Rute Reis Figuinha, mãe de três filhos, relata a metamorfose da sua vida: a morte por suicídio de um filho. Pedro Figuinha tinha 18 anos e 364 dias quando no dia 24 de maio de 2019, véspera do seu 19º aniversário, perdeu a luta contra a depressão.
Afirma que o seu nome é “Mãe”, mãe de três filhos, em que dois vivem consigo neste plano e o mais velho, de 18 anos e 364 dias, resolveu ir para o plano espiritual o resto da vida. Como se faz o luto de um filho que se suicidou?
O luto de um filho que se suicida ou de qualquer pessoa conhecida próxima de nós é um luto considerado mais difícil, porque é um luto “digestivo”, por assim dizer. É uma dor inexplicável e, quando o momento surge, nós queremos morrer com ele. É um sentimento de abandono. Como mãe, sempre fiz tudo para que o meu filho fosse feliz, tanto que ele nunca mostrou ser infeliz. Sentir-me abandonada pelo meu filho foi horrível! Ele abandonou-se a ele próprio, abandonou tudo e todos e matou-se, portanto, é um sentimento indescritível. É como se estivesses a cair dentro de um buraco fundo, negro, onde só existe dor e agonia.
Diz que continuam a ser uma família de cinco e acredita que o serão para todo o sempre. Os seus outros dois filhos vivem diariamente consigo. Não vive permanentemente em ansiedade?
Tornei-me uma mãe ansiosa nos primeiros seis a oito meses, até ao momento em que o meu filho David, com 17 anos na altura, “encostou-me” contra a parede e disse: “Mãe, não me chamo Pedro Figuinha, chamo-me David Figuinha, tenho direito de viver, tenho direito à vida, não vou fazer o que o meu irmão fez, por isso, por favor, deixa-me viver!” Controlava todos os passos dele, queria saber para onde é que ele ia, tentava evitar que ele saísse com os amigos e só depois desta abordagem do meu filho é que percebi que tinha de ter calma. É óbvio que temos de fazer um grande exercício mental para conseguirmos libertar os nossos filhos a pouco e pouco, apesar de toda a história envolvente.
“A partir do momento em que perdi o meu filho Pedro e da forma como foi, venha o que vier, enfrento!”
De acordo com a Psicologia, o luto passa por cinco estágios: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Acredita que o processo passa realmente por estas cinco fases ou difere de pessoa para pessoa?
As fases existem. Elas não têm é uma ordem concreta. Lá está, depende de pessoa para pessoa e não são fases isoladas, são intercaladas. Pode-se começar pela negação: “Não, isto não aconteceu.” Depois, vem a barganha, isto é, quando estamos a negociar com um ser divino, com o universo, para que nos devolva a pessoa que faleceu em troca da nossa vida. Por exemplo, há pessoas que têm logo o momento da revolta no início, de seguida a negação, depois disso a negociação. Acredito que a última seja mesmo a aceitação. Não se aceita, no sentido verdadeiro da palavra, a morte de ninguém. Aprende-se a viver com a ausência. Mas, sim, as fases existem, são aleatórias e dependem de ser humano para ser humano.
Perder um filho é – suponho – sentir a maior dor do mundo. De que forma lida com os problemas e a dor associada a outras situações após a partida do seu filho Pedro?
Ignoro. A partir do momento em que um ser humano, no caso uma mãe e um pai, são sujeitos à perda de um filho, ser que foi gerado dentro do ventre, que foi amado, acarinhado, respeitado, educado e protegido, não há nada neste mundo que seja maior, mais importante, mais avassalador do que a perda de um filho. A partir do momento em que perdi o meu filho Pedro, e da forma como foi, venha o que vier, enfrento! Esta dor não se compara a nada, mas lá está, novamente reforçando a ideia: depende de pessoa para pessoa.
“No meu livro as pessoas conseguem sentir-me através da escrita”
Assume que, para os que ficam, é importante a confiança em algo superior e a fé no futuro, o inconformismo diante da perda dificulta a caminhada. A fé e a crença são determinantes para prosseguir?
Sim, mas quando falo em fé, não falo em religião. Falo em amar a natureza, amar viver, amar os meus filhos, as pessoas que me são próximas, amar o ser humano. Portanto, a fé reside essencialmente no amor. Para se conseguir viver perante a morte de um filho, acima de qualquer coisa, tens de te amar a ti mesmo. Se isso não acontecer, nada nem ninguém te conseguirá ajudar. Porque destabilizas tudo à tua volta. Deixas de acreditar que o sol que aquece o corpo, o copo de água fresca num dia de calor, o olhares o mar ou o contemplares uma serra são fragmentos de felicidade. Não existe um estado pleno de felicidade. A felicidade são pequenos fragmentos que a vida nos proporciona. Tudo o que te proporciona prazer e bem-estar é o que defino como felicidade. Se acredito que a fé é uma peça chave para um pai ou uma mãe enlutados conseguirem viver? É. Porque na fé reside o amor e o amor é a chave de tudo.
O Meu Filho Tem Asas é o título do seu primeiro livro. O que a levou a escrever sobre um tema tão íntimo e delicado?
(Suspira) Conseguiste-me arrepiar com essa pergunta. Primeiro de tudo, salvar é a palavra correta. Depois, imortalizar o Pedro através da escrita. Imortalizar-me a mim também. Um dia, quando fechar os meus olhos, alguém, algures, todos aqueles que ficarem cá para além de mim vão poder saber que houve uma Rute Reis Figuinha, uma mãe que sofreu a pior dor de todas. Depois, foi poder perceber que em tudo o que li, e posso dizer que comprei mais de 400 livros, não encontrei nada que me mostrasse realmente através da palavra o sofrimento da perda de um filho. Era tudo muito esquematizado, muito superficial. No meu livro, as pessoas conseguem sentir-me através da escrita, conseguem perceber aquilo que me estava a acontecer naquele preciso momento. Aborda a depressão, o suicídio, o amor pelo meu filho e, acima de tudo, a vontade de viver. A minha sobrevivência enquanto ser humano. Enquanto viver, o meu amor pelo Pedro todos os dias cresce. Tudo o que faço e tudo o que sou, dedico-o a ele. Este livro nasceu da minha dor, nasceu do acontecimento do Pedro, sim, mas é um livro de amor. Considero-o uma grande ferramenta de ajuda para quem passa pelo mesmo sufoco que é o cancro da alma.
“Não posso amar mais os meus filhos do que me amo a mim mesma, senão não vou conseguir amá-los”
Afirma que este livro fala sobre o amor, a perda, mas também da superação perante a morte. Qual tem sido a recetividade perante esta sua abordagem?
As mães e os pais com quem falo e me seguem perguntam-me como é que consigo e como é que faço, e é voltando ao mesmo início da nossa conversa: é amando-me. Priorizo-me, sou a número um. Não posso amar mais os meus filhos do que me amo a mim mesma, senão não vou conseguir amá-los. Não posso amar tudo ao meu redor se não tiver amor por mim mesma. Saber que a minha conduta e a minha forma de estar na vida perante a morte do meu filho, mostrando os meus exemplos como exemplo a seguir, e as pessoas tendo a coragem de abraçar esses exemplos indo ao encontro da sua salvação, para mim é extremamente gratificante, porque não estou só a ajudar as pessoas que estão em depressão, mas as que deixaram de acreditar que a vida vale a pena ser vivida.
É evidente que a vida nunca mais será a mesma após a morte de um filho, mas isso não tem necessariamente de ser o fim. Qual o seu objetivo ao realizar este trabalho de divulgação de temas tão delicados como a depressão e o suicídio?
Salvar. Ajudar. Proteger. Alertar. Levar esperança e dizer que é possível, sim, continuar a viver após a morte de um filho, desde que uses uma única palavra e é aquela que tenho salientado ao longo da nossa entrevista, o amor, em primeiro lugar, por ti mesma. Só assim é possível. De outra forma, se te deixas de amar, deixas de amar tudo o resto e, então, aí, não tens força para lutar.
É contranatura perder um filho. Qual a mensagem de esperança que a Rute quer deixar no final desta entrevista?
Não considero que haja nada pior na vida do que perder um filho. A própria lei da vida não é assim. Tu nasces, cresces, envelheces e morres. Não se devia morrer pelo meio. A mensagem que deixo para todas as pessoas que passam pela perda de um filho é seguramente que a forma melhor de se honrar a vida dele é vivendo. Porque só assim conseguimos garantir que esse ser será para sempre relembrado e amado. Vivam, amem, riam, façam tudo aquilo que os vossos filhos gostavam de fazer, honrem-nos que seguramente, seja por que razão for que essa morte tenha chegado, não era dessa forma que os vossos filhos vos queriam ver, acabados, morrendo aos poucos e poucos, mas sim lutando e vivendo.