Descobriu que tinha na voz um trunfo quando experimentou fazer rádio, no final dos anos 80. Passou pela Rádio Nova, pela TSF, RTP, SIC e está agora na TVI, como um dos jornalistas mais reconhecidos a nível nacional. Nesta entrevista, José Alberto de Carvalho reflete sobre os desafios da profissão e admite que, se fosse hoje, seria youtuber e faria vlogs.
Não, na verdade o jornalismo surgiu-me um bocado por acaso. Foi uma sequência de acontecimentos. Sempre tive curiosidade, acho que isso é o que me define mais. Desde a maneira como eu brincava, as coisas que fazia, o que me suscitava interesse (…) Lia muito e lia jornais, alguns amigos meus gozavam comigo, mas segui, no ensino secundário, a área de Ciências. Ao mesmo tempo, também gostava de música e depois descobri por mero acaso, na altura das rádio pirata que começaram a aparecer, em meados dos anos 80. Descobri através de um amigo meu que andava no grupo de uma dessas rádios, em Viseu, que era a cidade onde eu vivia, e ele convenceu-me. Eu tinha discos que ele gostava de passar e a solução foi convidar-me. Acabámos por fazer uma brincadeira e eu não me tinha apercebido da voz que tinha. Isso mudou decisivamente muita coisa no resto da minha vida até agora. Através da minha voz descobri duas coisas: que gosto de dizer coisas às pessoas e que, porventura devido ao timbre da minha voz, as pessoas têm tendência a ouvir-me. Reorientei a minha vida e fui para o Porto estudar jornalismo. Depois foi uma sequência de coisas, com muita sorte e coincidindo com um determinado momento de desenvolvimento, quer do país quer da tecnologia.
Começou a trabalhar ainda antes de terminar a licenciatura. Como surgiu essa oportunidade?
A realidade dos média era bastante diferente na altura. Quase no final do primeiro ano de faculdade um colega meu alertou-me para um concurso na Rádio Comercial Norte (…). Achei que era uma boa ideia e inscrevi-me. Fiz as provas, éramos 500 pessoas e ficámos cinco ou seis (…). Mas, nessa altura, eu estava a estudar jornalismo e o concurso foi para animador de rádio. Depois as coisas aconteceram por mera coincidência, sem eu ter grande controlo. Um dia, estava na Rádio Comercial, a fazer o programa à tarde. Do outro lado, o técnico de som (ainda havia técnicos de som), diz-me que tenho um telefonema. Quando atendi, era alguém da RTP Porto. Ouviram a minha voz e tinham boas referências minhas, por isso perguntaram se eu estava interessado em fazer um estágio como repórter na RTP.
Como foi a passagem da rádio para a televisão?
Foi quase sem me aperceber. Acho que houve um conjunto de fatores: um deles foi o momento, sorte na verdade. A sorte dá muito trabalho. Se eu não me tivesse inscrito no concurso da Rádio Comercial, se não tivesse feito as provas todas… a última foi a um domingo às nove da manhã… Parece que é tudo fácil, mas a sorte também dá trabalho.
Lembra-se do que sentiu quando entrou no estúdio pela primeira vez?
Como foi tudo tão rápido… acho que da primeira vez não me senti tão nervoso. Senti-me nervoso aí na décima vez. (…) Por isso, na verdade, não me recordo nada em especial do primeiro dia em que entrei num estúdio de televisão. Recordo-me, e será inesquecível, do primeiro dia da SIC. Eu fazia parte do grupo de fundadores. Antes, trabalhei na Rádio Nova do Porto, um grande projeto que representava um investimento significativo da Sonae. Na época, a empresa estava a iniciar a sua atuação na área dos media, tendo acabado de lançar o jornal Público. Além disso, lançou também a Rádio Nova e uma promotora de vídeo, com planos futuros de se associar a um parceiro nos canais de televisão privados. Quando apareceram os canais privados eu estava na Rádio Nova, que na altura tinha um acordo com a TSF e partilhávamos repórteres, reportagens, e o Emílio Rangel que era diretor na TSF conheceu-me através daí. Quando a SIC arranca e ele começa a constituir a equipa creio que fui uma das primeiras pessoas para quem ele ligou. Fui, na verdade, o terceiro jornalista a assinar contrato com a SIC e aqui mudei a minha vida, vim do Porto para Lisboa por causa disso.

Esteve na SIC durante uma década, depois acaba por regressar à RTP e, em 2011, ingressa na TVI . Já esteve nos três grandes canais. Tendo em conta todo este percurso, qual é a parte mais desafiadora de ser jornalista?
Vou tentar responder a isto de uma forma mais contemporânea e adequada aos tempos que correm. Aquilo que aconteceu ao longo do meu percurso profissional foi extraordinário para mim enquanto profissional, mas hoje não é repetível. Todo o cenário de negócios, que sustentam o jornalismo, como a publicidade, a maneira como as pessoas se comportam, utilizam o seu tempo e como são influenciadas pelas redes sociais e pelos algoritmos mudou. A parte mais desafiante do jornalismo é descobrir a maneira de cativar a atenção das pessoas para dizer coisas que elas não saibam que são importantes para elas.
E durante este vasto percurso, há algum momento específico que tenha marcado a sua trajetória?
Inúmeros, inúmeros. Foram muitos momentos eleitorais, por exemplo. O primeiro direto de Dili, em, Timor para uma televisão portuguesa em 97. Na altura, Timor ainda estava sob ocupação da Indonésia. Foi uma grande aventura, com alguma violência sobre mim e sobre o câmara que estava comigo, porque fomos arrancados e tivemos de fugir depois da vitória. Foi uma altura altamente estimulante. A transição da entrega de Macau à China, em 99 (…) Recentemente, tenho especial orgulho numa entrevista que fiz há cerca de dois anos ao antigo primeiro-ministro, José Sócrates. Foi uma entrevista muito dura, mas que o resultado foi esclarecedor para quem viu. É um animal feroz como ele próprio se descrevia e, portanto, deu-me especial satisfação, preparar e fazer. E foi também das que me deu mais trabalho.

“Desapareceu uma coisa que foi fundamental durante a história da humanidade, desde a Idade Média, que é o conceito de opinião pública”
Em 2017 foi o grande vencedor da gala dos Troféus Impala de Televisão na categoria de Melhor Jornalista/Apresentador. No seu discurso disse estar ‘absolutamente convencido’ de que o jornalismo é mais preciso do que nunca. Acredita que a sociedade também vê o jornalismo dessa maneira?
Não… acho que corre o risco de desaparecer tal como o conhecíamos. Penso que não haverá ninguém com menos de 50 anos que veja um canal generalista de televisão.
Ou que compre um jornal impresso…
Isso então, não há. Mas não tem que comprar um jornal impresso, pode pagar a subscrição online. Mas acho que também não fazem isso. Acho não, tenho a certeza. Eu vejo os números, eu sei o que está a acontecer na atividade, no setor e na indústria. O que aconteceu é que com a digitalização, a instalação e a generalização da internet (…) houve uma grande dispersão da atenção e do tempo das pessoas. Isso levou e assim irá continuar. É inevitável, e está tudo bem, que haja cada vez menos pessoas a consumir televisão ou formatos convencionais de jornalismo porque elas julgam-se informadas com aquilo que encontram ao longo da sua atividade digital. É por isso que é um desafio para a democracia, para a humanidade, para a economia, o que está a acontecer nas redes sociais.
A maneira como as pessoas as usam, como isso tem impacto em todas as outras atividades e como isso tem permitido às empresas tecnológicas afinarem os algoritmos que reforçam esse sentimento de ilusão (…). O que é que acontece: a quantidade de conteúdos disponíveis é infinita e o consumo aumentou, ficando menos tempo livre para outras coisas. Ou seja, o algoritmo escraviza-nos ao mesmo tempo que nós o alimentamos, porque são as nossas escolhas que alimentam o algoritmo. Isto é mesmo a questão essencial de todas. É a relação entre cada pessoa, as redes sociais e o tempo. A publicidade é, essencialmente, o negócio do tempo e da atenção. Ela só existe se conseguir captar e prender a atenção de alguém. O princípio por detrás disso pode ser resumido e simplificado da seguinte forma: agora que consegui com que olhasses para aqui, lesses isto ou visses isto, com a promessa de algo interessante, aproveito que tenho a tua atenção e dou-te isto: publicidade. No passado, este exercício era dominado pelos meios de comunicação tradicionais, como a rádio, a televisão e a imprensa. Durante esse período, existia uma relação de coabitação entre a publicidade e o jornalismo, uma vez que era a publicidade que financiava e possibilitava a existência do jornalismo.
No meio de tudo o que tem acontecido, as pessoas desinteressaram-se dos factos. Vivemos num tempo muito estranho em que os factos são muito maçadores, o que toda a gente quer é ter uma opinião. As pessoas têm uma opinião sobre tudo hoje e formulam a opinião em pouquíssimo tempo e com pouquíssimos factos, independentemente dos factos serem verdadeiros ou não. Quando dava aulas, na Escola Superior de Comunicação Social, costumava fazer um exercício com os meus alunos: dava-lhes 5 a 10 minutos para procurarem informações na internet sobre um determinado tema, porque queria discutir esse assunto com eles. Passados os 10 minutos, o que acontecia era surpreendente: todos os meus alunos já tinham uma opinião formada sobre algo que eu acabara de mencionar. Achava isso absolutamente espantoso, mas também perigoso. (…)
Isso explica em grande parte, na minha opinião, a violência brutalmente crescente no discurso público, no espaço público, nas redes sociais. Em todas, mas sobretudo no X, é particularmente evidente o discurso de ódio de violência e de insulto instantâneo. As pessoas têm todas opiniões, só concordam, só acatam, só aceitam e só procuram as opiniões de outros que sejam iguais às que essa pessoa tem, e quando se confrontam com alguém que chama a atenção ou aponta para uma perspetiva diferente do problema, essa pessoa é corrida ao pontapé com um nível de insulto e de violência absolutamente inacreditável. Desapareceu uma coisa que foi fundamental durante a história da humanidade, desde a idade média, que é o conceito de opinião pública. A opinião pública era uma consequência da ação dos meios de comunicação e era fundamental para a democracia tal como a conhecíamos. Hoje em dia, é impossível falar da opinião pública, porque as pessoas consomem vídeos, imagens e textos que reforçam as suas ideias como nunca aconteceu na vida.
As pessoas não estão disponíveis a ideias que abalem as suas pré convicções e é impossível na natureza da internet e das redes sociais estabelecer um mínimo denominador comum sobre o que é que as pessoas leem, discutem, pensam. Esse denominador comum existia quando as pessoas viam televisão. Isso podia perceber-se facilmente quando no dia seguinte, nos encontrávamos com amigos no café, na rua, no jardim, no cinema, e era fácil falar sobre temas comuns, porque toda a gente sabia quais eram os temas que estavam em debate na opinião pública. Hoje em dia isso não é possível, porque os processos de comunicação das pessoas guetizaram-se, ficaram todos em nichos. Depois, as coisas viralizam e, quando isso acontece, acabam por tornar-se do senso comum nas redes sociais. No entanto, os conteúdos que viralizam são sempre ou cómicos, ou dramáticos, ou emotivos ou reativos. É impossível algo sensato viralizar.
“Meditem muito sobre o que interessa às pessoas, questionem o valor notícia dos acontecimentos. Aquilo que era tradicionalmente valor notícia, não é obrigatoriamente notícia hoje”
As redes sociais transparecem sempre uma vida perfeita…
Sim.. e desculpem mas isso não tem nada a ver com o espelho da vida, nada, nada, nada. Como é que as pessoas usam tanto tempo dentro deste túnel? O que é que é a realidade para estas pessoas? Por que é que há problemas de auto-estima crescentes em jovens adolescentes que são confrontados com padrões de beleza e de comportamentos sociais no Instagram, quando a realidade à volta deles não é assim? Acho dramático. Construímos todos um espelho do qual até estamos conscientes, mas deixamo-nos ir, porque dá muito trabalho fazer o contrário. É uma espécie de anestesia alucinante, louca, mentirosa e manipuladora em que nós sabemos que nos estão a mentir, mas também mentimos. Para sintetizar, o jornalismo é mais necessário do que nunca, porque a luta é conseguir fazer chegar informações e factos às pessoas. Não opiniões que confirmem as opiniões pré-existentes de cada um. Por isso é que o jornalismo é mais importante do que alguma vez foi, porque é a única força que pode travar o desvario coletivo. Acho que não vai ser possível porque há movimentos sociais que são imparáveis e só se resolvem depois da catástrofe. Portanto, acho que estamos a caminho de uma catástrofe de comunicação, que significa valores, verdade, democracia. Está tudo em causa neste momento, essa é a catástrofe.
Apesar de tudo… que conselhos daria aos jovens que pretendem trabalhar na área do jornalismo?
Meditem muito sobre o que interessa às pessoas, questionem o valor notícia dos acontecimentos. Aquilo que era tradicionalmente valor notícia, não é obrigatoriamente notícia hoje. Ao mesmo tempo que emergiu um conjunto enorme de questões que deviam ser encaradas como notícia e que não merecem esse tratamento. É fundamental desempenhar o conceito do jornalismo nas suas práticas, no princípio que é: o que é que é notícia numa sociedade digital do séc. XXI? Este exercício não está feito e vai ser sempre imperfeito, mas ele tem de ser realizado e não é ainda por praticamente ninguém de uma forma estrutural e quase científica que é: vamos olhar a sério para isto, vamos olhar a sério para os problemas, não vamos esquecer as lições da História nem do passado.
Para terminar… se pudesse voltar atrás, seguiria o mesmo caminho?
Não, hoje, não. Era youtuber. (risos) A sério! Faria vlogs. Adoro e acho que é um exercício maravilhoso de criatividade. A tecnologia permitiu coisas incríveis.