Cansada de ser mera espectadora, Leila Campos, ex-aluna da UAL, fez as malas e partiu em direção à ilha grega de Lesbos para ajudar refugiados, um estatuto que lhe é bastante familiar.
Este ano, deixou Portugal durante duas semanas para se tornar voluntária num dos principais pontos de chegada de refugiados à Europa. Como surgiu a ideia de se envolver?
O ano passado, via as notícias e era um assunto que me emocionava. Mas via também muitas pessoas indiferentes a esta crise que, para mim, é uma das maiores crises humanitárias desde a Segunda Guerra Mundial. “E se fossemos nós?”, era o que me perguntava. “Se, por acaso, começassem a cair bombas, o que faria? Eu que tenho uma vida confortável, uma casa com as minhas filhas… o que realmente faria?” Por outro lado, nunca me esqueço – e acho que é algo que as pessoas em Portugal esquecem muito – que nós já recebemos muitos refugiados na década de 1970, com a guerra das ex-colónias. Eu tinha três anos quando fui posta num avião pela minha mãe, que me quis pôr a salvo. Vim sozinha de Moçambique para Lisboa. Hoje em dia, ainda recordo pessoas a dizerem-me “vá para a sua terra” e recordo que, até ao ano de 1969, havia nos passaportes algo que identificava as pessoas que nasceram nas ex-colónias como “brancos de segunda”. Portanto, eu fui refugiada e “branca de segunda”. Como tal, esta crise toca-me profundamente no coração.
O que despoletou a certeza de que precisava de ir?
A certeza já existia há muito tempo. Mas veio especialmente num dia, quando a minha filha mais velha, que já é adolescente e que estava mesmo muito farta de me ouvir, me disse: “Oh mãe, a sério, eu não aguento mais esse teu discurso, é muito fácil tu estares a falar. Todos os dias, ao pequeno-almoço, levamos contigo com grandes histórias sobre a Síria e como tudo isto começou. Nós já sabemos isso tudo. Mas se tu quiseres fazer realmente alguma coisa faz, vai, mas faz! Porque é muito fácil ficarmos a falar no conforto da nossa casa!” E eu achei que ela tinha toda a razão porque, se não fizesse, não seria diferente de qualquer outra pessoa. Então, tive de começar a planear a minha viagem.
“Era extenuante porque, por mais que fizéssemos, éramos voluntários e não podíamos remar tanto contra a maré”
Como foi o seu processo de candidatura a voluntária?
Foi um processo descomplicado, porque o que acontecia em Lesbos era que havia centenas, se não milhares, de voluntários. Pessoas que vinham de toda a parte. Voluntariei-me numa organização não-governamental, a GEN [Global Ecovillage Network], que tinha um apartamento com muito poucas pessoas que davam apoio a um campo de refugiados, que não era bem um campo, era Mória, um campo de registo. Ao lado, foi feito um campo de apoio por boa vontade de centenas de voluntários. Quando cheguei lá, vi que, de facto, não tinha o apoio financeiro dessa organização não-governamental…
Pois, por vezes, a informação que nos passam nem sempre coincide com a realidade. No seu caso, o campo de refugiados era aquilo que imaginava?
Eu não imaginava nada, eu só estava mesmo focada em ir! Tentei não colocar grandes ideias porque, depois, ficava com medo. Lá trabalha-se muito, é verdade, mesmo muito. E o ambiente não ajuda, é terrível. Eu candidatei-me para o turno da noite, da 1:00h da manhã às 9:00h da manhã e, nessa altura, era quando chegavam mais barcos à ilha. Havia noites em que, durante o meu turno, chegavam 11 a 14 barcos, cada um com cerca de 50 pessoas a bordo. Estava muito frio porque era Fevereiro e elas chegavam encharcadas. A maior parte das noites, eu estava a apoiar a chegada dos autocarros ao campo. As pessoas não falavam inglês, havia provavelmente num grupo alguém que conseguia pronunciar uma ou outra palavra, e o meu trabalho era ver quem precisava mais de ajuda. Era difícil porque, muitas vezes, não nos deixavam auxiliar aqueles que mais precisavam pois, no campo de registo, aqueles que chegavam eram colocados numa fila que muitas vezes durava horas ou dias. Era extenuante porque, por mais que fizéssemos, éramos voluntários e não podíamos remar tanto contra a maré. Havia determinadas regras que tínhamos de seguir, se não o fizéssemos era pior para a organização onde estávamos inscritos, e cada vez nos cediam menos espaço para ajudar. O campo onde eu estava tinha tudo e o campo de registo não. Nós tínhamos médico 24 horas e eles não, o que levava a que, muitas vezes, tivessem de recorrer a nós, embora não gostassem, porque nós éramos a imagem de que, se quiséssemos, as coisas podiam correr bem e melhor.
Durante essas duas semanas, qual era a sua função?
Para além de receber os autocarros, tínhamos de fazer de tudo, desde limpeza do campo à assistência na tenda de distribuição de roupa, onde estavam sempre dezenas de pessoas à espera. A nossa função ali passava também por humanizar aquele processo, pois elas tinham um longo percurso pela frente. Então, dávamos roupa, tentávamos brincar com as crianças. Até havia palhaços e uma tenda de chá. Tudo criado pela boa vontade de pessoas que só queriam ajudar.
No tempo em que trabalhou lá, o que a impressionou mais, pela negativa e pela positiva?
Pela negativa, posso dizer que, em Lesbos, eu vi o melhor e o pior da humanidade. Fazia-me imensa impressão as pessoas que tiravam partido dos que estavam naquela situação dramática. Por exemplo, os taxistas, que levavam montantes horríveis por pessoa e, se disséssemos algo, acabávamos por ter problemas com eles; polícias no campo de registo completamente intransigentes: querermos mudar uma criança completamente encharcada e eles dizerem que não, e que não e que não. É preciso ter muito estômago para fazer isso.
Pela positiva, toda aquela convivência com os grupos de voluntários que eram às centenas. Acabou por se criar uma comunidade de pessoas vindas de todo o mundo, onde nem a língua nem a cultura eram obstáculo, porque as pessoas estavam ali de vontade. Como tal, o único desejo era contribuir para um mundo melhor, o que é uma coisa absolutamente emocionante. Conhecíamos uma pessoa no pequeno-almoço e achávamos que a conhecíamos a vida inteira. Era incrível a empatia que se criava entre os voluntários.
“Foi uma noite em que tive de me aguentar à séria”
Ao longo do seu trabalho no campo com as pessoas, tem alguma memória que a tenha marcado?
Houve uma noite em que estava muito frio e que chegaram autocarros ao campo com muitas mulheres e crianças, especialmente mulheres com crianças. Para além do frio, estava a chover e eu vi duas mulheres com três crianças. O acesso ao nosso campo era uma subida e eu levava os grupos de pessoas que precisavam de assistência para o nosso centro, para o nosso campo, e estas mulheres ficaram para trás. Eu tentei ajudar colocando uma ou outra criança ao colo mas, quando olho para uma das mulheres, reparo que está grávida. Perguntei-lhe de quanto tempo, para saber se ela precisava de ser vista pelo médico, e em linguagem gestual aponta sete dedos para mim. Fiquei em choque, mas ela gesticula outra vez e faz o número dois com os dedos. Eu nem queria acreditar, ela estava grávida de gémeos de sete meses e o risco de ter as crianças ali mesmo era muito alto. A senhora parecia que tinha perdido as forças todas, com umas olheiras enormes, as crianças encharcadas, um bebé nos braços que não se mexia e que cheguei a pensar que estava morto. Foi uma noite em que tive de me aguentar à séria.
Como se lida com esses sentimentos e essa impotência?
Eu não me perguntava muito, só estava feliz por estar ali. Realizava todas as noites que estas pessoas, de facto, eram seres humanos fantásticos, uma prova de que há mais vida para além dos nossos pequenos problemas. Se estas pessoas conseguem, qualquer desafio que vou encontrar na minha vida não se vai igualar ao desafio por que estas pessoas estão a passar.
“Achei que, de facto, conseguiria mudar duas ou três cabeças”
Depois de tudo o que passou, como foi regressar a casa?
Foi muito difícil, porque são duas realidades muito distintas. Quando eu cheguei, estava ainda tão imbuída na energia do campo – onde o tema “refugiados” era conversa de pequeno-almoço todos os dias – que senti que nada se passava em Portugal. Chocou-me um bocadinho vivermos à margem desta crise, num país que faz parte da União Europeia e que a mim me parecia mais a Desunião Europeia, pois ninguém queria saber da Grécia e do que esta enfrentava. Mas as pessoas à minha volta já estavam um bocadinho fartas de me ouvir e, então, tentei não me envolver tanto, apesar de ter dado algumas entrevistas. Achei que, de facto, conseguiria mudar duas ou três cabeças, porque aquilo que ouvia era que nós não tínhamos nada a ver com este problema. Sendo esta uma situação humanitária, penso que, como seres humanos, nos deve tocar a todos.
Aquilo que se passa nos campos de refugiados é por vezes desvalorizado pelos meios de comunicação, que preferem focar-se noutro tipo de informação. Há coisas que não sabemos, mas que devíamos saber?
Há várias organizações, como a das Nações Unidas, que já estão tão ou quase empresariais que os voluntários que vi – embora fizessem parte de uma organização com meios infinitos – pareciam não se importar assim tanto com aquela situação. Compreendo que sejam pessoas que lidem com este tipo de trabalho durante muito tempo, sei que não é fácil e compreendo que possam criar “anticorpos”. Mas uma coisa é “anticorpos” e outra é estarem praticamente imunes ao sofrimento, e deixar de haver aquele calor humano que é necessário a qualquer organização que faz este tipo de trabalho no terreno.
Sendo as suas filhas uma das maiores motivações para esta experiência, teve coragem de lhes contar tudo o que viveu neste voluntariado?
Sim, elas iam acompanhando a minha viagem através das crónicas que escrevi para uma revista digital. A mais nova queria saber dos refugiados como se fossem de uma raça à parte: como comiam, como viviam, como estavam. Mas ambas me pediam para lhes contar histórias. O facto de eu ter ido fez-me feliz por tudo o que acabei de dizer, mas também porque foi uma mensagem que transmiti às minhas filhas. Consegui, de certa forma, mostrar que é possível fazermos e mudarmos o mundo. Não é preciso mudarmos o mundo todo, mas é possível contribuirmos para um mundo melhor, desde que queiramos. Se há essa vontade é ir, é fazer.
Caso tenha ficado curioso e deseje ouvir mais deste testemunho, oiça a entrevista na íntegra aqui.