A noite já caía sobre a Cinemateca Portuguesa. De barrete e cansado, despojado de qualquer persona, pediu o seu café e sentou-se. Carloto Cotta, ator português e apaixonado pela representação, é o protagonista de ‘Diamantino’, filme que venceu o Grande Prémio da 57.ª Semana da Crítica do Festival de Cinema de Cannes e que está nomeado para a Melhor Comédia Europeia.
“Quem está sentado aqui a tua frente é o Carloto, só”, fez questão de sublinhar no princípio da entrevista. Uma viagem à infância passada com os olhos postos nos palcos onde se falou de teatro, ópera, música, mas também do percurso de ator marcado por uma paixão pelo trabalho que se sobrepõe às dificuldades da profissão. Durante a conversa, houve lugar para explorar a magia da representação e o poder que esta arte espalha nas sociedades contemporâneas, bem como refletir sobre o estado da cultura portuguesa. O passado, o presente e o desejado futuro do cinema português. O intérprete da sátira sobre uma estrela de futebol internacional em crise, que conquistou Cannes, admite gostar de “andar à boleia da vida”, nunca sabendo para onde e o que vai fazer a seguir. Este é o Carloto.
“Sou um privilegiado por fazer aquilo de que gosto e estou grato à vida por me ter dado essa oportunidade.”
Estudou na Escola Profissional de Teatro de Cascais, participou em inúmeras campanhas fotográficas, entrou em quase três dezenas de filmes e curtas-metragens, peças de teatro, telenovelas…Quem é Carloto Cotta?
É esta pessoa, que está aqui. De barrete, um bocado cansado e que tem vindo a trabalhar nas áreas referidas, principalmente, cinema. É uma pergunta um bocado difícil. Estar a responder quem é Carloto Cotta e falar na terceira pessoa, para mim, soa um bocado estranho. Porque é uma análise e tenho um bocado dificuldade em analisar-me. Estar a tentar resumir ou descrever a minha pessoa é difícil, ainda mais se me referir a mim como Carloto Cotta. Se bem que, quando ouço isso – às vezes, tenho amigos que até dizem “Carloto Cotta” – até acho um bocado estranho porque esse nome para mim é quase uma personagem, a minha persona profissional. Depois, acho que quem está sentado aqui a tua frente é o Carloto, só. O Cotta é o “gajo” que fez essas coisas todas, um bocado por circunstâncias da vida e porque, realmente, gosta muito do que faz. Sou um privilegiado por fazer aquilo de que gosto e estou grato à vida por me ter dado essa oportunidade. De certa maneira, também tenho algum orgulho, porque também lutei muito por isso. Não tive um percurso muito fácil e nem tenho um perfil muito comum enquanto ator, artista – também não sou nada assim de extraordinariamente bizarro. Faço o que a maior parte dos atores fazem, que é tentar sobreviver, fazer o melhor que podem e escolher as melhores coisas que conseguem escolher. Tento pautar a minha carreira com escolhas, não sei se, às vezes, são certas ou erradas, mas escolhas. Sinto que lutei, que fui perseverante. Apesar de ter imensos momentos de insegurança, acabei sempre por continuar a acreditar que tenho algo a dar ao mundo enquanto ator e isso faz-me continuar a trabalhar.
A infância e adolescência atrás do palco
Começou cedo no mundo da representação. Ao longo do tempo, de que forma mudou a sua perceção daquilo que é realmente ser ator? Como se define enquanto ator?
Sinceramente, está sempre a mudar. Ao longo do dia, tenho momentos em que estou farto, sinto que estou saturado. Depois, passado cinco minutos, interpreto uma cena que me dá imenso prazer e sinto-me a pessoa mais felizarda do mundo por fazer aquilo para o qual sinto que nasci. Ou seja, ser ator é uma montanha russa de emoções, principalmente, quando temos algumas inseguranças, como eu. Não sou absolutamente confiante do que estou a fazer. Muitas vezes, tenho dúvidas se estou a fazer a coisa certa, se estou na profissão certa.
“A única coisa que sabia era que queria ser artista.”
Mas sempre a levei bastante a sério. Tive uma data de experiências quando era miúdo. Por exemplo, fiz uma série produzida pelo Vendrell, muito “puto”, que o meu pai me meteu a fazer. Fazia o papel de um pequeno Baudelaire, numa série de época francesa. Os meus avós eram cantores de ópera e o meu pai é muito amigo da malta do teatro. Por isso, sempre parei muito em teatros, nomeadamente, no Teatro da Comuna e estava lá muito tempo, muitas horas, via muitos espetáculos. Também ia muito ao Teatro de São Carlos ver a minha avó a cantar e ao cinema. Desde miúdo que vou muito ao cinema, por vários motivos. A minha mãe viveu perto das Amoreiras e tínhamos lá uma prima que tinha um café. Então, ia para o cinema “à pala”. Nos fins de semana que passava com a minha avó, em Queluz, também ia muito porque não tinha lá amigos. Então, o cinema era uma espécie de refúgio. Como cresci muito próximo destes mundos, sempre me foi bastante familiar. Não foi assim um mundo novo para descobrir. Era uma coisa já intrínseca na minha vida.
Quando fui para a escola de teatro aos 15 ou 16 anos, estava no 10º ano, em Artes Plásticas. Desisti da escola e decidi que queria fazer um curso profissional. Não sabia que era para teatro, não sabia o que era. A única coisa que tinha a certeza era que queria ser artista. Pintava, desenhava, esculpia, fazia música, escrevia, uma série de coisas que me faziam ter a certeza que queria estar ligado ao mundo das artes e da criação. Quando fui para a Escola Profissional de Teatro em Cascais nem sequer sabia que queria ser ator. Era para estudar cenografia, só que depois esse curso fechou e acabei por ser ator. Acabei por, no curso de teatro, descobrir essa magia do palco, de criar a personagem, trabalhar com o corpo. O corpo tornou-se o meu pincel, a minha caneta, a minha guitarra, a minha ferramenta de trabalho. Foi uma descoberta completamente nova. E a Escola de Teatro, com Carlos Avillez e João Vasco, era com seriedade. Um bocado teatro à antiga, mais clássico – quando surgiu não era nada clássico porque era irreverente e avant garde -, mas quando entrei, nos anos 1990, já era o “teatro dos antigos” e havia um grande respeito pela tábua, pelo trabalho do ator, pela disciplina, seriedade, rigor e entrega. Cresci à luz desses valores, sempre tive um enorme respeito. Apesar de ter sido um ator um pouco irreverente e rebelde na forma como fazia as coisas e sempre cheio de vontade de desafiar normas, pôr em causa as convenções, o que se pode, às vezes confundir com uma certa indisciplina ou falta de seriedade, mas não. Sempre foi uma resposta um pouco punk que tenho, uma veia de irreverência.
Mas a evolução acho que foi natural. Tive trabalhos que correram bem, outros mal. Aprendi com os erros. Se calhar, tinha menos medo quando era mais miúdo, mais medo de umas coisas e menos medo de outras. As minhas prioridades reorganizaram-se ao longo do meu percurso. Esta é a melhor maneira que consigo responder à pergunta.
Teve uma banda. De que forma a música entrou na sua vida e qual a relação que, neste momento, tem com a música?
Continuo a tocar. Tenho instrumentos em casa. Gosto muito de tocar guitarra, tenho uma bateria, toco hang (instrumento de precursão criado na Suíça). Toco vários instrumentos. Sempre compus e gosto de fazer música. Tive várias bandas desde miúdo e sempre fiz música. Aos 13 ou 14 anos, tive bandas de punk rock com amigos mais velhos, tive uma banda chamada ‘Os Pâncreas’ e tocávamos. Mais tarde, vim a formar uma banda com outros amigos, mais de fusão, mais músicas do mundo, instrumental e experimental, chamada ‘As Aves Migratórias’ que, neste momento, está mesmo numa fase migratória e não andamos a tocar. Mas ainda nos encontramos e, de vez enquanto, fazemos umas jams, andamos sempre assim em latência, na eminência de surgir qualquer coisa, dar um concerto ou voltarmos a ensaiar com mais frequência. Mas, de facto, a música faz parte da minha vida e eu toco. Até como ator, tenho entregado bastante essa veia. Já fiz vários papéis onde toco bateria e onde canto. A a musicalidade é uma ferramenta para o ator.
O legado do cinema português
“Enche-me de orgulho fazer parte desta nau que é o cinema português, que atravessa oceanos com pouquíssimos meios. Por outro lado, sinto que existem algumas falhas.”
É um dos atores portugueses que mais representa o seu país lá fora. Qual a sensação de ver valorizado o cinema português além-fronteiras e, por outro lado, existir um défice de interesse tão grande no seu próprio país?
Essa é a grande luta de todas as pessoas que fazem cinema em Portugal. Que é aproximar o cinema português, com todas as suas caraterísticas, e acabar com este divórcio que existe entre ele e o público. Por um lado, sinto-me profundamente orgulhoso e animado pela atenção e respeito que temos lá fora, dentro do circuito de festivais de cinema independente. É realmente extraordinária a receção das pessoas e a perceção que têm do cinema que fazemos. Veem como uma identidade e como algo incrível que, de um país tão pequeno e onde se produz tão pouco cinema, saiam coisas tão boas e com tão poucos meios. Enche-me de orgulho fazer parte desta nau que é o cinema português, que atravessa oceanos com pouquíssimos meios. Por outro lado, sinto que existem algumas falhas. Não tenho assim grandes conhecimentos a nível de distribuição, mas estou a par das coisas e defendo que se devia produzir mais cinema, que devia haver uma estratégia melhor na distribuição dos filmes. Mas também era importante existir uma política de incentivo, não só à produção audiovisual e cinematográfica em Portugal, como também na aproximação do cinema aos públicos, porque é a nossa cultura. Deviam passar mais cinema português na televisão em prime time, escolherem bem os filmes que exibem, mostrar bons filmes nas escolas. Passarem mais filmes. Para que as pessoas não vejam apenas um filme mau e não digam que não voltam a ver filmes portugueses. Veem um filme que não gostam, um ou dois e depois ao terceiro já não vão ver.
É quase um estigma?
É um estigma que deveria acabar o mais rápido possível. Temos, realmente, cinema muito bom. É uma questão de educar gostos, os gostos educam-se. É como só lessemos livros aos quadradinhos a vida toda. Se, de repente, lermos um livro que não tenha bonecos, não gostamos. As hipóteses de um público que não está habituado a letras começar a ler são reduzidas. Tal como um público que esteja habituado a uma gramática norte-americana do cinema, quando vê outro tipo de linguagens, distancia-se. As pessoas estão habituadas a uma velocidade e uma leveza no tratamento do conteúdo. Também gosto de cinema de entretenimento, de desenhos animados e comédias ligeiras, coisas menos pesadas e que não me façam pensar. Está tudo certo, mas não é só isso que existe. A luta deve começar por aí.
Acima de tudo, deve começar com um investimento maior na cultura, em todos os setores e o cinema não é exceção. Quando se começarem a produzir um pouco mais de filmes e a haver mais de investimento, as probabilidades de as pessoas verem um que gostam são maiores e, ao verem um que gostam, se calhar já vão ver outro e outro. Aos poucos, vamos conseguindo captar atenção e as pessoas já irão saber que o cinema português não é só Manuel de Oliveira. E atenção, que há muita gente que gosta, mas não é só Manuel Oliveira ou João César Monteiro, que é um cinema bastante difícil, no sentido em que não é um cinema mainstream para o público que está habituado a ver só os filmes que passam na televisão ou que vão para a ‘Lusomundo’ ou os que vendem mais. Essas pessoas, possivelmente, não vão entender ou não têm paciência para ver esse tipo de filmes, mas os gostos educam-se. É um bocado como acabarem com a ópera, ou com o jazz. Lá por haver música pimba, o jazz, o rock independente, o heavy metal ou o punk rock não têm de acabar.
“Só espero que o cinema português se reconcilie com o público.”
Hoje em dia, até estamos a caminhar para uma sociedade mais eclética, onde as coisas estão à disposição de toda a gente. Por isso, não há nenhum motivo para que o público não se aproxime cada vez mais do cinema português. É essa a minha luta e a de todas as pessoas que fazem cinema. Continuamos a fazer filmes herméticos, difíceis, mas também esse é o nosso legado e não há que fugir disso. Não há problema nenhum. Em Portugal, há muito a ideia de ser um cinema muito intelectual e não sei, intelectual é o quê? É um defeito? É uma questão delicada. Não sou a melhor pessoa para falar disso porque não tenho assim um conhecimento tão grande da máquina, tenho algum, mas não o suficiente para conseguir desconstruir todas as falhas, roturas nas relações entre o público e o cinema. Gostaria de até ter isso mais claro na minha cabeça, mas infelizmente não tenho. Acho que é uma questão complexa que tem a ver com a história do cinema português e como a cultura ocidental é vendida e consumida. Durante muito tempo, o cinema foi uma arte de propaganda. Continua a ser, mas o nosso cinema é por essência não propagandista e não é um cinema comercial. Esse tipo de cinema custa muito dinheiro e, isso, não temos. Depois, existem aquelas falhas redondas no cinema português que, muitas vezes, desaproximam o público: tentar realizar um cinema muito comercial, mas sem meios e, depois, as pessoas, vão ao engano. Estão à espera de ver um Tarantino ou um uma comédia com o Vin Diesel e acabam por não ver nada disso. Veem um cinema com atores baratos e concretizado nem com um milhão de euros. Isso leva o público ao engano e é nocivo. Mas esta é a minha humilde opinião, ainda estou a descobrir. Só espero que o cinema português se reconcilie com o público.
Existe algum tipo de missão intrínseca à profissão de ator?
Existe, sem dúvida, uma missão. Quer dizer, existem várias missões, não é só uma. A principal missão é fazer, o que já é uma glória. Como diz o filme de Manuel Mozos “A glória de fazer cinema em Portugal”, e é realmente uma glória.
Podia optar por ir lá para fora. Aliás, já fiz várias coisas lá fora e vou, eventualmente, continuar a fazer, vamos ver o que o destino me reserva. Se calhar, nunca mais vou ter trabalho na vida, não sei… Mas o público precisa de mim. Precisa de mais atores, realizadores, técnicos, argumentistas, mais filmes. Mais filmes bons. E um bom filme é feito com amor, com honestidade. É aí que, às vezes, damos tiros no pé. Essa é outra missão, parar de dar tiros no pé, ser honestos com aquilo que estamos a fazer. Se o formos, tenho a certeza que as pessoas vão ao encontro. A nossa missão não é começar a enganar o público e copiar o cinema de Hollywood. Para esse efeito, já existem os norte-americanos que fazem o cinema muito bem. Dispõem de meios que nós jamais iremos ter. Temos de ser realistas. Esse não é o nosso cinema e não é a nossa identidade. É a mesma coisa que cantar fado em inglês. Não vai acontecer. E mesmo se acontecer, pelo menos, que o façam com alguma honestidade, humildade. Não tentar vender gato por lebre. Temos estes meios, é isto que fazemos e, se prestarem atenção, tem valor. Há filmes bons, há filmes maus, como em todo o lado. Não podemos ter medo que o público não goste, porque vai sempre haver quem não goste. Em dez blockbusters, há dois que são, realmente, um sucesso de bilheteira, mas o resto não. E não é por essa razão que deixam de fazer blockbusters.
Outra missão é, acima de tudo, dar a conhecer a nossa identidade, porque ela existe. É importante perceber que o cinema português não vem do cinema americano, até vem muito mais do cinema francês, russo e italiano. E existe um mundo para além disso… Cinema comercial? Sim, mas “americanoide?” Não. Claro que podemos ir buscar algumas influências aos americanos, mas sendo honestos. A arte tem de ser sincera. Quando quebramos esse pacto de honestidade com o público, as pessoas não gostam e criam-se fraturas.
A magia do cinema
“O cinema é um portal para esse tecido místico, premeia a realidade dos dias.”
Acredita que “a arte abre portas para outras dimensões”. A que nível?
A dimensão do amor, por exemplo. Dimensões humanas. O cinema abre portas e dá a conhecer outras dimensões, mas mais do que isso, têm o privilégio de redimensionar conceitos. Aquilo que é um simples olhar no quotidiano, uma pessoa a mascar, a senhora que está atrás daquele balcão e roubou um croquete, coisas que nos passam despercebidas no dia a dia, o cinema permite-nos “ampliar” isso. Abre portas para outras dimensões porque cria ligações inesperadas. É um vislumbre para a eternidade. O cinema tenta captar a luz e eterniza. Tal como uma fotografia que torna um momento eterno, o cinema cria vários momentos eternos. Essa é a grande dimensão. A dimensão da eternidade. Tornar eterno um olhar, um gesto, tornar eterno coisas que são frívolas e mundanas, aparentemente irrelevantes no dia a dia.
O cinema tem a magia de as eternizar e as elevar ao mito, de as mitificar. Coisas que a vida tem, mas que nós nos esquecemos de ver. E o cinema serve para nos lembrar que a experiência que estamos a ter aqui neste mundo é incrível, algo que, às vezes, esquecemos. O cinema é um portal para esse tecido místico, premeia a realidade dos dias. Não sou assim muito bom com palavras, mas o cinema é isso e muito mais. Pode também dar esperança às pessoas, devolver a fé, o que é incrível. O cinema pode salvar vidas.
Fascínio pelo desconhecido
“Gostava muito de interpretar Camões. Uma personagem mais histórica. Tinha piada, mas e gosto da surpresa, de não saber o que vou fazer a seguir.”
Com um currículo tão diversificado e personagens tão diferentes, qual o trabalho que mais o meteu à prova?
Vários. Cada um à sua maneira. Às vezes, só passado uns anos é que sinto os ecos de um trabalho que fiz. Às vezes, encontro ligações que não eram aparentes entre trabalhos.
E há algum papel que gostasse muito de interpretar?
Gostava muito de interpretar de Camões. Uma personagem mais histórica. Tinha piada. Gosto da surpresa, de não saber o que vou fazer a seguir. Normalmente, é engraçado porque as personagens vêm ter comigo. Parece que precisava que elas viessem ter comigo. Fazem sentido no momento em que as estou a fazer. É um bocado como estar à boleia. Não sei para onde vou a seguir e gosto dessa sensação.
Em algum momento sentiu dificuldade em distanciar-se da personagem que representava?
Às vezes, sim. Os atores têm a tendência para ir encontrar do que têm em comum ou que é profundamente díspar. As características sobre as quais conseguimos construir mais facilmente ou porque nos são muito próximas ou são tão distantes daquilo que é o nosso funcionamento normal, que sentimos fascínio. E, às vezes, tenho alguma dificuldade em distanciar-me. As personagens mexem comigo.
E como se lida com essa situação?
Meditar, parar, respirar fundo, fazer coisas que me façam lembrar, outra vez, de mim próprio. Estar com os amigos, com a família, com o cão ou ir ver o mar. Coisas que me façam esquecer que eu próprio existo, porque é aí que estou a ser mesmo eu, quando me esqueço que existo. Quando me estou a tentar analisar, deixo de existir. Mas sim, há sempre um momento em que é complicado. Existem personagens em que é bom estar com elas e têm uma boa energia. Às vezes, parece um bálsamo estar com elas, até nos fazem bem. Há outras que são um bocado mais perigosas e que, se não tivermos cuidado, consome-nos. Cansam mais porque estão a viver experiências difíceis. Por exemplo, ou não são amadas, ou não sabem amar, porque têm sentimentos mesquinhos, são retorcidas. Às vezes, dou por ti a meio do dia muito cansado. Mexe-se com coisas tóxicas. Mesmo que esteja a simular, o corpo reage a isso.
A escrita e Fernando Pessoa
Que ligação mantém com a escrita? Como surge a participação na curta-metragem “Como Fernando Pessoa Salvou Portugal”?
Foi Eugène Green que me convidou e, para mim, foi um elogio interpretar Fernando Pessoa. Nunca pensei que me fossem chamar para essa personagem. Apesar de não ser uma espécie de bióptico, fiz e adorei. Sempre tive ligação com o escritor, cresci a ler Fernando Pessoa e tinha o “Livro do Dessossego”, durante a minha adolescência, na minha cabeceira. Lia-o todos os dias. Gostava muito e gosto. Fascina-me a personalidade, já fiz culto várias vezes. Gosto muito de ler, não tenho uma grande cultura literária, mas gosto muito de ler e de escrever poesia. Escrevo umas coisas… Já escrevi uns argumentos, quero realizar as minhas coisas, mas não tenho pressa para escrever, por mais que queira que aconteça o mais rapidamente possível, se não, qualquer dia morro sem ter feito nada.
O Fernando Pessoa foi uma viagem incrível. Apesar de não ter sido um filme realista e, por isso, não ser um trabalho de construção metódica de personagem, tentei aproximar-me o máximo possível do universo. Tentei realizar um retrato livre, uma impressão carnal, encarnar Fernando Pessoa. Quase um processo mediúnico de o chamar e deixá-lo atravessar. Tinha de dizer aquelas palavras de uma certa maneira e com uma determinada cadência, então, não pude ser mais do que uma espécie de veículo para que aquelas palavras saíssem. Um veículo para que aquela existência de Fernando Pessoa, do Álvaro de Campos, do engenheiro, comunicassem através do meu corpo e das minhas palavras. Tentei manter-me o mais mediunicamente disponível. Gosto muito de utilizar esta palavra para descrever o processo, porque sei que ele tinha uma ligação forte ao culto e ao misticismo. Era uma pessoa com uma grande ligação ao esoterismo e gosto desse lado de Pessoa. Tentei pôr- me a jeito e deixar ver o que surgia. Um bocado como: “Se Fernando Pessoa quiser aparecer, que apareça. Não vou estar a fingir que sou e tentar enganar. Vou chamá-lo e, se ele quiser, aparece.” Acho que ele apareceu.
‘Diamantino’: uma sátira assumida
‘Diamantino’, filme que protagoniza, foi a primeira longa-metragem de ficção a vencer o Grande Prémio da Semana da Crítica do Festival de Cinema de Cannes, este ano. Qual a importância que têm as vitórias internacionais dos filmes portugueses?
São importantes porque dão a conhecer os nossos filmes, porque os validam no circuito de festivais. De certa maneira, validam um filme, mas sendo a escolha de um júri, também é muito relativo. Não creio que sejam melhores ou piores por causa disso. Simplesmente dá atenção ao filme, mas não o consagra. O que consagra os filmes é o tempo. Eles sobreviverem à prova do tempo. Que daqui a 50 ou 100 anos continuem a dizer algo às pessoas. Os filmes são momentâneos. Esses prémios abrem portas para outros festivais, para distribuição nacional e internacional, mas não determinam a qualidade do filme.
Numa entrevista, o realizador Gabriel Abrantes descreveu-o como “um dos atores mais talentosos que existem” e que sabia desde o início que queria trabalhar consigo no filme ‘Diamantino’. O que representa para si ter trabalhado com este cineasta?
Gosto imenso do Gabriel. Já trabalhei com ele várias vezes e a base da nossa relação é a liberdade e a loucura. Uma loucura saudável e criativa. Damo-nos bem porque existe um reconhecimento. Reconheço-o como um génio, um tipo inteligentíssimo e híper talentoso, híper hábil tecnicamente. É um virtuoso, é muito bom a vários níveis, apesar disso não ser evidente ou flagrante nos filmes dele, porque há certas coisas que parecem tecnicamente toscas, mas ele é muito bom. Tem uma capacidade e um conhecimento técnico e empírico do cinema enorme. E depois, é alguém que vem das artes plásticas, o que o permite ter uma sensibilidade estética super apurada, tem uma espécie de irreverência. São todas essas qualidades que nos fazem funcionar bem em equipa. Entendo-o bem e ele confia muito em mim. Desde que começámos a trabalhar juntos, ele percebeu que dou tudo, atiro-me de cabeça e que sei o que estou a fazer num set, conheço bem o meu trabalho. Ele deu-me essa confiança. A partir daí, foi “eu alimento-o e ele alimenta-me”, uma relação bastante semiótica. Catalisamo-nos. Ele dá-me imensa liberdade para fazer o que quero e eu também tenho confiança nele, apesar de ‘Diamantino’ ter exigido um nível de coragem muito grande, porque não é garantido que as pessoas o entendam ou gostem do filme.
Trata-se de uma sátira assumida e que o absurdo ocupa lugar pela ausência de limites e desconexão com a realidade. Foi a primeira vez que conviveu com este género de realização?
Cada realizador é único e com este tipo de realização, sim. O Gabriel é único e não existe outro igual, mas já trabalhei com outros realizadores que são “igualmente” especiais. São todos especiais. Já tinha feito filmes satíricos, com Miguel Gomes, por exemplo. Mas, de facto, há algumas características neste filme que inventamos.
Diamantino é o maior jogador do país e do mundo, tem sotaque açoriano, um QI abaixo da média e sofre com o desmoronar da sua carreira, procurando, depois, outros objetivos para a sua vida. Como foi o processo de construção desta personagem?
Tive uma preparação física brutal e muito rápida. Foi muito intenso porque tive de me transformar, secar e ficar com um corpo mais atlético. Depois, foi tudo bastante intuitivo e espontâneo, um processo baseado na espontaneidade. Um bocado na procura da verdade do momento e numa entrega total à cena que estava a ser desempenhada, não fugindo da ingenuidade e pureza da personagem. De certa maneira, coabitar elementos de acting que são, à partida, um pouco contraditórias: como é o absurdo, o vaudeville, a comédia física com a interioridade, a procura de verdade e memórias emocionais. Ou seja, tentar conjugar alguns elementos de atuação que não são normalmente conjugáveis. O ‘Diamantino’ vai buscar um bocadinho de vários estilos enquanto ator.
E foi difícil interpretar o sotaque?
O sotaque nem era ideia, não havia sotaque à partida. Eu é que comecei a treinar e, como meu personal trainer era açoriano, apanhei o sotaque. Um dia, quando fui para casa ler as cenas, enviei uma mensagem ao Gabriel, às tantas da manhã, a dizer: “O Diamantino é açoriano e tem de ser açoriano porque isso faz sentido.” Como ele, normalmente, aceita as minhas maluqueiras, lá foi.
No filme são retratados alguns temas sensíveis do mundo ocidental: o neo-fascismo, a crise dos refugiados, a importância dada ao futebol, a modificação genética e a busca pela origem do genial. Qual pensa ser o principal objetivo da exposição destas temáticas?
O principal objetivo é sempre que as pessoas gostem e pensem um pouco nesses temas que são fraturantes e, com isso, rirem-se, refletirem e divertirem-se. Apesar disso, é um filme divertido. Refletir através de uma história contada de uma forma meio louca e ligeira para que não seja algo pesado. São medos inconscientes, coletivos. São medos fantasmas que, ao mesmo tempo não são assim tão fantasmas, são antes lobos que estão ali à espreita. A ameaça é real e, com este filme, podemos refletir, mas de uma forma descontraída. Porque ao descontrairmos, se calhar, conseguimos ter uma certa distância.
Ficou satisfeito com o resultado?
Gosto muito do filme. Gosto muito do resultado porque está bem conseguido.
As distinções que recebeu ao longo da carreira são um sinal de reconhecimento. O que representam essas distinções? São, de alguma forma, um incentivo para ser cada vez melhor ator e se entregar a cada papel?
Não recebi assim tantas distinções. Os filmes em que participei é que já ganharam muitos prémios. Pessoalmente, nunca ganhei. Não sou muito reconhecido em Portugal, acho. Quer dizer, sou reconhecido, mas nunca fui um ator de ganhar muitos prémios, os filmes em que participo é que ganham. Possivelmente, porque não sou assim tão bom ator e são os filmes em que entro que são muito bons. Só sou um elemento que serve esses filmes. Portanto, não tive assim tantas distinções pessoais. Já fui nomeado várias vezes, mas nunca ganhei. A minha maior distinção é ter orgulho nos filmes e gostar, sabendo que são coisas boas.
Revelações futuras
Fará parte do projeto ‘A Family Vacations’, uma produção internacional. Como chegou até este trabalho?
Participei num casting e fui aceite.
Como está a ser a experiência de trabalhar com um elenco de outra nacionalidade e nomes tão prestigiados como Isabelle Huppert, Greg Kinnear e Brendan Gleeson?
Já acabou e foi muito giro. Ver como atores tão aclamados e consagrados trabalham e, principalmente, com humildade… É uma lição de humildade. São todos super profissionais, foram todos simpáticos comigo e está-se sempre a aprender, seja com atores internacionais ou com nacionais. Estamos sempre a aprender, mas foi uma experiência boa ter partilhado cenas com atores tão bons e que foram tão generosos comigo. Estiveram lá e fizeram-me sentir bem.
Existem muitas diferenças nos métodos de trabalho de produtores, realizadores, atores estrangeiros em comparação com os nacionais?
Os verdadeiros atores são-no em todo o lado. Quanto aos métodos de trabalho, não sei, porque também não acompanhei as pessoas assim tão de perto para saber qual o método de trabalho de cada um. Só sei como cada um se comporta em platô, mas isso é uma coisa muito individual. Não tem a ver com o ser internacional ou ser mais ou menos estrela. Tem a ver com a ética de cada um, de cada artista. Há quem seja mais descontraído no set, outros são mais concentrados…Depende da pessoa em si. Há de tudo em todo o lado.
Paralelamente, integra o elenco de ‘A Teia’, a nova aposta da TVI. O que pode revelar sobre esta história e a personagem Jaime Rosa Neto?
É a personagem que estou interpretar. Acabei o filme – estava a fazer as duas coisas ao mesmo tempo – e, agora, fiquei só com ‘A Teia’, com o Jaime Rosa Neto. É uma ficção policial e ele é um tipo com um passado obscuro, que tem um sentido moral duvidoso, com valores morais pouco sólidos. Uma pessoa sem escrúpulos e que se envolve em façanhas menos simpáticas. É misógino, machista e não sabe amar. Tem ciúmes do irmão mais velho, é um tipo ciumento, mal resolvido e ambicioso. Ou seja, tudo coisas boas. Entretanto, é giro trabalhar estas características, dá alguma pica, porque estas personagens têm uma arquitetura complexa e dão pano para mangas na composição, que também é um trabalho pesado. Têm sentimentos muito negativos e uma forma de estar pouco feliz na vida. Por isso, tenho de me proteger um pouco e não deixar que isso mine o meu dia a dia. Tenho de setorizar as coisas e deixar o Jaime ali. Mas é importante haver este tipo de personagens, são boas de trabalhar, porque revelam coisas que o ser humano tem e que, infelizmente, ainda existem muito, como o machismo, a prepotência, a co-dependência, o desamor, a ambição, as ideias de sucesso retorcidos, por exemplo. O sucesso para o Jaime é ter dinheiro e poder.
É uma personagem frustrada?
Deve ser derivado de uma grande frustração. Uma sensação de inferioridade, de incapacidade. Ele procura a validação do pai, das mulheres. Tenta conquistar todas as mulheres que lhe passam à frente, ou quase todas. Trata-as mal, inferioriza-as e isso, por um lado, é interessante porque expõe características que, hoje em dia, estão muito presentes na sociedade, nos homens e que têm de ser repensadas. Em Portugal, ainda existe muito machismo e prepotência em relação às mulheres, apesar da situação estar a evoluir, ainda existe muito. Às vezes, há casos disfarçados de várias formas. Cabe-me a mim, nesta produção, ser a encarnação dessas características menos simpáticas do espectro humano.
“Que fossemos todos mais irmãos daqui a uns anos. Gostava de ver isso.”
Se fosse possível ver o futuro, como gostaria que se encontrasse Portugal a nível cultural daqui a alguns anos?
Tem de existir mais apoio porque a cultura não é um negócio. Pode-se eventualmente fazer dinheiro, mas não é esse o principal objetivo, não deve ser essa a premissa. Espero ver a cultura com mais investimento, com mais condições para que os artistas consigam criar mais postos de trabalho e que, acima de tudo, esses postos de trabalho tenham condições dignas, contratuais, que estejam protegidos como estão os trabalhadores do Estado, que tenham os mesmos tipos de apoio social e estejam integrados na sociedade como está um médico, um mecânico, advogado, professor que, se não tiverem trabalho, vão para o desemprego. Não existe desemprego para um ator. Desejo que exista um respeito e que a cultura, os artistas e todas as pessoas que trabalham para a cultura sejam respeitados como quaisquer outros trabalhadores.
Considera que existe preconceito quanto aos artistas?
Com certeza. Ainda ouço muitas vezes: “Estão a fazer isso com o dinheiro dos meus impostos” e “Devias é trabalhar num café como eu, devias é trabalhar a sério”, inclusive de pessoas que conheço, que pensam que fazer um filme ou gravar uma novela não é um trabalho sério. É e é imenso. Não têm noção. E estamos desprotegidos, tanto na falta de incentivo que existe para a produção, como nas condições contratuais, como na falta de uma rede social. É importante que as pessoas da área da cultura estejam ao abrigo da segurança social, o que não acontece. Pagamos Segurança Social tanto ou mais que os outros e não existe retorno. Desconto mais do que muita gente e não tenho subsídio de desemprego, se tivesse um trabalho durante um ano. Não me dão nada e pago mais que os outros. Porquê? Esta situação tem de ser revista. A cultura faz parte da sociedade, tal como a educação, a saúde, a indústria aeronáutica, a pecuária, a agropecuária, o desporto, o tricô, os croquetes e estamos todos ao mesmo. Todos fazemos parte disto. Porque é que uns são filhos e os outros enteados? Não pode ser… Que fossemos todos mais irmãos daqui a uns anos. Gostava de ver isso.