O interesse e curiosidade pela problemática da prostituição ocupam um lugar importante na sua vida. É através d’O Ninho que Dália Rodrigues consegue dar voz a quem viveu a sua vida em silêncio.
Dália Rodrigues, 44 anos, licenciada em Serviço Social, é a atual diretora de serviços da instituição O Ninho. Batalhou, durante grande parte da sua vida, pelas mulheres em situação de prostituição. Em entrevista, numa pequena sala na sede da instituição, conta como tem sido a sua experiência e fala dos perigos que as mulheres poderão correr, ao se legalizar a prostituição em Portugal.
Antes de ser a diretora de O Ninho, era assistente social da instituição. Como é que começou a trabalhar aqui?
Comecei a trabalhar n’O Ninho porque fiz um estágio académico, há 20 anos, que já foi há muito tempo [risos]. Eu era aluna da Dra. Inês Fontinha na faculdade. No final do curso, tínhamos de fazer um estágio numa instituição e a problemática da prostituição sempre me interessou. Não tinha propriamente uma ideia muito definida, mas já devia ter dentro de mim qualquer coisa e não tinha reparado.
Quando percebi que a Dra. Inês Fontinha trabalhava nesta instituição e apoiava mulheres em situação de prostituição, perguntei-lhe se podia fazer um estágio. Ela aceitou e nunca mais sai daqui. Trabalhei, durante cerca de 16, 17 anos no centro de atendimento, que é um dos serviços do Ninho. A minha experiência é sobretudo uma experiência de trabalho de campo e de conhecer a realidade. No centro de atendimento, trabalha-se diretamente no ativo. Vê-se a realidade de outra forma. Não é uma vida fácil. Não é a profissão mais velha no mundo. As profissões mais velhas do mundo, são a agricultura e a pesca. É, se calhar, a forma mais antiga de exploração do ser humano, por outro ser humano.
Sendo a diretora atual da instituição, ainda continua a fazer trabalho de campo?
Não, mas sinto saudades [risos]. Neste momento, tenho um papel diferente. As minhas responsabilidades têm a ver com as equipas dos vários serviços, com o falar para o exterior sobre O Ninho, dar entrevistas, ir a todos os sítios onde nos convidam para falar sobre esta problemática. Portanto, é um papel mais para o exterior, diferente do papel que tive durante vários anos. Por outro lado, a minha experiência ajuda-me a falar sobre o Ninho e a passar da melhor forma a palavra.
Como disse, foi aluna de uma das fundadoras de O Ninho em Portugal, a Dra. Inês Fontinha. Dado que já a conhecia, como foi trabalhar a seu lado?
Muito bom. Aprendi muito com ela. Aliás, aprendi tudo o que sei com ela. Foi a minha referência e a minha mentora. Foi quem me acalmou em situações mais ansiosas. Ela costumava dizer: “não se preocupe, há soluções para tudo, menos para a morte”. E ela tem razão. Mas, às vezes, apareciam situações tão complicadas que queria tanto resolver [pausa]. Mas não podemos resolver tudo e não podemos salvar o mundo. Se preciso de um conselho acerca de algo, ligo-lhe a pedir opinião e a sua ajuda.
Quando O Ninho fez 50 anos, afirmou, no seminário “Mundos e Mundos”, que a instituição tinha estratégias de intervenção inovadoras, pois iam diretamente aos locais onde as mulheres se prostituíam e que essa observação mais direta da realidade era crucial para estabelecer relações de confiança com as mulheres. Qual é a sua relação com estas mulheres?
Quem me ensinou a trabalhar e a ter uma visão diferente foram as mulheres que conheci. Tenho uma admiração enorme pelas mulheres que nos vêm pedir ajuda. São mulheres de uma [emociona-se] grandeza, depois de tudo o que passaram, de tudo o que sofreram, ainda terem capacidade para pedir ajuda, para sonhar que podem mudar a sua vida. Tenho um amor e um carinho muito grande por estas mulheres [pausa]. Têm me ensinado a relativizar. Às vezes, oiço histórias tão tristes, tão complicadas e penso: “realmente, e eu aqui tão preocupada com os meus problemas que não são nada”. Costumo dizer que elas são umas guerreiras [pausa] e são mesmo. Eu admiro-as bastante.
É a partir de um processo de construção de uma relação de afetividade, confiança e empatia que se consegue chegar às pessoas. Sobretudo a pessoas que já foram tão maltratadas na vida. Muitas destas mulheres, só connosco é que sentiram pela primeira vez que lhes deram [pausa] nem digo a mão, que simplesmente as ouviram.
Há atitudes que fazem a diferença. Lembro-me de uma vez, quando comecei a trabalhar, uma das coisas que fazíamos era acompanhar as mulheres no que elas precisassem e eu estava numa sala de espera, no médico, com uma utente e ela estava só a olhar para mim e perguntava “mas vai ficar aqui à minha espera?” Respondi que sim e ela ficou tão surpreendida! Na minha cabeça, eu não estava a fazer nada de especial, mas para aquela mulher, eu estar ali à espera com ela, era uma atitude que ela valorizava. Até costumo brincar com elas e digo: “é para isto que eu sou paga”. [risos] Mas não é só o pagar, obviamente. É o gostar de estar com estas mulheres e realmente é um prazer. E é por elas que vale tudo a pena.
“A prostituição é um negócio adaptável à sociedade do momento”
Que diferenças vê n’O Ninho e nos seus intervenientes, desde que entrou, há vinte anos, até agora?
Eu penso que as diferenças têm a ver com as adaptações das leis do mercado prostitucional à sociedade. Temo-nos vindo a adaptar. Neste momento, há realidades que não havia há imensos anos atrás. Por exemplo, a publicitação nos jornais e nos sites. Portugal a ser publicitado lá fora como um país onde existe turismo sexual. O fenómeno do tráfico, que veio alterar as regras do mercado. As mulheres virem através de redes e serem coagidas a prostituir-se dificultou bastante o nosso trabalho, porque são mulheres que têm medo de falar connosco.
O facto de começarmos a contatar com mulheres de culturas diferentes, de países que nós não conhecíamos, em termos culturais e de organização, são desafios que o Ninho tem vindo a adaptar aos longos dos anos. A prostituição é um negócio adaptável à sociedade do momento. Por isso é que o trabalho de campo é muito importante: para percebermos quais são as mudanças do meio, para podermos adequar as nossas respostas sociais a essas mudanças.
Numa entrevista recente (2017) que deu à Agência ECCLESIA, disse que a diminuição de mulheres na rua não significava que não existisse mais prostituição e que essa está a ser deslocada para casas particulares ou fechadas. Acredita que, com o avanço da tecnologia, a prostituição tem-se vindo a propagar mais e de forma mais oculta, sendo mais acessível e segura a prática do proxenetismo?
Sem dúvida. É mais difícil para nós. E esse também é um dos motivos pelo qual somos contra a legalização. No fundo, é legitimar o proxenetismo. É dizer aos proxenetas [chulos] que eles agora são empresários do sexo. Se olharmos para os países que legalizaram a prostituição, como a Alemanha e a Holanda, o que acontece é que as mulheres estão completamente fechadas em bordéis, legais, totalmente controladas e isso dificultou bastante o trabalho das assistentes sociais. Não é fácil entrar num local desses e tirarem as mulheres de lá. Também se torna ainda mais difícil as mulheres pedirem ajuda, uma vez que a prostituição já está legalizada. É também nesses países, quer a Holanda, quer a Alemanha, que houve um aumento de tráfico de seres humanos. Porquê? Porque os traficantes preferem um país em que é tudo mais facilitado, pois podem branquear capitais, podem controlar perfeitamente um negócio que é legítimo. Por isso, pergunto: como é que não olhamos para os exemplos de países como esses e não aprendemos com os seus erros?
Vendo as coisas de outra perspetiva, não acha que, com esses avanços na tecnologia, a instituição também teria mais facilidade em comunicar com as mulheres, a fim de as ajudarem?
Sim. É o que temos estado a fazer e o que estávamos a fazer através dos sms que enviávamos. Estamos agora a enviar para os sites. E temos obtido respostas de mulheres que nos pedem ajuda e nos pedem coisas bastantes concretas.
“No fundo, é dizer que o Estado também é proxeneta, porque vai tirar partido dos lucros da prostituição”
Voltemos à legalização. Já se afirmou contra, já tem uma opinião formada, já prestou várias declarações em que firma que ao legalizarem a prostituição estão a tornar a mesma um trabalho, quando é uma violação dos direitos humanos. Que riscos concretos poderão as mulheres correr, ao legalizarem a prostituição?
Vai ser pior para as mulheres. Normalmente as mulheres quando chegam até nós vêm [pausa] no mínimo, em termos psicológicos, bastante afetadas. Isto quando não vêm com doenças psiquiátricas e emocionalmente instáveis, devido a todo um percurso de violência a que foram sujeitas. Estarem numa casa fechada, completamente controladas pelos donos do negócio, de certeza que essa violência deve ser maior. Não conhecemos nenhuma mulher prostituída que tenha sido feliz ou que queira continuar naquela situação. Elas estão sempre numa situação de “eu estou aqui, mas um dia quero sair”. Não querem isso para os seus filhos.
Referindo novamente os países em que a prostituição está instituída, os seus dados não são muitos, o que dá que pensar, porque mostra que não se conhece a realidade, pois essa está camuflada. A violência contra as mulheres aumentou. E é fácil percebermos porquê. O cliente tem sempre razão, logo, entre quadro paredes, ele pagou, pode exigir tudo e mais alguma coisa. Ou seja, a violência e a devassa da vida emocional e do “eu” interno é muito maior, havendo este controle total das mulheres. Acho que, se já de si, os danos físicos, emocionais e psicológicos têm uma prevalência muito grande nestas mulheres, o estarem confinadas a um determinado local, ainda vai ser pior para elas.
Se queremos evoluir como sociedade, não podemos aceitar que haja uma situação de exploração do outro. Os problemas iriam prevalecer. O que iria alterar era a legitimidade do proxenetismo. No fundo, é dizer que o Estado também é proxeneta, porque vai tirar partido dos lucros da prostituição. Como digo várias vezes: “a prostituição é um trabalho para as filhas dos outros”.
É de conhecimento público as estratégias que O Ninho criou para reinserirem as mulheres na sociedade. Contudo, relativamente aos danos psicológicos, que estratégias adotam para ajudarem as mulheres?
O primeiro passo para a reinserção social é o trabalho. Mas também temos um apoio psicológico e psiquiátrico muito permanente, que é fundamental para a reinserção e a organização mental e interna das mulheres. A psicologia é um complemento muito importante nesta intervenção. Temos uma visão holística da mulher, até porque o ser humano tem várias facetas, é muito complexo, e tentamos adaptar as nossas estratégias a cada mulher.
Tem-se observado um aumento de jovens acompanhantes de luxo, que recorrem à prostituição, não por necessidade, mas por vontade própria, em Portugal. O que pensa acerca disso?
Isso é um fenómeno de que se tem ouvido falar muito. Estou para ver, até porque se fala muito de raparigas que estão a estudar e que se prostituem, a fim de comprarem o que quiserem, se essa realidade é mesmo assim. Será que não têm outros motivos, para além desses que querem transparecer?
Os jovens têm cada vez mais acesso à informação acerca das consequências da prostituição e a sua realidade. No entanto, ainda têm essa hipótese em conta. Porquê?
Não sei. Muitas jovens querem transmitir a imagem de que gostam de se prostituir, mas escondem os verdadeiros motivos pelos quais o fazem. É uma opção individual. Não acredito nessas entrevistas das mulheres que dizem que gostam muito de se prostituir, porque a maior parte delas acabam por nos dizer que não é bem assim. Já encontrámos mulheres a prostituírem-se em estradas, que nos dizem que quando eram jovens, estavam em apartamentos de luxo. É isso que tentamos passar cá para fora, para os jovens, a realidade dura e concreta do negócio do sexo.
Vamos a todos os sítios onde nos convidam falar acerca da problemática da prostituição e desmitificar alguns mitos que existem, como a prostituição ser [faz gestualmente aspas, enquanto cita as afirmações] “um mal necessário”, “que nunca vai acabar” e “que existe a prostituição porque os homens têm necessidades”.