Jovem médico, João Rodrigues realizou a sua tese de mestrado sobre “Saúde Trans”. Para o fazer, esteve seis meses a entrevistar pessoas transgénero nas consultas de Sexologia. Após a tese, sentiu necessidade de criar a Associação Anémona, para prestar apoio e ajudar essas pessoas nos cuidados de saúde.
No curso de Medicina existe uma ampla diversidade de temáticas a serem trabalhadas e focadas. Porque escolheu a temática “saúde trans” para o mestrado?
Sempre gostei muito da temática dos direitos humanos, foi também por isso que entrei em Medicina. Quando cheguei à faculdade, conheci a Doutora Zélia Figueiredo, que é uma médica que acompanha há muito tempo pessoas transgénero e fiquei muito desperto para essa realidade, e pela vivência dessas pessoas. Como sou LGBTI, sou queer, e porque foi a comunidade trans que iniciou ou esteve sempre na frente desta luta, então, sentia-me em dívida e acho que a sociedade no geral está em dívida com as pessoas transgénero. Foi por estes motivos que escolhi a temática, quis escolher um tema que me fosse mais próximo.
Existe uma estratégia de saúde para pessoas LGBTI, por parte da Direção-Geral da Saúde (DGS), publicada em 2019, que revela avanços positivos na promoção de saúde, através de políticas e normas nacionais que fomentam a equidade dos serviços de saúde. Houve um avanço positivo desde então, como a DGS revela?
A existência desta estratégia é positiva, pois significa que há o reconhecimento desta necessidade. No entanto, o avanço da estratégia não foi aplicado, tanto é que eles falam em um [grupo] – não quero estar a dizer mal -, mas penso que é um grupo de coordenação que seria criado e nunca foi. Com a pandemia, obviamente, houve coisas do SNS que ficaram para trás e esse grupo foi uma delas.
No entanto, já reunimos com o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, pois há um interesse em retomar e em reconhecer o que não foi posto em prática. Esse guia tem muitos conceitos, tem alguma orientação e há sempre algum documento da DGS que podemos utilizar para chegar aos médicos. Os médicos gostam muito de bibliografias e normas, então o documento é muito útil. Na Associação Anémona fizemos o nosso guia, mais direto e mais acessível, com alguns termos que consideramos mais apropriados e mais necessários, usando o guia da estratégia da DGS como bibliografia.
Portanto, não acredito que tenha sido aplicado e que tenha sido eficiente, não acho que tenham conseguido pôr em prática aquilo que era pretendido, mas já é um avanço, é um reconhecimento. Mas não acredito que a estratégia da saúde para pessoas trans da DGS tenha sido aplicada.
“Não faz sentido existir esse excesso de critérios em Portugal”
Discriminação ou preconceito por parte de profissionais de saúde, falta de conhecimento por parte dos profissionais, falta de normas de saúde a serem seguidas no tratamento da pessoa trans e também o longo tempo de espera para conseguir consultas especializadas para que seja possível realizar as cirurgias. O que tem mais peso no acesso aos cuidados de saúde no SNS por parte da pessoa transgénero?
Com base naquilo que estudei, assisti, li e no que me disseram durante as entrevistas que fiz para o mestrado, seria a discriminação e o desconhecimento porque elas andam lado a lado. Muitas das vezes, os médicos discriminam não intencionalmente, mas sim porque não sabem. A falta de conhecimento e de formação é um fator importante como barreira de acesso a cuidados de saúde. A discriminação é um fator social, a nossa sociedade ainda tem muitos passos para dar no sentido da integração de grupos minoritários. Quando falamos de mulher trans, e principalmente mulher transgénero negra imigrante, entramos num caminho de discriminação e, de facto, o SNS é um espelho do que é a sociedade. Só que algumas pessoas precisam do SNS para a sua transição, então o sistema tem que ser seguro e acessível para todas as pessoas.
É necessário um conjunto de requisitos prévios à realização de intervenções cirúrgicas, tais como o acompanhamento médico durante todas as fases do tratamento de redesignação de sexo, ser maior de 18 anos e ser considerado capaz, a obtenção de dois diagnósticos de disforia de género e a emissão de um parecer por parte da Ordem dos Médicos. Faz sentido a necessidade de tantos critérios e tanta burocracia para a realização das intervenções cirúrgicas em pessoas trans?
Não faz sentido existir esse excesso de critérios em Portugal, se nas guidelines mais utilizadas no mundo não existem todos esses critérios. Então, temos uma ótima noticia e estamos felizes com isso, é uma luta que há anos se tem feito. Ainda não foi publicado, mas estamos a divulgar entre as associações que esse relatório caiu. No relatório não dizia que tinha que ser obrigatório o parecer médico, no entanto, no sistema público requisitavam-no sempre e as pessoas eram obrigadas a ter essa aprovação da Ordem dos Médicos. Porém, no sistema privado muitas vezes não era requisitada a aprovação.
Não será mais necessário em Portugal o parecer da Ordem dos Médicos e, a nível das normas internacionais, a WPATH (World Professional Association for Transgender Health) divulgou que irão sair novas normas. Pelo que vi, será um ano de hormonoterapia antes de realizar alguns procedimentos cirúrgicos e existirão outras alterações.
“Não queríamos ser necessários, pois o centro de saúde deveria fazer isso por si só”
Em Portugal, existem algumas associações como a ILGA, trans.missão, rede ex aequo, entre outros projetos, a pensar na comunidade trans. Porquê criar o projeto Anémona e qual a diferença desse projeto para os já existentes?
O projeto Anémona nasceu da necessidade de conseguir um médico da medicina geral e familiar que encaminhasse um utente que vivia em uma cidade no interior do país, para que a pessoa conseguisse iniciar o seu processo de transição. Foi muito difícil conseguir porque a pessoa não queria ir ao seu médico de família. Então surgiu a ideia de fazer uma ponte com todos os contactos que eu tinha para que fosse possível arranjar alguém que pudesse examinar a pessoa e fazer o encaminhamento para os locais certos. O projeto começou assim, e é exatamente o diferencial da nossa associação. Como temos muitas pessoas da área da Medicina, sabemos quais as necessidades, a falta de informação dos profissionais de saúde e sabemos como podemos facilitar o processo, que é cheio de burocracia. Então, temos aqui uma diferença, pois queremos dar formações aos profissionais de saúde. Queremos ajudar numa área que as outras associações, como não estão dentro do SNS, muitas vezes não conhecem bem. Não queríamos ser necessários, pois o centro de saúde deveria fazer isso por si só.
O projeto Anémona pretende fazer formações a profissionais de saúde pelo país inteiro, ter as suas normas publicadas e realizar estudos científicos, contribuindo para avanços na saúde nesta área. Durante esses meses de existência do projeto, conseguiram realizar algum dos vossos objetivos?
Estamos a caminho dos primeiros cem profissionais de medicina geral e familiar. Temos feito vários comunicados já a pensar numa estratégia para mudar a forma como a DGS escreve algumas normas: ter cuidado com o género, as características sexuais e a própria linguagem que eles utilizam que exclui pessoas. Fizemos um abstract sobre os rastreios de cancro da próstata, da mama e do útero em pessoas trans e não-binárias, porque achamos muito importante falar disso. Nesse momento, todas essas pessoas estão excluídas dos rastreios devido à forma como as informações estão escritas no sistema. Fizemos várias apresentações para alguns centros de dia nos Açores e para algumas faculdades médicas. Temos a nossa norma que é baseada na estratégia da DGS com algumas adaptações.