Psicóloga clínica e do desporto, Ana Bispo Ramires intervém em múltiplas áreas e desenvolve atividades com indivíduos dos mais diversos campos profissionais: atletas, treinadores de alta competição, gestores de topo, médicos e militares. Licenciada em Psicologia Clínica, mestre em Psicologia Desportiva e graduada em Mental Health in Elite Sports pelo Comité Olímpico Internacional (COI), possui um extenso percurso profissional. É coordenadora do projeto Grupo de Atuação em Psicologia e Performance (GAPP), com o intuito de oferecer um maior suporte aos atletas. Em 2017, foi convidada para integrar a direção de Medicina do Comité Olímpico de Portugal. Nesta entrevista, Ana Bispo Ramires fala sobre a saúde mental no desporto de alto rendimento. A psicóloga apela para que, em Portugal, se aposte mais na prevenção deste problema e adverte para a necessidade de haver mais psicólogos especializados em desporto.
Sendo psicóloga clínica decidiu especializar-se em psicologia do desporto. Porquê esta área?
Tenho mais ou menos 25 anos de carreira e, quando iniciei em psicologia clínica, a minha área de interesse sempre foi a promoção de competências, ou seja, trabalhar na prevenção. Na altura, a área que mais disponível estava para este tipo de trabalho era a do desporto. Acabei por cruzar duas áreas que gostava.
Como psicóloga de desporto quais os principais problemas dos atletas e outros profissionais que a procuram?
Ao longo da minha vida vieram ter comigo, sem estar em crise, se calhar dois ou três atletas e dois ou três treinadores. Não mais do que isto. Um deles foi o Rui Patrício. Viu-me numa conferência e pensou: espera aí que tenho coisas para aprender! Trabalhámos juntos durante cinco anos. Em Portugal, ainda está tudo muito instituído. Primeiro, tenho um problema, depois é que vou procurar ajuda. Frequentemente, os atletas vêm ter connosco quando estão em processos de lesão ou em modalidades coletivas, quando estão a ser suplentes. Ainda nos surgem também, em fases mais à frente, quando os problemas já estão instalados.
Que ferramentas utiliza quando trabalha com os atletas?
Não consigo dizer que ferramentas são utilizadas porque é tudo muito específico e individual. Existem as mais conhecidas que são as do relaxamento, da meditação, do estabelecimento de objetivos e da visualização mental. Na realidade, quando um atleta de topo bloqueia, às vezes é por outras razões emocionais. Nos Jogos Olímpicos, um atleta bloqueia porque, de repente, dá-lhe um clique e algo surge ali com um peso enorme. Portanto, é preciso desbloqueá-lo e ajudá-lo a voltar ao seu nível anterior de mindset para competir. Passar ferramentas básicas é fácil, é como ensinar a correr ou a nadar. O importante é ajudá-los a perceber quais é que são os triggers que os bloqueiam e como é que se podem desbloquear. Isto implica do próprio especialista que trabalha com os atletas um nível de entendimento muito evoluído daquilo que é o funcionamento humano.
“Os atletas de alta competição têm níveis de exigência maiores”
Além de Rui Patrício, já acompanhou outros atletas de alta competição como Leonor Ramalho (cavaleira de Dressage) e Ricardo Janota (jogador de futebol profissional). Quais os principais problemas com que os atletas de alto rendimento se deparam?
Os atletas de alta competição têm níveis de exigência maiores. Uma das suas características é o perfecionismo, portanto, se o botãozinho do perfecionismo não está bem regulado, vão começar a acumular frustração e emoções negativas que não ajudam a estarem da melhor forma. Como os níveis de exigência e a especificidade do seu desempenho acontecem em contexto, onde todos trabalham tudo e tão bem, obviamente, que nuns Jogos Olímpicos e nos grandes palcos vai prevalecer o atleta que melhor conseguir gerir as suas emoções naquele momento em particular.
Tendo os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 decorrido em contexto de pandemia (COVID-19), quais os maiores desafios que os atletas tiveram de ultrapassar?
A preparação da missão olímpica foi feita em conjunto numa equipa multidisciplinar. Desde cedo, foram feitas formações passando informações aos atletas e equipas técnicas sobre que contexto encontrar para, de alguma forma, terem níveis de adaptação superiores. O Comité Olímpico não trabalha diretamente com os atletas, mas sim, com as federações. Fomos passando informação pertinente, mesmo em plena época de COVID, para que os atletas fizessem melhor adaptação aos constrangimentos que estavam a ter nas suas práticas.
Há cinco anos, foi convidada para integrar a direção de Medicina do Comité Olímpico de Portugal e acompanhou 92 atletas portugueses nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. A nível psicológico, como trabalhou com os atletas?
No cenário da missão, na realidade, não trabalhei com os 92 atletas. Estive disponível para trabalhar com os atletas que, por alguma razão, já trabalharam comigo. Também trabalhei em articulação com a equipa que lá estava para que, se surgisse algum atleta com um tema em particular, esse pudesse ter apoio imediatamente.
“Um sono com qualidade é a principal bomba de oxigénio que temos”
Num artigo que escreveu para a Tribuna Expresso, fala sobre burnout. Quais os principais sintomas e como pode ser prevenido?
Quando estamos num contexto de maior exigência pode acontecer o burnout. Daí, os atletas terem as redes de apoio à sua volta que devem ajudar a detetar o mais precocemente possível quando as coisas não estão bem. Aquilo que é o padrão normal do atleta e, de repente, começa a ter umas alterações já é um indicador. Pode ser porque quer começar a treinar mais, porque não está disponível para treinar ou está a dormir pior. Por exemplo, o sono é um dos principais indicadores que as coisas podem não estar bem. Um sono com qualidade é a principal bomba de oxigénio que temos para estarmos bem do ponto de vista emocional e cognitivo. Quando há alteração a esse nível, é logo para avaliar. Quanto ao prevenir, há uma regra básica que é o q.b. da culinária, o quanto baste. É isso no que comemos, dormimos ou treinamos.
Portugal é um dos países da OCDE que mais consome ansiolíticos e antidepressivos, segundo dados do Infarmed. Isto diz muito sobre a importância que o país dá à saúde mental?
Portugal tem, além desses indicadores, menos literacia emocional. Somos menos bons a identificar, a reconhecer e a trabalhar emoções. Estas duas variáveis não são fantásticas. Com a COVID exacerbou-se ainda mais. Foi uma espécie de peneira que veio mostrar o que não estava bem nos indivíduos, nas famílias, nas empresas e organizações. Quem tinha recursos ficou melhor, quem não tinha recursos ficou pior. O problema é que, ainda não tínhamos tirado a máscara, surgiu uma guerra na Europa. Já estamos há quatro anos num contexto de incerteza gigante que instabiliza as pessoas e, por isso, a probabilidade de estas entrarem num quadro de ausência de saúde mental aumenta.
“É difícil encontrar profissionais a trabalharem no alto rendimento”
Num outro artigo de opinião que escreveu para a Tribuna Expresso, fala de analfabetismo emocional e que é necessário investir em literacia emocional. O que é que isto significa?
As gerações mais novas estão a ser treinadas no 2D e não no 3D, ou seja, nas relações através de ecrã. Quanto menos capazes estamos de atuar do ponto de vista social as nossas competências, menos conseguimos reconhecer os estados emocionais que temos. Os miúdos estão a ser programadas para só reconhecerem dois tipos de estímulos: a frustração e a adrenalina. A adrenalina vem dos likes e a frustração vem do aborrecimento. Portanto, a palete emocional é brutal. Se não sei onde estou emocionalmente, como é que sei como vou sair de lá? Hoje, quando pergunto a miúdos que emoção é que estão a sentir, dizem que é uma grande seca e isto não existe. Será angústia, ansiedade, tristeza…? Está estudado cientificamente que os likes dão picos de ativação no nosso cérebro como se fosse cocaína. É por isso que causa adição e as pessoas confundem com felicidade.
Qual a sua opinião sobre a saúde mental no contexto do desporto em Portugal?
Há uns cinco anos, em Portugal, começou-se a dar mais importância à saúde mental. Foram aparecendo mais iniciativas e foi-se falando com mais notoriedade. A questão é que, muito frequentemente, aparecem já a falar de ausência de saúde mental do que da promoção da mesma. Temos de começar urgentemente a falar em promoção de saúde mental, precisamente para não termos de falar da ausência. É necessário um trabalho preventivo de educação nas escolas, nos media e nas empresas, para as pessoas identificarem mais precocemente que as coisas não estão bem e poderem atuar ainda num espectro de saúde e não de ausência dela.
Quais os maiores desafios da sua profissão?
O maior desafio é a empregabilidade. É um tema que já há algum tempo discuto. Em Portugal, não há um rasto muito marcado, é difícil encontrar profissionais a trabalharem no alto rendimento. O desporto não empregou os psicólogos há 20 anos e, por isso, atualmente, carece de psicólogos especializados em alta competição. Isto faz com que haja um outro problema que é o de haver um espaço vazio para os mental coachs que andam para aí a fazer disparates.