Progressivamente afastados do mito da morte, os doentes oncológicos têm vindo a aumentar a cada ano, mas as taxas de sobrevida são cada vez mais elevadas. Hoje, estes pacientes dispõem de um acompanhamento mais personalizado e, em alguns centros hospitalares, de tratamentos tecnológicos cada vez mais eficazes. A Fundação Champalimaud tem sido um exemplo europeu no tratamento do cancro.
Em Portugal, à semelhança do resto da Europa, a incidência de cancro tem aumentado 3% ao ano. O Programa Nacional para as Doenças Oncológicas da DGS destaca os cancros da Mama, da Próstata e Colo-Rectal como os maiores flagelos da população portuguesa. E prevê-se que aumente associado a fatores como envelhecimento da população, estilos de vida pouco saudáveis e hábitos tabágicos.
Para além do evidente esforço na prevenção, a adoção de novas formas de tratamento é essencial. Até ao momento e desde 2012, os portugueses têm acesso a novas formas de tratamento para cancro avançado ou, como os médicos chamam, metastático. Minorar o sofrimento físico e dar mais anos de via ao doente oncológico é o objetivo das equipas de saúde. Parece estar longe o tempo dos tratamentos dolorosos e do estigma físico. Hoje, a inovação científica abarca novas formas de tratamento para minorar efeitos secundários e até de preservação da auto-imagem através de tratamentos que permitam conservar o cabelo.
Alexandra Belchior, enfermeira diretora da Fundação Champalimaud, em Lisboa, recorda-se de tempos onde tratamentos como a radioterapia acarretavam efeitos secundários dolorosos: “Antigamente, os doentes tinham menos sorte, não existia tecnologia. Doentes faziam radioterapia e saiam com queimaduras enormes, sangravam, tinham de ser hospitalizados.” Hoje, a sua instituição trabalha com um equipamento diferente. “A radioterapia de dose única, realizada no aparelho EDGE (Varian) é curta, mata eficazmente as células malignas e não deixa sequelas”, refere. Foi um elevado investimento económico por parte da Fundação Champalimaud, utilizado apenas pelos doentes que pertencem a um subsistema de saúde, como a ADSE, ou têm seguro privado.
SNS sem tecnologia de ponta
O Serviço Nacional de Saúde não dispõe desta tecnologia, nem tem acordos que permitam o acesso aos doentes. Este tema tem feito correr tinta nas páginas da comunicação social. Nuno Pimentel, radioncologista, comenta da polémica associada ao anúncio do novo aparelho da Fundação Champalimaud: “A informação para o público geral é difícil de ser compreendida. Efetivamente, existem aparelhos no País com tecnologia precedente à nossa, que mimetizam a filosofia de tratamento. Ainda assim, o potencial do equipamento é absolutamente determinante no sucesso da técnica.”
O radioncologista refere-se à aplicação da radioterapia como forma de radiocirurgia. “É uma sessão única ou poucas sessões, individualizadas e com apoio de imagem para poupar as áreas corporais e as células saudáveis. Os casos com indicação para a realização deste tratamento têm demonstrado resultados motivadores. Doentes com lesões pulmonares impossíveis de ser removidas por cirurgia convencional, doentes com metástases cerebrais inoperáveis e outras situações como, por exemplo, de cancro ginecológico têm sido tratados com esta tecnologia”, indica. Nuno Pimentel partilha uma história de sucesso: “Tivemos um doente com metastização do sistema nervoso central que pura e simplesmente não andava. Fizemos uma sessão e aguardámos. Ao fim de uma semana, estava de pé, a recuperar a marcha.” Mas esclarece que “a aplicação deste tratamento depende do caso clínico. A decisão parte sempre da equipa multidisciplinar”. O médico da Fundação Champalimaud ressalva que “a taxa de sucesso, o número de sessões e a indicação não são panaceia”, dependem sempre de uma análise cuidada: “Muitas pessoas vêm até nós porque acham que isto é como um medicamento. Aplicável a tudo, de forma igual. Às vezes, é muito difícil explicar que este aparelho não é milagroso nem se pode aplicar a todos os cancros ou metástases.”
Tratamento não invasivo
A gestão destes aspetos cabe, muitas vezes, a Elda Freitas, enfermeira que integra a equipa de radioterapia desta unidade de saúde. Para além do planeamento das sessões e da preparação de doentes e família que tem de realizar, a enfermeira passa muitas horas a desconstruir mitos e a ajustar expectativas. “Fazer radioterapia era associado a dor, sofrimento. As pessoas vêm cheias de esperança e expectativas, que também temos de ajustar; medos que temos de confortar.”
Com a radioterapia de dose única, independentemente de ser realizada na fundação ou nas unidades especializadas em oncologia do Serviço Nacional de Saúde, com equipamento menos específico, os doentes sofrem menos efeitos, melhor tolerância, mas não é a cura. Este aspecto tem sido muito debatido na esfera da oncologia. Como em todas as inovações na área médica, os profissionais depositam as esperanças nesta nova técnica que, apesar de importante, ainda não representa a cura mágica desejada. Todos os profissionais manifestam um misto de excitação e desalento, motivado pelo receio que têm de não ser totalmente compreendidos por doentes e famílias. “Esta técnica de radioterapia é um avanço significativo, mas não pode ser confundida, como tantas vezes acontece, pela cura mágica e universal”, refere Nuno Pimentel.
Por acreditarem erroneamente nesta ideia, cada vez mais doentes acorrem à Fundação Champalimaud, única detentora nacional do equipamento. Procuram uma cura, mas, como afiança Nuno Pimentel, a única garantia que levam “é a da remoção quase cirúrgica do tumor, poupando as áreas adjacentes”. E esclarece: “Se tiver um nódulo do pulmão, com a radioterapia convencional, iríamos irradiar a lesão, o pulmão saudável, o esófago, tudo o que estivesse à volta com efeitos destruidores – sangramento, dor, incapacidade em alimentar-se, internamento hospitalar e perda de qualidade de vida. Hoje, conseguimos melhor, destruindo apenas a lesão, como se colocássemos um bisturi invisível, sem abertura, sem danos”.
Assimetria de acesso à saúde
A expansão desta possibilidade a todos os doentes oncológicos é ainda uma miragem. “A tecnologia é cara e pode existir um aproveitamento dos recursos já existentes em sítios como o SNS”, refere o radioncologista, acrescentando que “a lógica de racionamento e poupança assim ditam segundo o clínico”. No entender de Nuno Pimentel, “a assimetria de acesso torna-se óbvia. Não é uma tecnologia efetivamente disponível para todos”.
Alexandra Belchior considera que a tendência será que “a curto prazo, todos os hospitais, públicos ou privados, disponham dos recursos. É um investimento que demora a ser compreendido. Sem falar do drama humano e do sofrimento, que não têm tradução monetária, a ausência de efeitos secundários e complicações, bem como a recuperação de atividades de vida diária significa poupança para os prestadores de cuidados e, neste caso, para o SNS”.
Os profissionais de saúde da Fundação Champalimaud sublinham que o objetivo máximo dos prestadores de saúde é sempre que todas as pessoas tenham acesso à medicina personalizada e à inovação. “No mundo ideal, não existiriam doenças, nomeadamente cancro, mas tal não será possível. Por mais que tentemos e criemos soluções de tratamento, descobrimos que o cancro está intrinsecamente associado a nós, nos nossos genes, no nosso envelhecimento. Ter cancro é uma doença de envelhecimento, também de estilos de vida e de coisas que podemos minimizar, mas uma parte importante é de envelhecimento e genética. Teremos de aprender a controlá-lo, a viver com qualidade, a tratá-lo para, vivermos com ele”, reforça o médico.