Depois de muitos anos na RTP e de uma fugaz passagem pela direção da revista Sábado, a jornalista da TVI/CNN é uma referência no jornalismo de investigação. E como jornalista que é, Sandra Felgueiras não foge a nenhuma questão.
Estudou Comunicação Social na Universidade Nova de Lisboa. Em que momento percebeu que queria ser jornalista?
Comecei a perceber que queria ser jornalista com seis anos de idade. Era muito pequena, via muita televisão com o meu tio-avô e na altura só havia RTP. Achava fascinante que um jornalista pudesse dar a volta ao mundo e contar histórias que nenhum de nós conseguia contar porque não estava lá para as ver e observar e, portanto, a minha inspiração vem muito daí, da minha infância, da forma como fui educada, da curiosidade que me acusaram sempre, das respostas que me foram dando aqui e ali e eu achava que precisavam de ser aprofundadas.
Iniciou o seu percurso profissional em 1998 e construiu a sua carreira essencialmente na RTP onde, para além do trabalho de repórter, dedicou-se ao jornalismo de investigação. Considera que a RTP lhe deu ferramentas suficientes para conseguir trabalhar em qualquer canal?
Não acho, tenho a certeza! Mas, acima de tudo, e sem descurar a importância que a RTP tem, devo-o a mim própria. Aprendi que se não se tiver muita resiliência, muita capacidade de aguentar a adversidade, não se chega a lado nenhum. E hoje, a maioria das pessoas, desiste com muita facilidade. Desiste dos sonhos, começa a olhar para eles apenas como sonhos, esquece-se que são sonhos porque nós temos capacidade de os tornar realidade. E eu fui muito assim, lutei sempre por aquilo que queria.
Após a sua saída da RTP, em 2022, passou a fazer parte do grupo Cofina (atual Medialivre) assumindo a direção da revista Sábado. Durou apenas nove meses. O que é que não correu bem para que a passagem tenha sido tão curta?
Nada correu bem! O projeto para o qual fui aliciada não se concretizou e entendi que nove meses era tempo que bastasse para tirar essa conclusão. Portanto, não é propriamente uma recordação boa que tenho, mas, como costumo interiorizar, às vezes é preciso irmos ao inferno para encontrarmos o céu (risos). E, neste momento, estou muito bem, por isso acabo por estar grata. De outra forma nunca teria saído da RTP.
No mesmo ano ingressou na TVI, onde se encontra atualmente. Qual é a sua rotina diária?
A minha rotina é muito diversa, um dia nunca é igual ao seguinte. Mas, se quisermos criar um padrão, diria que todos os dias participo numa reunião de alinhamento do jornal onde definimos os principais temas; depois reúno com a minha equipa de investigação para vermos qual é o andamento das reportagens; e mais ou menos a esta hora (15h) começo a preparar o alinhamento do Jornal.
“O jornalismo nasceu para que as pessoas sejam informadas daquilo que os outros não querem que se saiba”
É apresentadora do Jornal Nacional e da rubrica de investigação “Exclusivo”. O que a motiva a continuar no jornalismo de investigação, mesmo em casos onde há altos riscos envolvidos?
Não sou daquelas pessoas que pensa que isto está dependente de um risco, porque um risco impede-nos de fazermos mais e melhor. Para mim, o jornalismo de investigação é a pedra mais preciosa de todo o jornalismo. É nele que reside a essência deste quarto pilar da democracia. O jornalismo nasceu para que as pessoas sejam informadas daquilo que os outros não querem que se saiba. E o jornalismo de investigação reduz-se a isso mesmo: a descobrir aquilo que os outros não querem que venha à tona. Coisas que não se consegue saber no dia a dia porque nós vivemos na espuma dos acontecimentos, não vivemos na profundidade dos acontecimentos. E eu diria que se me tirassem o jornalismo de investigação era como se tirassem a água ao peixe.
Em 2021, foi considerada pela revista Executiva a 20ª Mulher mais influente em Portugal. O que significou para si?
Significa tão somente o reconhecimento que o trabalho que tenho vindo a desenvolver tem influência nos outros e que pode ajudar na resolução dos problemas. Procuro que o meu trabalho diário seja um trabalho com impacto, que ajude a olharmos para a sociedade de uma perspetiva em que ela seja melhorada e se isso significa ser influente. Da minha parte fico grata, porque é importante perceber que o nosso trabalho não cai em saco roto, mas não significa muito mais do que isso.
“O mundo precisa de nós para que o bem prevaleça e para que as histórias sejam contadas com verdade”
Um estudo apresentado no 5º Congresso de Jornalistas, sobre as condições de trabalho dos jornalistas em Portugal, apresenta dados preocupantes sobre o burnout. Quase metade (48%) tem níveis elevados de esgotamento. Que impacto é que isso pode causar na qualidade do jornalismo?
Muito! Sinto que esta geração não tem a mesma resiliência e resistência para suportar a adversidade e vai muito ao encontro disso. Talvez pela mudança tecnológica rápida nos últimos anos, as pessoas têm tantos impulsos e tantas formas de comunicar, e isso leva a que entrem em burnout. Às vezes não é só pelo trabalho. É pelo excesso de estímulos que têm dentro do próprio trabalho dos quais não se sabem proteger e as redações são muito férteis nesta agitação. Há muito barulho e sem foco não se fazem trabalhos com a exigência que nós temos e eu diria que isso abre caminho fácil ao burnout. Na comunicação social aquilo que me é dado a observar é isso. É muita agitação que faz com que as pessoas se sobrecarreguem demasiado e cheguem completamente esgotadas ao final do dia e ver isto refletido num mês e num ano é uma bagagem para alguns insuportável.
O desaparecimento de Madeleine McCann foi um dos casos mais mediáticos em Portugal. Como foi para si entrevistar os pais da menina após o acontecimento trágico?
A primeira vez que falei com os McCann foi muito perturbador, tinha conhecimento de que havia algumas suspeitas em relação a eles e não sabia como colocar a questão. Não podia descurar nunca que estava a falar com os pais da criança em causa. Quando me apercebi que a essa possibilidade tinha sido ventilada por um agente da Polícia Judiciária que nunca deveria ter sido inspetor, chamado Gonçalo Amaral, e tinha poluído o ar com uma imagem tóxica dos McCann, tive de tomar a derradeira atitude, algo penoso para um jornalista: dizer que fui enganada. E o que uma pessoa de bem deve fazer é reparar o erro. Se a pessoa que está na origem do erro não tem hombridade para fazê-lo, aquele que o propaga tem necessidade de ser capaz. E foi o que eu fiz. Dei uma entrevista à Netflix e agora fiz outro documentário sobre o caso.
A história de Madeleine é uma história que encerra um dos piores capítulos da justiça portuguesa, Há muita gente que continua a achar os McCann os culpados, quando não há nenhuma prova que aponte nesse sentido e quando ainda permitimos que um criminoso como o Christian Brueckner tenha andado tantos anos à solta em Portugal. Violou pelo menos seis mulheres e não sabemos o que terá ou não feito a Madeleine. E isso é uma grande vergonha nacional.
Que legado, no futuro, gostaria de deixar ao jornalismo e gerações futuras?
Que nunca desistam. Não é porque um dia corre mal que o outro vai ser pior. O mundo precisa de nós para que o bem prevaleça e para que as histórias sejam contadas com verdade. Isso é o mais importante para quem quer ser jornalista É essa vontade de verdade que deve ter dentro de si.