Em Portugal, estão em contexto de lar pelo menos 7.032 crianças e jovens, sendo as suas famílias os colaboradores dessas instituições. O seu trabalho é física e psicologicamente exigente, não só devido à falta de meios, mas também aos processos demorados da justiça.
As crianças e jovens vão crescendo e, à medida que isso acontece, ficam reduzidas as hipóteses de encontrarem uma família fora dos lares. A maioria dessas crianças e jovens encontra-se nas grandes cidades, como Lisboa, Porto, Setúbal, Braga ou Coimbra, mas tal não significa que nas outras capitais de distrito os números não sejam também elevados (acima de 100), como mostra o gráfico 1.
São várias as situações de risco associadas a ambientes socialmente instáveis. Na intervenção e institucionalização em idade precoce predominam as ocorrências por negligência, incapacidade parental e maus tratos, como revela um relatório do Instituto de Segurança Social.
Os colaboradores que trabalham nas instituições representam a família dessas crianças e jovens, proporcionando-lhes condições de afetividade adotando medidas para que estes se integrem na sociedade.
Ana Carvalho, auxiliar de educação na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, recorda que, quando chegou ao lar pela primeira vez, se sentiu abalada com aquelas histórias, pois eram muitas crianças, especialmente bebés, “abandonados logo na maternidade” e “crianças que simplesmente são esquecidas pela família”.
A larga maioria dos jovens institucionalizados em Portugal situam-se nas faixas etárias entre os 12 anos e os 20 anos e com menor incidência nas faixas etárias dos 4/5 anos e 21/24 anos (gráfico 2).
Luísa Clara, auxiliar de educação na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, trabalhou num lar de crianças e jovens e considera a experiência como uma grande aprendizagem e crescimento pessoal. As histórias de vida dessas crianças “machucam, impressionam”. Quando voltava a sua casa, não conseguia desligar-se: “vives a vida daqueles miúdos como se eles fizessem parte da tua vida”.
Raquel Rodrigues, auxiliar de educação na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, afirma igualmente que no início ficou tão comovida que chegou a ponderar a adoção: “nós não somos os progenitores, mas somos os cuidadores daquelas crianças” e, “na realidade, eles são como nossos filhos”.
É desenvolvido todo um trabalho com estas crianças para que lhes sejam proporcionados momentos para a sua inclusão social. As equipas são os elementos que mais diretamente participam no seu desenvolvimento pessoal, relacional, educativo e até profissional.
As auxiliares acompanham todo o percurso destas crianças, desde a alimentação, a higiene, a escolha das roupas e sapatos, o acompanhamento à escola, as idas ao médico, férias, atividades… E quando falta alguém, porque está doente, tem sempre de haver adultos responsáveis. “Não é um emprego que sais e bates a porta. A qualquer momento o telefone toca e tens de ir, as crianças é que não podem ficar sem acompanhamento”, dizem Ana, Luísa e Raquel.
Em pleno Estado de Emergência, Raquel levou duas crianças para sua casa, para servir como pivot de um projeto piloto para aferir se as crianças se conseguem integrar em famílias de acolhimento. Foi uma experiência dura, mas enriquecedora. “Podem não acreditar, mas uma criança de cinco anos nunca tinha visto uma máquina de lavar roupa.” E, por incrível que pareça, quando voltaram ao lar, “eles tinham saudades de casa”, mas não tinham saudades das outras crianças.
Algumas destas crianças são adotadas e o sentimento de pertença destes colaboradores é enorme. “As primeiras vezes foi desagradável, foi tão egoísta da minha parte, que nem conseguia pensar que eles iriam ter uma vida melhor que aquela que ali tinham”, diz Luísa.
As três concordam que, quando as crianças voltam para a família de origem e se sabe, de antemão, que não vai ser fácil, “os sentimentos de impotência e frustração são péssimos”. Mas, quando são adotadas por famílias que lhes vão proporcionar boas condições, o sentimento de felicidade é maior, apesar de perderem o contato com essas crianças, pois não voltam a saber notícias delas.
Estas crianças partilham tudo na instituição, o quarto, a mesa, os brinquedos e os adultos de referência. Ana diz que “precisam de parar de partilhar”, necessitam de uma vida “normal” e estável.
Muitas das crianças que sofrem abusos sentem-se culpadas, porque acham que os progenitores tinham motivos para tal. Acham que “portavam-se mal”. As crianças têm um padrão de vida de abusos e, “quando vêm para a instituição, começam a perceber que a situação em casa é que não era normal,” diz Luísa.
As crianças e jovens que, de uma forma ininterrupta, ficam expostos a situações de maus tratos vão revelar problemas comportamentais, que são nada mais que a exteriorização das dificuldades que sentem em lidar com o seu sofrimento interno. Estes problemas de comportamento são mais evidentes nas faixas etárias que correspondem à adolescência, conforme estudo do CASA ISSP, sendo que estes problemas vêm mais tarde a refletir-se em pequenos delitos, delinquência e outros.
Quando questionadas sobre a demora nas adoções, todas respondem que a justiça retarda o percurso de vida destas crianças “A justiça demora imenso tempo a retirar as responsabilidades parentais aos progenitores” e, como consequência, a criança “não é adotada porque está presa pelo sistema”, diz Ana.
Seria deveras relevante que se investisse em todo um trabalho com equipas interdisciplinares que fizessem um acompanhamento pormenorizado em cada caso, tanto com as famílias de origem, como com as famílias de acolhimento, conclui Luísa.