Com mais de 20 anos de carreira, Margarida Davim pauta-se pela análise crítica e pela defesa de um jornalismo rigoroso e independente. Nascida após a Revolução de Abril, considera fazer parte de uma geração que cresceu com a ressaca das transformações políticas e sociais do país, um Portugal por si retratado em redações como a TVI, Renascença, Sol e Expresso. Atualmente, escreve na Visão e é comentadora na TSF e CNN Portugal.
Nasceu já depois da Revolução de 1974. Na sua biografia da Almanaque, lê-se: “Nasceu com a sensação de ter chegado tarde. Não chegou ao mundo a tempo de viver a Revolução, o PREC e os primeiros dias inocentes da construção da democracia”. Sente que chegou atrasada para viver ou fazer a mudança?
Para fazer a mudança nunca se chega tarde. Sou da geração da ressaca da revolução, que ouvia os mais velhos com alguma nostalgia a falar desses tempos mortos, daí a sensação de ter chegado tarde. Mas há ainda outra [sensação] na minha geração: a de estar “entalada”, que foi apanhando sucessivas crises, sempre com a promessa de que “a seguir é que ia ser”. Não cheguei suficientemente cedo para assistir ao “boom” da comunicação social que existiu antes de mim. Não fiz parte de nada disso, fui sempre a geração da crise.
Ser mulher naquela altura não era fácil. Quando enveredou pela informação, como eram vistas as mulheres jornalistas?
Na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH), a minha turma era sensivelmente 90% feminina. Nas redações em que fui estando também havia uma presença feminina muito forte, nem sempre nas direções. O que não quer dizer que no jornalismo, como em qualquer outra área da vida, não se sinta que estamos inseridos numa estrutura machista; há os seus “quês” em ser mulher.
Como referiu, licenciou-se em Ciências da Comunicação na NOVA FCSH. Entra para a faculdade já com a certeza de que esta seria a sua “paixão”?
Tinha uma enorme pressão familiar para ter uma profissão “séria”. Da parte da minha mãe, todos vinham da advocacia, já do meu pai era a engenharia que dominava. O meu avô dizia-me: “tiras direito e depois vais ser jornalista”. Nunca achei que fizesse sentido e se queria ser jornalista tinha de vir para Lisboa, onde está a maior parte dos órgãos de comunicação social.
Começou na TVI e na Renascença, onde estagiou. A menina do Norte que ficava acordada até tarde para assistir aos congressos do Partido Social Democrata passou a ser a jovem que trabalhava madrugada adentro. Que memórias tem dos seus primeiros passos no jornalismo?
Foram dados em modo solavanco, porque não é muito fácil entrar nesta profissão quando se cai nela sem se conhecer ninguém. Houve um período em que era difícil encontrar trabalho, portanto, antes fiz outras coisas, mas sempre com a ideia de que queria muito ser jornalista. A dada altura, passei por uma revista pop juvenil, a escrever horóscopos e a responder a cartas de adolescentes. Houve um dia em que vi um anúncio do lançamento de um jornal novo, o Sol, com um grupo de pessoas que tinha saído do Expresso. Resolvi tentar a sorte. Éramos, penso, perto de 3.000 candidatos, até ficarmos 20. Aí, e embora tivesse tido outras experiências profissionais, foi onde estive dentro de uma redação a tempo inteiro e tão a sério. Era muito divertido.
“Nós, jornalistas, estamos extraordinariamente vulneráveis a pressões”
O jornalismo dos tempos de estágio compara-se ao do presente?
Lembro-me da primeira vez que fui ao Google, fi-lo durante o estágio na Renascença. Não havia redes sociais e, sim, isso era uma diferença absoluta. No entanto, isto avançou tão rapidamente que já quase não me lembro de não ser como é hoje. Deixamos de ter o exclusivo da seleção da informação, da sua edição e da sua distribuição. Hoje, há múltiplas plataformas, e não é preciso ter carteira jornalística para passar informação. Fazemos parte de uma profissão que desejavelmente tem regras de funcionamento – um ofício, um métier. O facto de as seguirmos dessa forma, distancia o que fazemos daquilo que outras pessoas, com acesso às mesmas plataformas, podem fazer. O problema aqui é que o jornalismo, por problemas de modelo de negócio, deixou-se contaminar demasiado por estas lógicas imediatistas e perdeu pé.
Recuperando a ideia do Quarto Poder, é conferido ao jornalismo a responsabilidade de escrutinar os outros três, nomeadamente o executivo (a política, designadamente). Isso ainda se mantém nos dias de hoje?
No dia em que não se mantiver, fechamos a porta. É absolutamente fundamental ter um jornalismo capaz de fazer o escrutínio, mas há um problema: o jornalismo vive de pessoas que se dedicam a ele, e é tanto melhor quanto mais tempo têm para fazer esse trabalho, quanto mais há uma mistura entre experientes e menos experientes, e tudo isto custa dinheiro. Nós [jornalistas] estamos extraordinariamente vulneráveis a pressões.
“Os direitos alcançados estão sempre sob disputa, a política é uma disputa permanente”
Os políticos, atualmente, recorrem às redes sociais para falar diretamente com os cidadãos, deixando de existir, assim, o “intermediário” (o jornalista, entenda-se). Estes canais de comunicação digitais vieram desacreditar a função de escrutínio que, outrora, era considerada primordial? Que perigos isto acarreta?
Não. Há, contudo, um problema quando os jornalistas se limitam a ser pés de microfone. Fico irritada quando vou – e acontece cada vez mais, infelizmente – a conferências de imprensa ou a declarações de agentes políticos que começam dizendo que aquela sessão é “sem direito a perguntas”. Contesto, dizendo: “Não é sem direito a perguntas, é sem direito a respostas. Vocês controlam as respostas, nós controlamos as perguntas”.
Um político pode sempre passar a sua mensagem sem filtro diretamente aos seus seguidores nas redes sociais, não vejo um problema particular nisso. Há, depois, um trabalho de verificação, de análise e contextualização que compete ao jornalista. Nada o substitui, tenho dificuldade em acreditar que uma pessoa se sinta completamente informada só por ver o ator político a falar diretamente nas redes sociais.
Como deve o jornalismo lidar com fenómenos como o Chega? Um partido assente numa vertente populista, que, num curto espaço de tempo, se impôs no Parlamento e continua a suscitar êxtase no panorama mediático.
O Chega é um franchising da extrema-direita radical internacional – vimo-lo quando André Ventura equacionou a hipótese de os imigrantes em Portugal estarem a comer cães e gatos, pouco depois da afirmação ter sido feita por Donald Trump. É um fenómeno complexo porque não nasce de maneira completamente espontânea nem inocente, isto é tudo pensado, mas, tal como outros fenómenos extremistas, é feito para alimentar emoções básicas. Na ideia dos “portugueses de bem” contra os “bandidos”, em geral, as pessoas vêem-se como “pessoas de bem”, sentindo-se ameaçadas enquanto comunidade que imaginam fazer parte. É difícil resistir enquanto jornalista, tudo o que é bizarro, por definição, atrai. Isto faz-se mantendo as regras do jornalismo: contextualizando, desmontando. Não dá para ignorar, até porque eles [o Chega] têm legitimidade eleitoral. Não podendo ser ignorados, tem que se lhes exigir o que se exige aos outros partidos.
As ondas do estrangeiro demoram a fazer-se ecoar em Portugal. Em janeiro de 2021 e de 2023, assistimos a ataques à democracia, quer com a invasão do Capitólio nos Estados Unidos da América, quer com a tomada da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Isto deve preocupar-nos?
Muito, tal como nos deve preocupar a reeleição de Trump e o que representa a sua agenda. Temos de pensar que a nossa democracia está sob o mesmo perigo ou até maior. As coisas não são eternas, os direitos alcançados estão sempre sob disputa – a política é uma disputa permanente.
O voto meramente de protesto e a ideia de que “eles são todos iguais e estou farto disto, vou abanar o sistema” pode abrir o caminho a coisas muito complicadas, não necessariamente uma ditadura como aquela que vivemos, nem é preciso que o seja. Olhemos para a Hungria, que tem esta coisa bizarra – que já dizemos como se fosse normal – de uma democracia iliberal: está criado um sistema de captura do Estado e de exercício de poder e coerção sobre as liberdades, que faz com que um modelo que só na aparência possa ser considerado uma democracia, seja, na verdade, um espaço de opressão e de corte de liberdades e de direitos. Ninguém pode dizer que os direitos que tem hoje terá para sempre.
Acompanhou de perto o caso da morte de Odair Moniz. Foi contactada pela família do visado logo após o surgimento da primeira notícia. O que se faz a partir daí?
Começa-se a fazer muitos telefonemas para tentar perceber o que se passa, de forma a tornar a narrativa o mais fiel possível. Assim que recebi o push de uma notícia da CNN Portugal, dando conta de que um homem tinha sido baleado pela polícia, instantaneamente me causou um sobressalto. Sou defensora de que a polícia tem direito a defender-se, a agir em legítima defesa, mas mesmo quem pensa assim tem de entender com sobressalto que um polícia mata alguém. A fatalidade é, no mínimo, um incidente extraordinariamente infeliz. Por casualidade, rapidamente chegou-me uma pessoa da família com a intenção de dizer que o carro era dele [de Odair Moniz], quando era acusado de fugir numa viatura roubada. A partir daqui, começa-se a perceber que há uma parte daquela história que não bate certo.
Faz-me confusão que o Governo não perceba que tem de ter a capacidade de olhar para as estruturas policiais e de avaliar, sem medos, como elas atuam. Um homem racializado tem 21 vezes mais possibilidades de ser morto pela polícia do que outra pessoa não racializada tem, e isto deve interrogar-nos.
“O jornalismo é aquela coisa maravilhosa em que damos tudo para ter espaço numa página e, no dia seguinte, essa mesma página está a forrar a caixa de areia do gato”
A CNN Portugal está a celebrar o seu terceiro aniversário, no entanto, a Margarida é comentadora há um ano. Que desafios existem de um canal que se quer em cima do acontecimento?
Esta coisa de “Breaking News”, às vezes um dia inteiro, não é nada fácil. É um equilíbrio difícil, no entanto, aquilo que tento fazer enquanto comentadora é ser o mais jornalista possível. O facto de conseguir ter acesso a vários tipos de protagonistas e vários tipos de informação, e de ter uma experiência que me ajuda a ler essas coisas, pode ser uma mais-valia para quem me ouve. Isto não quer dizer que seja neutra, tento dar uma visão de conjunto/enquadramento. É um erro achar que os jornalistas são neutros; têm regras que equilibram os seus próprios vieses. Se pouso uma câmera num determinado ângulo, isso é um posicionamento, se escolho uma determinada frase para começar um texto, isso é um posicionamento. Agora, quando escrevo uma notícia tenho de ouvir todos os intervenientes, tenho de ser contida na parte opinativa, na utilização dos adjetivos.
Completou recentemente 20 anos de carreira. Num futuro distante, o que gostaria de deixar como legado para as próximas gerações de jornalistas e para a sociedade?
Não penso nisso assim. O jornalismo é aquela coisa maravilhosa em que trabalhamos e damos tudo para ter espaço numa página e, no dia seguinte, essa mesma página está a forrar a caixa de areia do gato. Considero ter uma profissão de que gosto muito, que é importante do ponto de vista democrático. Tenho a obrigação de tentar fazê-la o melhor possível e se o meu trabalho ajudar alguma pessoa a pensar um bocadinho sobre o mundo em que vive e a ter uma determinada posição que ajude a melhorar esse mundo, isso já vai ser incrível.
A minha pretensão, muito complicada e ambiciosa, é a de continuar a fazer jornalismo até ser velhinha. Digo “ambiciosa” porque a esmagadora maioria das pessoas sai do jornalismo muito jovem, porque é uma profissão muito precária, muito mal paga. Por outro lado, é bom que haja uma renovação geracional, mas antes devia haver miscigenação geracional, é estranho de repente não haver memória nas redações.