Nos últimos anos, Portugal tem vindo a perder diversos espaços associativos e culturais por culpa da crise pós-pandemia, a pressão imobiliária e a transformação turística das grandes cidades. Até ao final de 2024, várias associações e coletividades correm o risco de ser despejadas ou moverem-se para outras regiões.
O surgimento do movimento associativo popular remete para a idade média, mas é desde o 25 de abril, com a obtenção do direito à liberdade de associação, que o associativismo se assume como parte fundamental do panorama social português. A sua existência permite a diversos grupos que lutem e afirmem a sua identidade, sendo este aspeto importante para qualquer política de desenvolvimento.
A existência de associações e coletividades promove o espírito solidário e comunitário das pessoas, mas também a formação de cidadãos ativos, empenhados em desempenhar o seu papel num sistema democrático.
Nos últimos anos, devido à pressão imobiliária, crise pós-pandemia e à transformação turística das grandes cidades, vários espaços associativos e culturais foram obrigados a fechar portas. Na cidade de Lisboa, são várias as associações e coletividades que correm o risco de despejo até ao final do ano de 2024.
O associativismo nos bairros e os seus problemas
No bairro da Bica, em Lisboa, a associação Vai Tu é, atualmente, a única coletividade em funcionamento. A presidente, Águeda Polónia, revela que, num bairro histórico como a Bica, “o número de associados e residentes nacionais existentes é quase nulo e as coletividades que mantêm as portas abertas estão dependentes dos turistas que vão passando na rua”. Águeda afirma ainda que “antigamente, as coletividades faziam mais falta aos bairros, quer como local de convívio, ou onde se pudesse pedir ajuda no meio de uma aflição”, mas que atualmente esse espírito já não existe, por falta de habitantes.
Esta coletividade, fundada inicialmente como um grupo excursionista, foi nos seus tempos áureos “uma das associações mais sonantes na realização semanal de fados”, assim como na organização de arraiais e noites de karaoke, descreve Águeda. No entanto, a sobrevivência da mesma está agora em risco. Muitos dos seus sócios e frequentadores habituais já faleceram ou foram obrigados a deixar o bairro, enquanto os preços só tendem a aumentar.
Durante o mês de junho de 2023, a Vai Tu teve a possibilidade de organizar durante todo o mês o arraial da Bica, devido a uma parceria com a entidade responsável. A presidente afirma que foi uma grande ajuda para a associação, que luta para dar continuidade à sua longa existência, sendo das organizações mais antigas da capital, fundada em 1948.
Em Arroios, a Associação Sirigaita, um projeto mais “independente e de luta”, como define um dos seus fundadores, António Gori, está mais presente nas iniciativas levadas a cabo para reivindicar mais apoios às coletividades. Esta organização, com apenas cinco anos, destaca-se como “um lugar de convívio e produção cultural, mas também de organização e debate político”. Numa zona em “constante mutação”, a Sirigaita já um dos espaços mais velhos da rua, apesar da tenra idade. Antes da sua existência, o local já acolhia a coletiva Habita, que lutava pelo direito à habitação na cidade, espírito que não se perdeu no mesmo espaço, sendo um tema que a própria associação também aborda bastante.
A Associação Sirigaita vai-se mantendo através da realização de concertos e reuniões por causas, como pela luta contra a crise na habitação, ou até mesmo servindo o seu espaço como um local de convívio de comunidades mais específicas. “Todas as quintas-feiras, temos aqui o encontro das senhoras que limpam as ruas, por exemplo.”
No mês de dezembro, a Sirigaita levou a cabo uma caminhada de protesto pelas ruas de Lisboa, intitulada “Despejados para nada”. O percurso passava por várias associações e coletividades, que outrora fizeram parte da história da capital, mas que foram obrigadas a encerrar. “Não queríamos fazer uma marcha fúnebre, queríamos sublinhar que estas formas de vida ainda estão vivas!” Também esta organização corre o risco de despejo até ao final de 2024. António defende que se “está a começar a travar uma luta”, mas que continuará a ter esperança, pois “qualquer esperança está ligada a uma luta”.
O sucesso da iniciativa faz com que a associação já pense em realizar a próxima. Sobre a mensagem que pretende transmitir, o fundador da Sirigaita remete para o apelo à participação cívica no associativismo. “Queremos apenas convencer as pessoas que a ideia fora do lucro, a favor de uma solidariedade prática, é algo que vale a pena tentar.”
Os jovens e o associativismo
Mais de 500 mil jovens em Portugal estão envolvidos em movimentos associativos, segundo a Federação Nacional de Associações Jovens. A FNAJ promove e defende os interesses do associativismo juvenil, acreditando que este é um instrumento importante na educação cívica e ativa das gerações mais novas. Em novembro de 2023, a federação promoveu o Encontro Nacional de Associações Juvenis, em Ourém, contando com mais de 500 participantes. A edição de 2024 será realizada em Vila Nova de Gaia, onde a federação espera conseguir mobilizar mais participantes.
Catarina Madaleno, constituinte da H20- Associação Jovem de Arrouquelas, considera que há pouca consciencialização do associativismo nas escolas, acreditando que em meios rurais a inclusão dos jovens neste tipo de iniciativas é mais “fácil” do que nas grandes superfícies. “Falta uma maior divulgação, mas também uma grande força de vontade por parte dos jovens em aderirem a este tipo de dinâmicas. Muitos não querem abdicar do seu tempo para estas causas.” A jovem defende que o associativismo pode ser entendido como “esforço e sacrifício”, considerando que estes “são valores que levamos para a vida e qualquer jovem tem de saber lidar com isso”.
A FNAJ dedica-se à realização de iniciativas que consigam atrair os jovens à vida associativa. Um dos exemplos é a campanha “Associativismo Juvenil: Escola de Cidadania e Voluntariado”, que permite colocar o tema do movimento associativo mais próximo do sistema de educação. A federação também se compromete a cooperar com autarquias, de modo a conseguir mais apoios para as associações juvenis.
A preservação do associativismo e o seu futuro
A Confederação Portuguesa das Coletividades de Cultura, Recreio e Desporto é o expoente máximo da representação do movimento associativo popular. Esta entidade pública encarrega-se da valorização e reconhecimento desta temática. Em 2024, esta confederação celebra um século de existência. No seu programa de ação 2022-2026, a CPCCRD define um conjunto de objetivos que pretende levar a avante para a melhoria das condições do movimento associativo popular nos próximos anos.
João Bernardino, presidente da CPCCRD, sublinha o facto de a organização englobar mais de 35 mil associações de cultura, recreio e desporto, tal como o estatuto de utilidade pública que esta adquiriu em 1978. Relativamente aos despejos, João revela que o assunto tem sido levado a várias autarquias e ao próprio governo, tendo a associação sido recebida na Assembleia da República, onde foi proposta a alteração do regime jurídico de arrendamento, onde possam ser salvaguardados os direitos das coletividades. Com a dissolução da AR, aguarda-se agora a constituição da nova legislatura para retomar a iniciativa.
O futuro do associativismo é uma questão em que alguns responsáveis já não colocam muita esperança. Águeda Polónia considera que a falta de apoios, tal como a “brutalidade nas licenças e cumprimento de horários” que são exigidos, torna impossível a manutenção do seu espaço. “Infelizmente, acredito que estes tipos de coletividades mais tradicionais nos bairros lisboetas não vão conseguir resistir.” Por outro lado, António Gori olha para o tema de uma forma mais aberta e positiva. “Temos estado em contacto constante com a câmara e a junta. Acredito que, mais tarde ou mais cedo, percebam que as pessoas precisam deste tipo de iniciativas. Ninguém ganha nada com isto, a não ser uma boa vida.”
João Bernardino não considera “de maneira nenhuma” que o associativismo esteja condenado, defendendo que ainda tem pela frente “não só um longo, mas indispensável futuro”. Afirma ainda que o movimento associativo é um pilar da democracia e que, independentemente do que possa acontecer, continuará a afirmar-se através do trabalho social de cidadania e valores.
Alguns municípios aumentaram a sua ajuda às associações e coletividades, no seu orçamento municipal. Resta a esperança de que o investimento neste setor continue para que o país não perca “uma das suas bases mais importantes da sociedade”.