Fundador do Observador, veste a profissão de jornalista há 42 anos, José Manuel Fernandes, em entrevista, faz uma reflexão acerca da evolução do jornalismo e das fragilidades desta profissão.
Defende de forma viva que os cursos de Comunicação têm tido uma procura excessiva e um encanto que não corresponde à realidade. Adepto das novas tecnologias no processo jornalístico, faz uma viagem desde os primórdios até à inclusão das redes sociais neste processo, passando naturalmente pelo “jornalista cidadão” ao qual diz ser uma ideia interessante e ao mesmo tempo perigosa, acrescentando que as fake news são um problema para o jornalismo de qualidade.
Jornalista, passou por vários jornais como o Expresso, foi fundador do Público e, mais recentemente, foi um dos fundadores do Observador. Como foi esta passagem do “papel” para o digital?
A passagem do papel para o digital foi, de alguma forma, gradual. Ao princípio, era muito básico, tratava-se de colocar o jornal em papel na internet, e a pouco e pouco, a partir do ano 2000, produzir notícias próprias para a internet. Gradualmente, o digital começou a ser a principal fonte de informação de um número crescente de pessoas, sobretudo mais novas, ao mesmo tempo que o papel ia perdendo alcance. Mais do que dificuldades técnicas, o problema foi os jornalistas perceberem que estando as pessoas na internet, era mais importante terem lá as notícias do que esperar pela forma tradicional de as divulgar. Essa foi a grande dificuldade. O resto foi perceber que a internet oferece possibilidades que o papel não oferece.
A passagem do “papel” para o digital foi uma necessidade dos novos tempos?
Claro. Quando a internet nasceu, há mais de 20 anos, era vista como mais um canal de distribuição. O jornalismo escrito passava a ocupar um papel diferente na própria cadeia de informação. Porque habitualmente, dizia-se que “a rádio anuncia, a televisão mostra, os jornais explicam”, isto a partir do momento que houve estes três meios. Hoje, qualquer pessoa que tenha um telemóvel ou um computador sabe que está constantemente a receber alertas, e esses alertas muitas vezes surgem antes da própria rádio.
Em entrevista à Jornais e Jornalistas, em setembro de 2013, José Rebelo fala da passagem do jornalismo enquanto “missão” para o jornalismo enquanto “técnica”. Sente esta evidência no seu dia a dia no Observador?
Não sei bem o que ele quer dizer com isso, porque o jornalismo sempre foi técnica e sempre foi missão.
Os jornalistas mais “velhos” viam o jornalismo como uma profissão 24 horas, enquanto os “novos” jornalistas veem como uma profissão das 9:00h às 18:00h.
Acho que é mais o contrário. Hoje, as pessoas têm de estar ligadas 24 horas. Aqui damos um telemóvel a todas as pessoas e pedimos para o terem sempre ligado. Um jornalista consciencioso não deixa de ser jornalista quando está num sítio qualquer e vê uma coisa que é notícia.
Estamos aqui no Bairro Alto, que era o bairro dos jornais de antigamente, e há uma história muito famosa que se conta aqui e que gostava de vos contar, isto antes de eu trabalhar, e já trabalho vai fazer 42 anos agora. Conta-se que algures num destes prédios que ardeu, do outro lado da rua de um destes jornais, toda a redação veio à janela ver o incêndio. No dia seguinte, o único jornal que trazia a notícia do incêndio era o jornal que toda a redação tinha visto do outro lado da janela. [risos]
Comunicação
A ideia que o jornalismo está em decadência tem vindo a formar-se na opinião pública. Ainda assim, nos últimos anos, as inscrições em licenciaturas na área da Comunicação aumentaram significativamente. Pela sua experiência existe uma nova geração de futuros jornalistas que estão dispostos a lutar por um lugar na profissão?
Não sei se pode dizer-se que o jornalismo está em decadência. Os modelos de negócio tradicionais funcionavam na base. No caso da imprensa escrita, vende jornais baratos para ter uma circulação grande e, portanto, ter publicidade. Esse modelo foi desaparecendo, hoje a circulação é baixa. Uma empresa como o Diário de Notícias há 30/40 anos, quando foi privatizado, teria cerca de 900 funcionários. Aqui quando arrancámos, tínhamos cerca de 40 pessoas a trabalhar, dos quais 30 eram jornalistas. No Diário de Notícias dessas 900 pessoas, só 80 é que eram jornalistas, portanto o resto eram outras profissões.
Em Portugal, há um período de ouro na década de 90, em que o tamanho das redações e o que se pagava aos jornalistas sofreu um “boom” muito rápido de pessoas na profissão e a própria concorrência entre os vários órgãos de comunicação levou a que os salários aumentassem muito nessa fase. Mas, a partir de 2003/2004, esse período acabou e o número de profissionais diminuiu. Depois, manteve-se mais ou menos estável. Estou convencido que a sustentabilidade vai voltar, mas vai ser como tudo no século XXI, não há negócios eternos, não há profissões estáveis para a vida e tudo está numa circulação constante.
Pensa que é uma geração que estuda Comunicação, mas poderia estudar outra área qualquer?
Diria que há um exagerado número de pessoas nos cursos de Comunicação. Sou apologista de que todas as pessoas deviam ter uma licenciatura noutra área qualquer e depois, sim, fazerem o mestrado em Comunicação. Digo isto por duas razões: primeiro, porque nas redações faltam competências, a maior parte dos cursos de Comunicação Social são cursos de ideias gerais, em segundo lugar, porque aquilo que é a técnica não necessita de curso para ser desenvolvido. Na minha perspetiva, isto prejudica o próprio jornalismo porque entram na profissão com a ideia que sabem tudo mas, na realidade, não sabem nada. É um mal que, às vezes, se encontra nas redações.
Em 2011, lançou o livro “Liberdade e Informação” que retrata, entre outras perspetivas, a importância do “olho vigilante” e de entidades reguladoras no processo comunicacional. Com a evolução do digital e com a utilização cada vez mais acentuada das redes sociais tem-se falado muito do jornalista cidadão ou cidadão repórter. Estes participam de alguma forma no trabalho profissional? Podemos falar de jornalismo quando falamos do “jornalista cidadão”?
A ideia do cidadão jornalista é interessante e perigosa. É interessante, no sentido em que as pessoas têm mais poder e que podem com mais facilidade aceder aos meios de informação, perigosa porque, mesmo bem intencionado, um cidadão jornalista não conhece as técnicas e os métodos para garantir que aquilo que está a ver é aquilo que está mesmo a acontecer.
O cidadão jornalista não vai substituir o jornalista porque há um papel de verificação, triagem e explicação que o cidadão jornalista não fará e não pode fazer, não está preparado para isso. Uma coisa não substitui a outra, mas muitas vezes as coisas misturam-se. O que as redes sociais permitem é chegar às pessoas de forma muito diferenciada, e isso já está a ser utilizado para a publicidade. Mas, neste caso, não estamos a falar de jornalismo, estamos a falar de passar uma mensagem, que é uma coisa diferente.
Digital e online
Vivemos num mundo cada vez mais ligado ao digital. Prova disso é o Observador que já nasceu e só existe neste formato, embora tenha uma edição anual em papel, tendo atingido quatro milhões de page views em apenas um mês após o lançamento, segundo a Markest. O que explica este número? Novas necessidades dos leitores no consumo de informação de forma mais rápida?
Quando começámos a pensar neste projeto, tínhamos noção de que cada vez mais o consumo de informação estava e ia ser online. O consumo de notícias online era sobretudo em computador e um bocadinho em tablets. Hoje em dia, é sobretudo em aparelhos móveis, e isso é uma coisa que não existia quando aparecemos há quatro anos. Fomos o segundo órgão de informação a ter um site preparado para ser visto estando ligado tanto num computador como num smartphone. É absolutamente indiferente estar num sítio ou estar noutro que [o site] automaticamente se desenha em função do tamanho do ecrã.
Os jornalistas não são onde estão as notícias, são onde estão as pessoas e era necessário estar online. Ao apostarmos nisso e apostarmos em formas diferentes de chegar às pessoas, fizemos com que em muito pouco tempo nós ficássemos entre os mais lidos de Portugal. Em março chegámos aos 50 milhões de page views, 13.5 milhões de visitas e 5.4 milhões de aparelhos únicos. Somos muito impressionantes, sobretudo se pensarmos que em Portugal nunca se chegava a esse número. O papel ,com sorte, chega aos 60/70 mil exemplares. Hoje nós temos diariamente mais de 300 mil pessoas no site, não tem comparação com o papel.
As fake news são atualmente um problema para o jornalismo de qualidade. Em março deste ano, lemos no Jornal de Notícias que a Google investiu 245 milhões de euros em novas ferramentas no projeto Google News, para combater este tipo de notícias. Esta iniciativa poderá ter algum tipo de sucesso? Ou é uma missão impossível?
Existem vários tipos de fake news. Há os boatos, e estes sempre houve e sempre haverá. Depois há outra coisa que parte da minha própria atenção apenas parcialmente, isto é, às vezes, vejo só aquilo em que quero ver, considero verdadeiro aquilo que acredito e não aquilo que passa pelos olhos. Estou mais preocupado com o combate, com o que contraria as notícias falsas e os boatos.
O que hoje se está a passar é uma coisa diferente. Há uma fragmentação do espaço público (potenciada pela tecnologia) e essa fragmentação é independente das fake news ou das redes sociais. Em vez de termos um espaço comum, cada vez mais temos uma sociedade tribalizada e fechada em grupos. As pessoas não se conhecem e não sabem o que as outras pessoas pensam, e isto é válido para todas as áreas da sociedade. Muitas vezes não chegam aos órgãos de comunicação algumas informações porque os próprios também se fecham em grupos. E este efeito tribal faz com que seja mais difícil o debate de ideias com base em pressupostos comuns que caracterizam um espaço democrático. É evidente que isto sempre aconteceu, só que está potenciado pela internet e pelas redes sociais. Isso preocupa-me mais do que as fake news.
Ainda sobre as notícias falsas, acha que o consumo e partilha de conteúdos se deve ao facto de ainda existir pouca literacia mediática, mesmo dentro das próprias redações?
É evidente que sim, em muitos aspetos. A falta de literacia mediática, muitas vezes, passa pelas redações e em situações que são difíceis de distinguir, porque há coisas que criam facilmente ilusões.
Dou-lhes o exemplo de uma história famosa. Há uns 20 anos, houve imagens que correram mundo de uma situação do conflito Israelo-palestiniano em que se via um pai com um filho nos braços, estava aparentemente escondido. Durante muito tempo, aquilo foi apresentado como vítima do exército israelita, e parecia, porque estava filmado e, havia imagens ouvia-se tiros. Tornou-se uma imagem icónica daquele conflito. Até que houve um jornal americano que fez uma investigação do que se tinha passado e chegou à conclusão que no sítio onde estava aquele pai e aquela criança era impossível. Era impossível ter sido atingido por balas israelitas, porque nesse lugar eles estariam protegidos, portanto, tinham de ter sido atiradas por quem estava a responder às balas israelitas. Isso exigiu uma investigação no terreno, meios, recurso, tempo.
Eu diria que 95% das pessoas hoje, se lhe mostrassem essas imagens, tornava a pensar que foi assim que se passou, porque aquela reportagem saiu numa revista americana. As pessoas mais interessadas acompanharam o problema, algumas pessoas não acreditaram nessa investigação, outras acreditaram, mas a maior parte não teve conhecimento dela. Todo o mundo escreveu sobre isso, há milhões de artigos de opinião, milhares de artigos sobre literacia mediática. Tem a ver com a capacidade de perceber que há ali qualquer coisa que não bate certo, vemos uma coisa e pensamos, “isto não faz muito sentido”. Mas, muitas vezes, as coisas não fazem sentido porque são erros criados dentro das próprias redações, pelos próprios jornalistas, pois também somos vítimas de propaganda, de intoxicação.
Lemos na dissertação de mestrado da jornalista Cátia Mateus, que muitos são os jornalistas que foram despedidos ou suspensos por terem dado opinião no Twitter. Embora esta não seja uma realidade portuguesa, José Alberto Carvalho, quando diretor de informação da RTP, tentou estipular regras para que os jornalistas não dessem a sua opinião nas redes sociais. De que forma é que os jornalistas podem contornar esta dificuldade?
Isso é um assunto complicado e é discutível. Nos órgãos de informação, nem todas as pessoas dão opinião. Por regra, há um sistema interno, que faz com que só tenham acesso aos espaços de opinião jornalistas que têm coisas a dizer ou mais qualificados. O jornalista, não tendo acesso ao ecrã, ao microfone ou ao papel, é como qualquer outro cidadão, tem a opinião dele mas está omitida, porque em princípio não está presente numa notícia. Partindo do momento em que há Twitter, Facebook e blogues as pessoas podem pôr lá o que entenderem. Isso tem vantagens e desvantagens. Por um lado, torna mais transparente quem são os jornalistas, mas isso implica um risco e, nalguns casos, pode comprometer a imagem de isenção de um órgão de informação. Não tenho a certeza que a melhor solução seja proibir. No entanto, se eu meter um comentário antissemita ou algo desse género no meu Twitter, algo que vai contra o estilo editorial ou passe a racismo, se calhar é justa causa de despedimento, porque o jornalista não tem as condições necessárias para trabalhar aqui.
Futuro do jornalismo
Como vê o jornalismo daqui a 10 anos?
Aquilo que deve ser essencial no jornalismo não sofreu alterações. Aquilo que é essencial é procurar reportar o que aconteceu de forma mais próxima da verdade possível e no tempo mais curto possível. É essa a primeira grande tarefa. Depois, é procurar enquadrar o que aconteceu. Revelar aquilo que está escondido e aquilo que deliberadamente é ocultado. Esse trabalho existia nos órgãos de informação há cem anos e existe hoje, não mudou.
O que mudou foi a forma de divulgar a informação, a velocidade a que é feita e os meios existentes para a fazer. Quando falo de meios, falo de tudo. Aquilo que são as regras, as técnicas e as formas de recolher informação tornaram-se, por um lado, mais simples com as novas tecnologias. Hoje tenho uma facilidade que não tinha antes. Espero que seja possível daqui a 10 anos continuar a pagar isto, porque este é o grande desafio.
Como é que consigo continuar a pagar este tipo de trabalho que, em muitos aspetos, é mais exigente? Porque o público também se tornou mais exigente. Hoje, as pessoas já não se satisfazem. O importante é encontrar formas de pagar esta informação. Já foi mais difícil. Acho que as pessoas começaram a perceber que é preciso pagar alguma coisa. Já estão a começar a pagar um pouco para terem essa informação.