Manuel António Catarino Rato criou um centro de documentação, nos Açores, cujo tema central é a II Guerra Mundial. Esta iniciativa fundamenta-se na inexistência de documentação desta época.
Como começou a sua carreira militar? Pesquisei bastante e não consegui encontrar dados conclusivos…
Comecei como sargento de Artilharia. Prestei serviço nos Açores, no grupo de Artilharia nº1. Como oficial, prestei serviço em várias unidades. Primeiro, no Regimento de Sapadores, com funções de tesoureiro, depois, no Centro de Recrutamento de Lisboa. Licenciei-me em Geografia, na Universidade Nova de Lisboa. Fui estagiar para o Instituto Geográfico do Exército e fui contactado para ir para o Arquivo Histórico Militar (AHM). O AHM pretendia fazer sistemas de informação, para a gestão de informação documental. Fui nomeado responsável pela aquisição do património e, em simultâneo, elemento da Comissão de Classificação de Documentos, que funcionava no AGE, que é o arquivo intermédio. Dentro dessas funções, fui nomeado como EPR (Entidade Primariamente Responsável), para a recolha dos processos transitados em julgado e não só, dos extintos tribunais militares.
Com essas funções, senti a necessidade de me especializar em Gestão Documental. Voltei à universidade, fiz dois anos na Faculdade de Letras. Passei a dar formação sobre o sistema de arquivos do Exército, a gestão documental e tudo mais. Passei a ser inspetor. Fazia inspeção aos arquivos primários, para entrarem nos arquivos do Exército. Fui tesoureiro como sargento de Artilharia. Não conheço nenhum caso semelhante, mas provavelmente existe. Fiquei extremamente chocado, quando me deparo com uma folha de caixa com muita documentação, que deveria fazer parte do património do Grupo de Artilharia de Guarnição nº1, em Belém (GAG1). Fui tirar fotografias do quartelamento todo destruído. A Universidade dos Açores mandou-nos também alguns alunos para estagiar connosco. Tem de haver um saber adquirido. Fui nomeado diretor do Museu Militar dos Açores, contra a minha vontade, mas tive que assumir.
No Forte de S. Brás está localizado o Museu Militar dos Açores (MMA), do qual já foi diretor, como acaba de salientar. O que mais o marcou?
Estive lá um ano. Iniciei logo um projeto junto ao museu, um Centro de Documentação. Depois de ter saído, em 2015, acabou por ser inaugurado mais tarde pela Dra. Berta Cabral [presidente da Câmara de Ponta Delgada]. Por questões de falta de apoio institucional, acabei por me vir embora. Para fazer as coisas é preciso gente, dinheiro e vontade! A cultura é sempre a última.
Com os milhares de turistas que visitam o País, pensa que o património deveria ser mais valorizado, visto que outros países admiram bastante o nosso património?
Claro! O “saber vender” o País, a cultura, o património, o ambiente, a paisagem, tem de ser de forma concertada. Isto agora está ligado aos municípios. Como, por exemplo, o turismo no Algarve, por enquanto, ainda é só praia. A serra tem um potencial talvez maior, mais sustentável em termos económicos, do que a própria praia. O Baixo Guadiana é uma região que não está minimamente explorada. Não só no Baixo Guadiana, mas também na Orla Costeira, que abarque os três concelhos: Vila Real de Santo António, Castro Marim e Alcoutim. Agora, estamos a desenvolver e a analisar através de um inquérito. Esperamos ter um bom resultado daqui a um ano.
Falou-me sobre o arquivo de Vila Real de Santo António. Dentro desse arquivo tem informações relativamente ao Terramoto de 1755, visto que tal e qual como Lisboa, também a vila foi afetada?
Tem, sim senhora. Vila Real de Santo António surgiu na ideia da administração pombalina, do Marquês de Pombal, perante a falta de receitas que o Reino não cobrava. Temos os desenhos e as plantas originais disso, por José de Sande Vasconcelos (JSV), um dos três engenheiros militares que edificaram a vila. JSV acabou por ficar como o grande engenheiro do Algarve. Sobre isso, tenho dois artigos publicados, um deles no Arquivo Distrital de Évora. Foi muito bom, por ter tido esse privilégio de o fazer. Mais tarde, em parceria com a Universidade de Huelva, com o Arquivo Histórico, com a Eurocidade, fizemos uma apresentação nessa universidade sobre JSV e a sua cartografia. Fizemos também online as Jornadas da História. A planta pombalina foi feita na Casa do Risco, em Lisboa. Houve várias edificações, especialmente no Brasil, para onde ia tudo preparado.
Falou-me dos arquivos. Esses arquivos estão abertos ao público, online, por exemplo?
Não, online não estão. O Estado não investe muito. Esperemos que o dinheiro que aí vem seja uma mais-valia para se poder, de alguma forma, passar os arquivos para o online. O documento original é geralmente analógico. É em formato de papel, com tintas ferrogálicas. Tem de haver planos de verificação, de transferência de dados. O que interessa é criarmos sistemas integrados de metainformação.
Os estudantes necessitam desses arquivos para estudar e, sem esse meio online, não têm tanta disponibilidade, não chegam logo à informação. Têm de andar de um arquivo para o outro, o que demora tempo…
Os estudantes são os nossos investigadores. O aluno, embora seja acompanhado, é a grande mais-valia disto tudo. É novo, é único! Não podemos desperdiçar gente nova, promissora. Isto é cidadania, conhecimento. A gente nova tem de estudar!
“O conhecimento não ocupa lugar”
Continua a tirar outros cursos fora do âmbito militar, tal como Geografia, Gestão Documental…
São a minha vida! Estou bem resolvido com a vida, exatamente por isso. Sempre gostei de tudo o que fiz. Desde apanhar tomates, até pegar em fardos de palha! Não consigo deixar de trabalhar! Trabalho para os meus amigos investigadores, para a comunidade e também no meu arquivo particular! Gosto de preservar este tipo de memórias, tenho estas coisas lindíssimas!
A expressão “o conhecimento não ocupa lugar” faz parte do seu dicionário?
Isso é um ex-líbris para mim! Nós aprendemos sempre. Nem sempre à mesma velocidade, mas aprendemos sempre. O que mais me orgulha hoje em dia é saber cavar! O meu avô, do qual eu herdei o nome, era analfabeto e entendia que, quem quisesse comer bem e bom, tinha que cultivar. Teve a preocupação de me ensinar a cavar. Hoje, tenho os meus tomates, tenho as minhas beringelas, tenho os meus morangos, sem cura nenhuma!
Sei que a vida familiar de um militar é difícil e nem sempre os militares podem ver as suas famílias. Esteve, alguma vez, longe da sua família?
Sim! A minha vida militar foi pior em criança do que em adulto! Sou filho de um militar, o meu pai foi sargento mecânico do Exército. Foi cinco vezes para África. Há uma grande quebra de afetividade entre pai e filho. Mandou-me para um colégio interno. A minha mãe, coitada, não conseguia tomar conta dos dois! Eu sofri de alguma maneira, mas o meu irmão sofreu bastante mais, porque era mais novo e, na altura, dormia com a minha mãe.
A minha vida como militar não foi tanto assim. Estive sempre, ou praticamente sempre, com a minha família. Tive o privilégio de não andar na guerra.
Guerras mundiais e política internacional
Atualmente, está reformado do Exército, mas iniciou um projeto arquivístico, sobre a II Guerra Mundial. Quais os objetivos que tem em mente para este projeto?
Trabalhei nesse arquivo quando estive nos Açores. Primeiro foi a I Guerra, depois a II Guerra Mundial! Está disponível para os estudantes, aliás, foi esse o grande objetivo da criação do Centro Documental dos Açores. Exatamente para eles analisarem e verem o que aconteceu. O que aconteceu foi algo de muito interessante e pouco explorado. O Estado Novo enviou uma parte muito significativa do exército português para as ilhas açorianas. Não foi por acaso que o príncipe regente foi para o Brasil e, quando veio de lá, foi para a ilha Terceira, antes de desembarcar no Mindelo.
Que ligação tem esse acontecimento à II Guerra Mundial?
Desde sempre, os Açores foram um ponto estratégico importante. Toda a Macaronésia compreende os arquipélagos dos Açores, da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde. Os Açores são, por excelência, o ponto mais estratégico do Atlântico Norte. O que estava planeado era os países do Eixo conseguirem sair e entrar no Mediterrâneo sem problemas, através da Europa e, depois, terem o seu núcleo estratégico nos Açores, tal e qual os países aliados. Objetivo? Domínio do Atlântico Norte.
O Tratado do Atlântico Norte (NATO) é o reflexo disso, dessa aliança?
É. Em termos geoestratégicos, as coisas mudam. Os pólos são voláteis. O heartland, o coração da Europa, ficou deslocado a partir da Guerra Fria. A Alemanha ficou destroçada, o coração da Europa estendeu-se para Leste. Atualmente, os Estados Unidos aperceberam-se que houve uma política errada da globalização. A Europa também se apercebeu disso! Vamos ver para que lado é que isto vai cair. A guerra está aí, mas é essencialmente uma guerra económica e vamos lá ver se não leva a outras. As guerras começam sempre assim.
Pensa concretizar mais projetos além do projeto arquivístico?
Atualmente, não tenho grandes projetos em mente. A parte interessante do Exército é a geopolítica, a guerra, esse tipo de coisas. Fui colecionando alguns recibos de entidades de livrarias, por exemplo a Bertrand, pois vendia livros para a Academia Militar. O valor da hipnografia que aquilo tem fascina-me imenso, por isso quero preservar.
Se não seguisse a vida militar, o que é que gostaria de ter sido?
Gostaria de ser historiador ou geógrafo, mas particularmente de ter sido professor universitário. Seria essa a minha paixão. Os maiores já têm maturidade e já sabem o que querem. Devem seguir o seu caminho!
Que mensagem acha importante transmitir aos universitários?
Estudem, estudem muito, estudem o que vos dá prazer!