecida do público?
Acho que sim, acho que os netos lidam melhor do que o filho. Não é bom para os filhos serem “filhos de”, eles devem ter a sua própria identidade. Ser filho da Lia Gama, ser filho de não sei quantos, não tem graça nenhuma. O meu filho esquivava-se um bocado a isso até ele próprio passar a ser figura pública. Aos 8 anos, fez um anúncio que foi histórico, um anúncio da Nesquik, e deixou de ser o “filho de” para passar a ser o Nesquik. Ali acabou aquela coisa de ser “filho de”. O meu neto mais velho também não diz que é meu neto, cada um preserva a sua identidade própria. Acho é que eles têm muito orgulho nisso, sobretudo o mais pequeno que também diz que quer ser ator. (risos)
“A vida é curta demais para aquilo que há para ver, para fazer, para aprender”
Foi recentemente homenageada na 7ª edição dos Prémios Sophia e foi-lhe atribuído o galardão Carreira 2019. Como se sentiu com esta homenagem?
Orgulhosa, agradecida… Fiz muito cinema, sobretudo naquelas décadas de 70/80. Há mesmo um filme que marca, quer eu queira quer não, que é o “Kilas, O Mau da Fita”, do José Fonseca e Costa. Foi um filme que teve um enorme êxito, embora eu tenha feito outros filmes muito interessantes, mas com menos público e menos reconhecidos… Fiquei um bocadinho estigmatizada no cinema com aquela personagem, a Pepsi-Rita, que era muito forte. Em Portugal, há um bocadinho isso: quando fazes uma personagem, ficas com o rótulo… Eu gosto de ter papéis de personagens que não tenham nada a ver comigo. Quanto mais antagónicas, melhor, porque melhor se pode construir e inventar uma personagem dentro de nós, ela começar a ganhar forma. É estranho. Agora estou a começar um trabalho e, quando se começa um trabalho, não se sabe bem por que ponta lhe pegar, mas as personagens falam diferente de nós, respiram diferente de nós, andam diferente de nós e é preciso encontrar-lhes a voz, o corpo e depois o interior, a alma… É preciso inventar, imaginar tudo na biografia da personagem. Como come, como dorme e que seja o mais antagónico de mim possível. Isso é fundamental num ator.
Está agora a gravar a nova novela da TVI, Prisioneira. Como está a decorrer o processo de criação desta nova personagem?
Ainda ando à procura (risos), porque as personagens de novela são muito fragmentadas e vivem muito do imediatismo. Nós temos que ver e vencer, tem que sair quase à primeira. Não é como no processo teatral em que temos um espaço para preparar a personagem, para ensaiar diariamente. O teatro, para quem faz televisão, é fundamental porque é um laboratório. Em televisão, não temos tempo: lemos, imaginamos, supomos, há ali uma direção rápida, ensaiamos, gravamos, e já está. Eu fico sempre com aquela sensação de que ficou aquém, que um bocadinho mais e ficaria melhor, mas esse imediatismo também é bom. Mas, no princípio do arranque de uma personagem, ainda andamos à procura do corpo e até da voz. No outro dia, comecei a gravar uma cena, ensaiei e acabei de ensaiar para gravar, e disse logo: “Não é nada disto, não é nada disto…” Nem o registo vocal era aquele que penso que a personagem tem. O início de um arranque de novela é complicado.
Como é estar quase a completar 75 anos?
É muita vida! (risos) É muita vida vivida e, aliás, eu não vivi uma vida, vivi várias vidas dentro da vida. Quem está atento e quem vive, vive várias vidas numa vida e 75 anos já é muita idade e é terrível quando tens a cabeça e o espírito do princípio da idade adulta, de quando se começa a ser gente. Eu, quando era jovem, achava que uma pessoa com 75 anos estava a cair da tripeça e isso é difícil porque há de haver um momento em que há um bloqueio, não sei… Gostava de viver ainda mais anos porque gostava de ver os meus netos criados, na vida deles, gostava de estar para acompanhar, para apoiar, para estar e para ver. Mas sinto-me muito jovem. Bem, o corpo já começa a vacilar e também há muito peso de vida. O trabalho do ator é um trabalho muito feito à base do corpo, sobretudo no teatro e nas novas expressões, que têm 30 anos ou 40, do teatro moderno e do teatro contemporâneo, que não vive só da palavra, o corpo tem muita função. Às vezes, tratamos um bocadinho mal o corpo, fazemos maus aquecimentos, preparamo-nos mal, negligenciamos alguma dor e, depois, a uma certa altura, deixa sequelas. Tenho problemas de coluna, mas é o único problema que tenho. Estou preparada para o envelhecimento e, naturalmente, para me ir embora quando chegar a minha altura. Mas é estranho, digo-te que é francamente estranho e bizarro. Eu não sinto a idade que tenho e, no entanto, é muita idade e a vida é curta demais para aquilo que há para ver, para fazer, para aprender. Eu não acredito que um dia destes já terei de me ir embora e não fiz nem metade do que queria ter feito. Não li nem um décimo do que queria ter lido, não viajei o que queria ter viajado, portanto, a vida é curta e isso faz confusão. Não tenho medo da morte, não tenho medo da vida, sou muito destemida, temerária, sou uma rapariga que sempre se atirou muito para a frente. Não é medo de morrer, é uma consequência de viver, é achar que ainda há muita coisa para fazer e que não fiz. É isso, é uma frustração (risos).