Liliana Valente foi jornalista de política no Público e, atualmente, trabalha na mesma editoria no Expresso. Em entrevista, fala da sua experiência e dos perigos que estão ao dobrar da esquina com a mudança de cultura nos jornais, com a forma como os consumidores obtêm informação e com a falta de pensamento acrítico por parte de alguns profissionais. Mas recusa-se a aceitar que o jornalismo seja o único ou principal culpado pelo crescimento dos populismos e a fragilidade da democracia.
A Liliana é jornalista de política e acompanha, por norma, as questões partidárias. A política foi uma escolha deliberada?
Desde miúda fui muito estimulada ao debate político em casa, muitas vezes sobre política local, mas também entrando em discussões sobre ideologia e política nacional.
O bichinho da política começou desde cedo, diria que em simultâneo com a curiosidade. Cresci com o boom da informação privada em Portugal, com o nascimento das televisões privadas e dos jornais como o Público. Ser jornalista de política foi uma consequência dessas duas paixões. Foi juntá-las numa profissão que é da maior importância para a democracia.
Com fenómenos novos que surgem via redes sociais e crescem sem escrutínio, qual é o papel do jornalismo para evitar a desinformação que pode prejudicar a democracia?
O jornalista não é um mero meio de transmissão acrítico (ou não deveria ser). Temos um código ético e deontológico que temos de seguir. Temos regras, temos cara, temos nome, somos escrutinados. Somos, por isso, mais transparentes do que o que é difundido nas redes sociais, muitas vezes de forma anónima, outras vezes – e tão perigosa – de forma propositadamente enganadora.
O papel do jornalismo sério, credível, objetivo é, por isso, da maior importância. Porque temos de distinguir o trigo do joio, precisamos escrutinar os poderes públicos, defender a democracia através da verdade e da informação séria. É utópico? Talvez. Mas a verdade é que esta é uma das profissões mais bonitas porque, à sua maneira, defende o bem mais precioso que temos. Erramos, sim, claro. Mas, na maior parte das vezes, os erros não têm um propósito escondido. Não poderemos ser justiceiros, mas temos de ser justos e verdadeiros.
“Não retiro culpa aos jornalistas, fizemos muita coisa errada nesta gestão, mas alguém tem de dizer aos eleitores que a culpa também é sua, do consumidor”
Dizem que Donald Trump foi eleito também por aqueles que já não se reviam na forma tradicional de comunicação. O jornalismo político e a sua degradação são também responsáveis pelo crescimento do populismo?
A falta de informação é. Algum jornalismo também. Os jornalistas têm ‘costas largas’ para arcar com as culpas do uso que pessoas mal-intencionadas fazem de novas ferramentas. O jornalismo tem de estar onde sempre esteve, do lado da credibilidade. Creio que muitos dos erros estratégicos que se cometeram foram exatamente dos meios que se desviaram desse caminho, facilitando, não escrutinando como deve ser e até ridicularizando.
É público que alguns meios de comunicação dos EUA se penitenciaram por terem tratado Trump quase como uma anedota, colocando as notícias sobre ele nas secções de fait divers.
Por outro lado, é preciso perceber que as redes sociais, umas de forma mais transparente, outras de forma mais obscura, potenciaram os fenómenos do populismo sem mediador. Os jornalistas serviam de mediação da mensagem, de gatekeepers, as redes sociais potenciaram o contacto direto, eliminaram as barreiras do mediador. A culpa não pode ser de quem foi morto, mas de quem quis acabar com essa mediação e de quem a aceitou, sejam os gigantes tecnológicos, que mudaram os algoritmos dificultando os meios credíveis de comunicação e potenciando os conteúdos virais, sejam os consumidores.
Não retiro culpa aos jornalistas, fizemos muita coisa errada nesta gestão, mas alguém tem de dizer aos eleitores que a culpa também é sua, do consumidor. Tem de ter mais critério, tem de se querer informar e não apenas entreter. Tem de procurar saber mais, ouvir o outro, expor-se a uma pluralidade de argumentos, e não apenas cimentar ideias já feitas, consumindo informação que vai apenas reforçar as suas certezas e não lhe abrir horizontes.
Vejamos, numa análise sem ser científica, o Breitbart, na forma, é um meio que difunde “notícias”. Só difere dos restantes pelo conteúdo e forma de o divulgar. Queremos mesmo que os jornais se aproximem da forma de atuação do Breitbart?
Sobre este assunto, aconselho a ler o livro “How democracies die”, que nos dá uma boa ideia do que se tem passado no mundo.
“Não somos máquinas. Tenho simpatias, amizades que já existiam, tenho o meu próprio pensamento”
Como é que um jornalista, que acompanha a vida de partidos, nomeadamente campanhas eleitorais, que tem também as suas simpatias pessoais, consegue ser totalmente isento perante ideias contrárias à sua?
Não somos máquinas. Tenho simpatias, amizades que já existiam, tenho o meu próprio pensamento. Mas tenho também uma grande vontade de aprender e de ouvir. Não é um equilíbrio fácil, claro que não é.
Recuso-me a escrever algumas coisas sobre determinadas pessoas ou situações que podem comprometer a minha imagem perante o leitor. Não escrevo sobre futebol, por exemplo, seria demasiado óbvio que não conseguiria ser objetiva sobre um jogo do Benfica. Mas escrevo sobre contas de clubes, casos de justiça, se tiver de ser, por exemplo.
Alguma vez se sentiu manipulada por um político? Quer contar o caso?
Boa pergunta para a qual não tenho uma resposta óbvia. O jornalismo faz-se de troca de informações e obviamente que um político, como qualquer pessoa, quando conta um episódio está a contá-lo do seu ponto de vista, de acordo com os seus interesses.
Mas descobrirão os leitores agora que os whistleblowers da história tinham eles próprios os seus interesses (mesmo os mais puros)? Claro que é uma troca permanente e temos de estar sempre alerta e desconfiados.
A nossa arma é a pergunta. Perguntar, perguntar para não sermos enganados. Cruzar informações para validar dados. Mas sim, já me enganaram. Uma alta fonte de um partido deu-me como garantido o apoio do tal partido a um determinado candidato presidencial, porque era a sua visão, mas contou-me como facto consumado. Tal não aconteceu. Aprendi com o erro, não voltei a confiar.
E pressionada para não escrever algo, seja por fontes ou pela própria direção? Como se lida com essas situações?
Que me recorde, nunca senti pressão direta e dita cara-a-cara para não escrever determinada notícia, seja por parte de fontes, seja por parte da direção do jornal. Mas já senti muitos bloqueios.
Como exemplo, posso dar todo o meu trabalho de investigação sobre os incêndios de 2017. O Público teve de ir para tribunal, apresentar uma queixa contra o Ministério da Administração Interna (MAI), para obter informações que deviam ser do domínio público. Foram meses tensos, continuam a ser. O MAI não me responde a perguntas, creio que desde o final de 2017, nem por canais oficiais, nem oficiosos. Estamos bloqueados pelas vias oficiais que deveriam ser as primeiras a funcionar.
Como se contorna isto? Não é fácil, é uma batalha constante de queixas administrativas à Comissão de Acesso a Documentos Administrativos, a “ir à volta” e procurar fontes que nos arranjem os documentos que precisamos, questionar o MAI vezes sem conta até que o assunto se torne premente para outros atores e que aí já sejam dadas respostas.
Como se lida com esta situação é fazermos o nosso trabalho não desistindo nunca, perguntando, perguntando, perguntando…
Qual o trabalho que lhe deu maior satisfação fazer até hoje e porquê?
Toda a investigação que fiz no Público sobre os incêndios de 2017, em particular sobre Pedrógão Grande, que teve como momento principal, para mim, a elaboração durante meses do documentário “Pedrógão Grande – Eis que fazem novas todas as coisas”, estreado no dia 17 de Junho de 2018.
“O mundo está capturado por interesses e o jornalismo não é exceção”
Muitas vezes ouvimos que o jornalismo está capturado por interesses e que isso o irá condenar. O que acha sobre isso?
O mundo está capturado por interesses e o jornalismo não é exceção, parece-me óbvio. A maior parte dos meios de comunicação privados são detidos por empresas que continuam a perder dinheiro para produzir um bem essencial para a democracia. Os meios públicos não são suficientes, porque têm abordagens mais institucionais.
Nos meios por onde passei, nunca senti que os interesses dos meus patrões influenciassem diretamente o meu trabalho. Sempre escrevi o que quis, mesmo quando isso beliscou, por exemplo, os interesses da SONAE. Mas o Público continua a ser um caso muito à parte na nossa democracia e isso é bom. A SONAE não faz do Público o seu meio de propaganda, temos liberdade.
Entende que a necessidade de termos informação ao minuto veio piorar a qualidade do jornalismo?
A informação ao minuto, com as televisões e as rádios, é algo que existe há muitos anos. O que veio piorar, porque acelerou algum conteúdo jornalístico, foi a competição com as redes sociais. Que não devia existir.
Prestar informação rápida não tem de ser necessariamente pior para o jornalismo, há vários tipos de artigos/peças e cada um tem a sua função. Uma notícia de agenda pura e dura, com uma informação rápida, pode ser dada “ao minuto” num online sem que isso prejudique que se faça um trabalho aprofundado sobre o tema. Se a pergunta é sobre os “ao minuto” dos online, diria que não prejudicou o jornalismo, trouxe apenas mais trabalho e necessidade de maior atenção aos jornalistas.
Todos nos lembramos de estarmos ao minuto a ver o ataque às torres gémeas, que aconteceu em 2001, há 18 anos. As televisões passaram horas a fio a transmitir o assunto. No mesmo ano, meses mais cedo, a televisão em Portugal mudou com a queda da Ponte de Entre-os-Rios. Iniciaram aí um caminho de diretos constantes com informação.
É verdade que as televisões, muitas vezes, confundem informação com entretenimento. Cedem ao infotainment e isso, sim, não é bom para o jornalismo. Sobre este assunto, sugiro por exemplo que veja a série “The Loudest Voice”, sobre Robert Ailes, o fundador da Fox News. Uma série que mostra bem como alguns meios fizeram a trajetória errada de se afastarem dos princípios do jornalismo para darem informação em modo entretenimento.
A falta de memória cultural e história da política recente nas redações são obstáculos a uma jornalista que acompanha a vida política portuguesa?
Pela primeira vez em 15 anos de profissão estou, já há três anos, numa redação com memória. Há ainda muitos jornalistas com memória nos jornais e isso enriquece, sem dúvida, o trabalho produzido.
No Público, temos jornalistas como o Jorge Almeida Fernandes ou a Teresa de Sousa que, mesmo não escrevendo, apenas falando connosco, nos dão uma perspetiva diferente das coisas.
O que creio que falta nas redações, mais do que a memória, é tempo. Tempo para pensar. Tempo para discutir, tempo para decidir sobre o caminho a seguir em cada notícia. Tempo para ler e tempo para ensinar. Falta muita discussão nas redações, exatamente porque a nossa profissão tem a pressão constante do tempo. Óbvio que isso piorou com a internet.
Quando comecei a trabalhar, em 2005, n’O Independente, podia passar uma semana a ler jornais, a falar com pessoas, a debater e só depois escrever. A internet acelerou este processo e as redações, em vez de se robustecerem para poderem ter mais massa crítica, ficaram cada vez mais vazias, dificultando a tarefa de pensar e debater antes de escrevermos.
Como se lida com isso, quando se está nessas redações?
Já estive numa redação em que aos 31 anos era das pessoas mais velhas. Fiz parte da equipa fundadora do Observador, onde estive até 2016, e, tirando os elementos da direção e alguns editores, eu era das mais velhas e mais experientes.
Mas era também uma redação diferente, muito mais dinâmica. Não tinha a memória, mas tinha o dinamismo, ideias diferentes, menos institucionalismo, era uma redação mais solta, mais rebelde, mais ousada e isso também faz falta no jornalismo.
Sente que um jornalista que acompanha os temas políticos necessita de um grau de especialização maior dos demais jornalistas?
Não. Precisa, tal como todos os jornalistas, de não desistir de aprender. Temos de ler bastante, não apenas o que os outros escrevem, mas o que se escreve lá fora. Precisamos de não nos fechar no nosso mundo. Ler literatura e ler livros de não ficção.
É verdade que o jornalista de política tem de ter uma sensibilidade diferente para a política, que hoje é muito mal vista, mesmo dentro das redações. Temos de evoluir, nunca deixando para trás os nossos princípios, mas temos de olhar mais para políticas públicas, estudá-las. Temos de perceber de estratégia política e não diabolizar qualquer ação de um político. Precisamos de ter um je ne sais quoi para perceber os jogos de poder, do poder, e não nos deixar enredar por eles.