Estima-se que os primeiros ciganos tenham chegado a Portugal no século XV e, desde então, a comunidade tem sido constantemente colocada à margem da sociedade. Contudo, com a emergência de partidos políticos de extrema-direita, o discurso de ódio e de segregação social tem vindo a ganhar força no país. “Os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado”. É o argumento mais utilizado, mas será que corresponde à realidade?
Segundo o Conselho da Europa, calcula-se que em Portugal a comunidade cigana ronde as 52 mil pessoas (dados de 2022). Apesar de corresponder apenas a 5% da população portuguesa, os ciganos continuam a ser discriminados e marginalizados pela sociedade e, por vezes, pelo poder político e pelas autoridades policiais. De acordo com os dados da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia- ADFUE (2021), mais de 60% dos ciganos portugueses sentiram ter sido alvo de atos discriminatórios, um aumento de 17% face a 2016. Sendo a percentagem mais alta relativamente aos restantes 12 países analisados no estudo. Álvaro Nascimento, estudante universitário de etnia cigana, olha com preocupação para esta problemática: “é uma situação alarmante. Todos os dias, observo comentários preconceituosos e discriminatórios principalmente nas redes sociais. Qualquer pessoa pode escrever aquilo que quiser, não existe nenhum tipo de controlo”. O aumento da discriminação foi acompanhado pelo renascimento de partidos de extrema-direita como o Chega, que ganhou relevância política através da difusão de afirmações preconceituosas e falsas sobre a comunidade cigana. Apesar do discurso ser ofensivo, este foi acolhido por um grande número de eleitores, tornando assim o Chega no terceiro maior partido do espectro político português.
Todavia, a discriminação da população cigana por parte do poder político não é novidade. No ano de 1993, a Câmara Municipal de Ponte de Lima decidiu expulsar os ciganos e destruir barracas com base numa acusação de tráfico de droga que não tinha sido provada pela justiça. Esta decisão acabou por não ser aceite pela Procuradoria-Geral da República, por se tratar de uma medida discriminatória. Em 1997, Armando Costa, na altura, presidente da Junta de Freguesia de Gandra no concelho de Paredes referiu-se aos ciganos como “ladrões e pouco sérios”. Mais tarde, em 2002, o autarca foi condenado pelo Tribunal Judicial de Paredes a uma pena suspensa de nove meses de prisão. Tratou-se de um caso inédito, visto que foi o primeiro português condenado por discriminação racial. Em setembro de 2012, a GNR realizou uma rusga ao acampamento da comunidade cigana de Cabanelas, no concelho de Vila Verde. Os moradores relatam-na como uma “noite de terror”. De acordo com testemunhos, alguns foram vítimas de agressões com disparos de balas de borracha, descargas de tasers, bastonadas e outros chegaram a ser molhados com mangueiras. Álvaro Lima, vendedor de automóveis e membro conhecido da comunidade cigana de Almeirim, refere que estas ocorrências são comuns: “é algo que não me surpreende. Não digo que os polícias sejam todos iguais, mas se eles souberem que somos ciganos mudam o comportamento. Tornam-se mais agressivos e mal-educados”.
Segundo o relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2021), 84% dos ciganos portugueses inquiridos sentiram-se discriminados quando foram mandados parar pela polícia. Em setembro de 2013, o candidato do Bloco de Esquerda à Câmara Municipal de Elvas, Francisco Castelo, viu-lhe ser retirada a confiança política devido a comentários discriminatórios contra a comunidade cigana. O candidato dirigia-se ao povo cigano como “alguém que rouba, não paga impostos, nem trabalha”. Em junho de 2014, o presidente da Câmara Municipal de Vidigueira, Manuel Narra, mandou demolir um armazém que era habitado por cerca de 70 pessoas de etnia cigana, deixando-as a viver na rua. Referir que este armazém tinha sido construído pela câmara municipal, dois anos antes, com o intuito de albergar estas mesmas pessoas.
Mais recentemente, em novembro de 2020, André Ventura, presidente do Chega, foi condenado a pagar uma multa de 438,81 euros por declarações discriminatórias contra a comunidade cigana ao afirmar que 90% vive de “outras coisas” e não do próprio trabalho.
Uma comunidade extremamente pobre
Segundo os dados do relatório da ADFUE (2021), 96% da comunidade cigana portuguesa vive abaixo do limiar de pobreza. “Infelizmente, conheço algumas situações dentro da comunidade. Pessoas que vivem em barracas, sem água, luz ou esgotos. Muitas famílias que passam grandes dificuldades, várias não têm sequer o que comer”, conta Álvaro Nascimento.
De acordo com o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas (ENCC) elaborado pelo Observatório das Comunidades Ciganas, 27% dos inquiridos ainda habita em barracas, sendo a situação mais preocupante na região do Algarve. O elevado nível de pobreza também chega à alimentação. Segundo o estudo acima mencionado, 48% dos inquiridos indica passar ou já ter passado fome. Este défice alimentar faz com que a comunidade cigana portuguesa seja a que tem mais doenças crónicas da União Europeia. Além disso, devido ao elevado número de problemas de saúde, um cigano vive em média 60 anos, uma idade ainda distante da média europeia que são 78 anos.
Dificuldade em ter um emprego
A acentuada percentagem de ciganos a viver no limiar de pobreza pode ser explicada por diversos fatores, como a dificuldade em entrar no mercado de trabalho aliada a um baixo nível de escolaridade. Segundo dados da ADFUE (2021), 81% dos ciganos portugueses inquiridos sentiu-se discriminado ao procurar emprego, um aumento de 34% face a 2016. Álvaro Nascimento não fica espantado com este aumento significativo. “Comigo ainda aconteceu pior. Quando descobriram no meu local de trabalho que era cigano acabei por ser despedido imediatamente.” De acordo com o ENCC, cerca de 66% dos ciganos que participaram no estudo referiram que nas últimas três semanas não tinham procurado emprego, sendo a razão principal o facto de que ninguém dá trabalho a uma pessoa de etnia cigana, originando que a grande maioria trabalhe por conta própria. “Se for a uma entrevista de emprego e se não souberem que sou cigano corre tudo bem. A partir do momento que percebem, mudam logo o comportamento”, acrescenta Álvaro Lima.
Escolaridade na comunidade cigana
A dificuldade em entrar no mercado de trabalho pode ser justificada pelo preconceito existente na sociedade, mas o baixo nível de escolaridade da população cigana também pode ser um fator determinante. Segundo o ENCC, a grande maioria dos ciganos inquiridos que não sabe ler ou escrever (15,5%) ou que tem apenas o 1º ciclo de escolaridade (19,6%) tem uma enorme dificuldade em encontrar emprego, tendo assim a necessidade de recorrer a subsídios estatais. Por outro lado, aqueles que concluíram o 3º ciclo, ensino secundário ou progrediram para o ensino universitário (9%) são os que mais facilmente conseguem entrar no mercado de trabalho. Álvaro Lima refere: “para mim a educação é importante. Sempre incentivei os meus filhos a estudarem porque quero que tenham uma boa vida e sem formação muito dificilmente a terão”. Porém nem sempre foi fácil. “Por vezes, sentia-me triste. Ao mesmo tempo que insista com eles para irem à escola, diziam-me que não queriam. Muitos colegas não os aceitavam ou não brincavam com eles por serem ciganos.” Além da política, a discriminação à comunidade cigana também chega às escolas. Em setembro de 2014, uma escola de Tomar criou uma turma composta apenas por alunos ciganos com base no historial de chumbos e absentismo escolar. Apesar da polémica, o estabelecimento de ensino referiu que não se tratava de uma medida discriminatória. Em outubro de 2020, em diversas escolas secundárias e universidades de Lisboa foram escritas em muros frases como “Morte aos ciganos” ou “Portugueses digam sim ao racismo”.
“Estou prestes a terminar o meu curso e posso dizer que na universidade nunca me senti discriminado, mas nem sempre foi assim. Quando andava no 1º ciclo, as outras crianças não brincavam comigo por ser cigano, olhavam para mim como se fosse um bicho”, refere Álvaro Nascimento. Apesar das dificuldades de adaptação, segundo os dados recolhidos pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação (DGEE), o número de ciganos matriculados em escolas públicas quase duplicou em 19 anos. No ano de 1997/1998, estavam inscritos 5420 alunos. Em 2016, registava-se um aumento significativo, estando matriculados cerca de 11 000 crianças e jovens. Bruno Gonçalves, dirigente da Letras Nómadas, em entrevista ao PÚBLICO, de forma a justificar o aumento do número de alunos, refere fatores como a diminuição da venda ambulante (“os pais decidiram investir na formação dos filhos para que estes pudessem ter outra alternativa no futuro”) ou a implementação de subsídios que forçou as famílias ciganas a deixarem as suas crianças cumprir a escolaridade obrigatória, porque a grande maioria não queria perder o acesso a estas prestações sociais.
O mito da subsidiodependência cigana
A dificuldade em encontrar um trabalho e o baixo nível de escolaridade conduziu a grande maioria da população cigana para uma condição de pobreza extrema. Para evitar o agravamento desta problemática, não só na comunidade cigana, mas na sociedade em geral, o Estado criou o Rendimento Mínimo Garantido em 1997, que deu lugar ao RSI em 2002 para que as pessoas pudessem ter uma vida digna. Porém, recentemente, com o ressurgimento de partidos de extrema-direita como o Chega, o discurso discriminatório contra a comunidade cigana tem vindo a ganhar cada vez mais relevo na opinião pública. O principal argumento que alimenta a sua narrativa é que a população cigana vive “quase exclusivamente de subsídios”, causando um impacto significativo nos pagamentos da Segurança Social.
Porém, segundo dados de 2020 da PORDATA, a despesa da Segurança Social fixou-se nos 39,7 mil milhões de euros. Desses, 339,7 milhões são aplicados no RSI, correspondendo a 0,9%. “Não digo que não existam ciganos a receber subsídios. Claro que há, mas não é porque querem viver à conta disso. É muito difícil para nós conseguirmos arranjar um emprego e, se não trabalhas, não ganhas um salário, sem ele nunca vais conseguir sair da pobreza”, refere Álvaro Lima. De acordo com o “Relatório das audições efetuadas sobre portugueses ciganos”, o número de pessoas de etnia cigana beneficiárias do RSI era 3,7%, sendo que, nos últimos anos, segundo dados da Segurança Social, o número tem variado entre 3 e 6%, um valor muito abaixo da totalidade de beneficiários. “Uma mentira contada muitas vezes acaba por se tornar verdade. Faz-me confusão! Basta ver na Internet que o que eles (Chega) dizem não é verdade”, acrescenta Álvaro Nascimento. Referir que dados do mesmo relatório indicam que o número total de famílias beneficiárias do RSI correspondia a 135.428 e dessas 5.275 estavam identificadas com sendo de etnia cigana. Ao longo dos anos, o valor do RSI tem sofrido várias atualizações. Em 2017, situava-se nos 183,84 euros; em 2019, o valor atingiu os 189,66 euros, correspondendo a um aumento de seis euros. Apesar de se dizer que os ciganos “vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado”, como será “viver” apenas com 189 euros por mês?
RSI é uma prestação social criada para satisfazer as necessidades básicas de um agregado familiar
Para além de um subsídio, trata-se de um contrato social em que o beneficiário e o seu agregado comprometem-se a cumprir um conjunto de requisitos, tais como a procura de emprego e a frequência de ações de formação. Além dos subsídios, em 2019, o Governo criou o programa Roma Educa que concedeu 100 bolsas de estudo a jovens ciganos para que estes pudessem frequentar o ensino secundário.