Apaixonado por Portugal e mestre em contar a História do país através dos tecidos, Nuno Gama é uma figura icónica da moda nacional. O estilista recebeu-nos no seu atelier em Lisboa com um sorriso, rodeado pelos seus companheiros, os cães Tejo e Sado. Com mais de três décadas de carreira, faz uma viagem desde a infância, em que teve de costurar a sua roupa por necessidade, o dia em que registou a sua marca e o momento em que pisou, pela primeira vez, as passarelas do Moda Lisboa.
Concluiu os seus estudos em moda no CITEX do Porto em 1991… Sempre soube que era com a moda que queria trabalhar?
Não, nunca pensei propriamente nisso até porque na altura era uma coisa praticamente inexistente em Portugal. Não havia nada do que há hoje.
Quando surgiu esse amor pela moda?
Quando entras neste mundo, começas a descoberta e começas a descobrir-te a ti e às tuas reações, aquilo que tu gostas. E quando dás por ti já cá estás, já fazia parte, embora de uma forma muito indelével. Portanto, o processo foi todo ele muito natural. Se calhar, ainda pensava ser arquiteto ou engenheiro têxtil, pintor ou escultor, alguma coisa virada para as artes e então foi por aqui que fiquei.
No início da carreira, quais eram as suas principais inspirações?
Venho de uma família em que as coisas eram valorizadas, as coisas feitas à mão e as horas perdidas. Era algo fazia parte do nosso ADN, até pela avó Bina, que criou as Tortas de Azeitão, que eram a forma dela nos passar essa essência. E depois um pai, que adorava História e adorava Portugal. Quando chego ao norte para estudar, houve uma redescoberta desta cultura, que, no fundo, é a nossa essência enquanto portugueses, são coisas profundamente enraizadas nas nossas famílias.
Muitas pessoas que querem trabalhar na área da moda optam por estudar e trabalhar fora, principalmente em cidades referência nessa área. Não foi o seu caso… como foi para si estudar e entrar no mundo da moda em Portugal?
Estava no segundo ano do CITEX e comecei a estagiar… passaram-me uma coleção para as mãos com a qual ganhamos o primeiro prémio. E, de repente, quando acabei o curso já era conhecido neste meio, já se falava do meu nome como jovem estilista.

“É esta a língua que eu falo, a comida que eu como, o sol que eu apanho, o mar que eu vejo. É este país (que é o que é) e que me inspira”
Os estilistas mais famosos não se formaram nessa área, ao contrário de si. Que impacto teve essa formação na sua carreira?
Aprender é uma coisa que não ocupa espaço, estamos todos os dias a aprender. E o mais importante é a quantidade de experiências que reunimos, porque a moda não é só o desenho! A moda é o estilo, a moda é o tecido, há uma série de disciplinas que se reúnem à volta da moda, e que fazem o conteúdo da moda de alguma forma. E quanto mais abrangente for a essas experiências mais interessante se torna.
Em entrevistas diz que o Minho é uma inspiração para si. O que é que o inspira na região e como isso se reflete nas suas criações?
Não é só o Minho, acaba por ser o país todo. Por exemplo, a próxima criação é inspirada no Alentejo e isso tem a ver com coisas que falam connosco. Imagina se olharmos para um Galo de Barcelos e de repente não o vemos da maneira que ele é, mas transformado com outras personalidades.
Em 1993, registou a sua marca – Nuno Gama – oficializando-a para o mundo. Aual foi a essência que imaginou para a mesma no início?
Fazer uma coleção de roupa bonita, bem feita, bem estruturada, com bons acabamentos. Onde as pessoas se sentissem confortáveis e sobretudo usar isso como uma forma de revelar Portugal aos portugueses e ao mundo. Chamar a atenção para o que é a nossa cultura. Novamente o reolhar da realidade, reinterpretar as coisas e revelar a arte de ser português.
Como descreveria o seu trabalho atualmente? Continua com esse pensamento?
Sim! Há uma evolução das coisas, como é óbvio, mas tem sido um trabalho muito conciso do mesmo conceito. Continuamos a falar português, continuamos a falar a nossa língua e mesmo quando usamos estrangeirismos, falamos sobre as nossas coisas e contamos a nossa história. É isso que dá alma à minha moda.

“Foi um processo natural. Apresentas uma coleção na ModaLisboa e tens ali o reconhecimento da imprensa internacional, que diz que és diferente e que deverias mostrar ao mundo”
No início de carreira apresentou as suas criações na Moda Lisboa. Como foi essa experiência?
Foi uma coisa absolutamente extraordinária, era o início dos inícios. Eu já tinha feito apresentações antes, já tinha essa experiência. Mas foi ali que subimos muitos degraus, passamos de uma coleção com meia dúzia de peças para uma coleção completa e com uma avaliação internacional, que era habituada ao melhor e obrigou com que a evolução fosse mais acelerada.
Em 1993, ganhou o concurso para criação das fardas dos funcionários dos museus portugueses e, em 1997, para a Portugal Telecom. O que significou para si vencer estes concursos?
Era extraordinário, porque nesses casos há algo extremamente interessante que é haver um briefing, um conteúdo que é pedido. Relativamente à Portugal Telecom era uma quantidade de dossiers interminável, podemos achar que são meia dúzia de profissões, mas existem milhares de pessoas por trás, e isso obrigava-nos a um respeito técnico profissional sobre o vestuário, implicava imensa investigação. Tínhamos de perceber como eram as coisas e reagir da melhor forma. E esses trabalhos são muito desafiadores, porque uma coisa é eu fazer coleções e fazer aquilo que gosto, outra coisa é ir de encontro ao que os outros estão a pedir.
A sua marca expandiu-se não só a nível nacional como a nível internacional. Como foi esse processo e quais foram os principais desafios?
Foi um processo natural, apresentas uma coleção na Moda Lisboa e tens ali o reconhecimento da imprensa internacional, que diz que és diferente e que deverias mostrar ao mundo. Vais mostrando nas feiras, nos desfiles e vais deixando acontecer. Naturalmente, começam a aparecer agentes que querem trabalhar contigo porque acreditam no teu trabalho, clientes que querem comprar as tuas coisas, porque o que tu fazes é diferente ao que já têm. É questão de ir atrás, não é ficar parado à espera.
Em outubro de 1998, sofreu um incêndio no seu atelier, na Baixa do Porto. Como foi lidar com a perda de oito anos de trabalho e como se reergueu?
Aprender que somos mais poderosos do que pensamos, que podemos sempre reconstruir tudo, podemos sempre recomeçar com a vantagem de melhorar. Se fizemos até aqui de uma maneira, quando vamos refazer pensamos sempre em melhorar. Foi uma aprendizagem, um desastre que me obrigou a crescer e perceber a vida de forma diferente. Às vezes temos a ilusão de que estar na vida é uma obrigação e de é nesses momentos vemos que há coisas que são diferentes e faz-nos pensar, nos bens materiais, no que é a vida, no que faz sentido. E houve um momento complicado, onde foi necessária uma introspecção muito grande, mas daí para a frente foi arregaçar as mangas e trabalhar.
Em dezembro de 2008, esse mesmo atelier foi assaltado e vandalizado. De acordo com a entrevista que deu à TVI foram levadas 200 peças, incluíndo a coleção de Outono/Inverno de 2008. Como é que este acontecimento impactou a sua visão relativamente à segurança e a proteção da sua arte?
Seguros, alarmes, mas percebi que há coisas que não podemos proteger, porque por mais que possa proteger este espaço, quem quiser aqui entrar vai sempre arranjar uma forma de o fazer. Portanto é rezarmos… aprendermos a rezar em todas as línguas e religiões,e esperar que estas coisas não aconteçam, porque o nosso trabalho não é viver em função de assaltos ou de seguros: é vender roupa.
Sentiu que esses acidentes o mudaram como criador?
Isto tudo acaba por nos moldar, por exemplo, a coleção só entra aqui no último minuto e porque tem de entrar, se não nem entrava, porque há receio que algo aconteça. Acabamos por criar defesas e resistências. E percebemos que a ideia de poder que temos sobre a vida é uma coisa muito superlativa, temos assim tanto poder? Será que o universo não é muito mais poderoso sobre mim do que eu penso? Há um limite sobre mim próprio que é ultrapassado.
A sua marca foca-se principalmente na moda masculina. Quais são os principais desafios na criação para a moda masculina em Portugal?
Claro que em Portugal é diferente do resto do mundo, não somos iguais. Mas há uma questão que é a estrutura física, como é que o homem se movimenta, o que é que faz. Este tipo de detalhes faz a diferença no processo, desde os tecidos aos acabamentos, tudo isto também tem haver com a masculinidade, com a sexualidade, e com esse fator que temos de compreender para poder trabalhar.
“Não temos aproveitado as oportunidades que nos têm sido dadas”
Há alguma peça ou coleção que tenha um significado especial para si?
As coleções são iguais aos filhos para os pais, os pais podem ter uma preferência ou outra pelo filho, por ser mais próximo ao seu feitio ou mais afável, mas são todos filhos. Não há coleção favorita, são todas memórias, e umas são mais marcantes que outras.
Como vê o panorama da moda portuguesa atualmente? Acha que estamos a conseguir ganhar mais reconhecimento lá fora?
Acredito que não. Durante estes anos, não temos aproveitado as oportunidades que nos têm sido dadas, estamos divididos os do Norte e os do Sul. E divididos por pessoas que querem reinar sobre aquilo que é a moda e é pena, porque já tivemos boas oportunidades de evolução e não me parece que o mundo lá fora tenha conhecimento da existência da moda nacional. Há pessoas que gostam e veem, mas não o mundo, ele não diz «Portugal tem uma moda diferente». Ainda não chegamos lá, mas espero que essas novas gerações consigam lá chegar.
E o que falta para a moda portuguesa ter ainda mais impacto internacional?
Identidade própria, respeitarmos e amarmos a nossa natureza, encontrarmos uma linguagem única, nossa. Não quer dizer que façamos a mesma coisa da mesma maneira, mas é isso que falta criar com qualidade.
Que conselho daria a jovens designers que querem construir uma marca própria?
Comecem por comprar um capacete anti bala. Que amem o que fazem e que arregacem as mangas, porque é um trabalho permanente. Há muita gente envolvida e muitas coisas para tratar, e não é só a peça que está pendurada no cabide, é a peça e tudo o resto. E atualmente com o excesso de informação que temos e com o excesso de oferta, com os múltiplos preços, não é muitas vezes compatível a oferta mundial com o nível de preços praticados nesta área têxtil.