Confrontados com a imediaticidade, expostos à brutalidade dos dramas humanos, os fotógrafos de imprensa transformam a câmara numa espécie de filtro à prova do sofrimento alheio. Sempre na linha da frente nos incêndios de 2017, para os fotógrafos portugueses, informar tornou-se uma missão maior do que a própria vida.
As imagens são catalisadoras de emoções e não é por acaso se são um suporte privilegiado nos meios de comunicação. São necessárias para veicular mensagens e informação percetível em diferentes elementos, como as cores, as linhas, a textura, o conteúdo ou a composição. A emoção é desencadeada pelo significado que atribuímos à fotografia. As imagens dos incêndios significam não só uma tragédia no momento; são florestas e aldeias a arder, como uma tragédia futura: a das pessoas que ficaram sem nada e, por vezes, sem ninguém.
O impacto informativo desperta uma reação emocional duplamente forte. Como escreveu o semiótico francês Roland Barthes, uma vertente denotativa mostra florestas e as casas a arder e, aquilo que não é óbvio, a conotação, sugere o sofrimento, o desespero e o vazio dos que ficaram sem nada. O leitor faz uma espécie de projeção no futuro imaginando de que será feito o amanhã das vítimas. Para onde irão, onde viverão, como reconstruir toda uma casa, uma vida, um negócio, como recuperar de uma tragédia de tal maneira traumatizante.
O jornalismo sempre foi o testemunho de catástrofes naturais e das grandes tragédias da Humanidade. O fotojornalismo como parte integrante do jornalismo deve pensar as mesmas questões éticas. Como saber quais as informações que são de interesse público. Portanto, que imagens devem ser divulgadas e chegar ao público?
Recusa do sensacionalismo
Certamente que são necessárias fotografias fortes, como se, no seu silêncio, tivessem uma voz própria. Mas mantém-se o imperativo de recusa do sensacionalismo. Paulo Pimenta, fotojornalista do jornal Público, explica que existem duas escolhas quando se encontra no terreno, tal como aconteceu nos incêndios de 2017: “Ou optamos por uma grande imagem, esquecendo quem está do outro lado, ou respeitamos quem está do outro lado.” Mais concretamente, respeitar o sofrimento, a dignidade e a privacidade do outro é saber que “nem sempre é preciso ter a pessoa completamente exposta ou em estado de agonia. Com um pormenor, é possível dar mais que o óbvio”, considera.
A escolha das imagens deve depender de questões éticas e também do ângulo de abordagem que o fotojornalista quer dar à sua narrativa fotográfica. Adriano Miranda, um dos mais experientes fotógrafos de imprensa portugueses, deixou os leitores do Público sem palavras perante a imagem de primeira página de um homem de Pedrógão Grande, com o ar perdido e cansado, de quem não espera mais da vida do que esta pode dar. Completamente desprovida de sensacionalismo, a fotografia transporta o leitor para uma dimensão hiper-realista e tocante.
Numa crónica publicada no jornal Público, a jornalista Maria João Lopes descreve a imagem que depois correu as redes sociais: “A fotografia do Adriano Miranda devolveu algum silêncio à tragédia. E fê-lo porque fala mais alto, fala muito alto, tivemos de nos calar um pouco diante dela. Há silêncios que fazem muito, muito barulho. A fotografia do Adriano é um deles. A fotografia do Adriano devolveu humanidade à tragédia, e a nós. As tragédias têm rostos. No momento em que ela estava a ser impressa, para ser capa do jornal no dia seguinte, chovia em alguns sítios do país. Também as pessoas e as terras precisavam que se lhes devolvesse isso. Finalmente. Pelo menos, isso.”
Em entrevista ao UALMedia, o fotógrafo cujo trabalho deu que falar explica o que o moveu nos maiores incêndios de que há memória em Portugal: “Acho que estamos fartos daquelas imagens com grandes chamas. Existem muito mais coisas a acontecer para além do fogo em si mesmo. Os danos que o fogo provoca, a reação das pessoas, o seu sofrimento, os efeitos nos animais e na natureza são fatores que valorizo mais que as chamas.”
Fotografias chocantes com pessoas feridas, mortas ou cheias de sangue tendem a afastar-nos do impacto que queriam provocar. Outras com bombeiros exaustos ou em situação de emergência podem ser mais impressionantes pelo facto de sugerirem circunstâncias que não aparecem na fotografia. No entanto, se é verdade que algumas fotografias apelam para o choque e o horror, outras fotografias de dor e sofrimento têm a vantagem de mobilizar a opinião pública.
Sérgio Azenha, fotojornalista freelancer e colaborador da agência Nfactos, que trabalha muito na zona Centro, adverte para a exploração gratuita de uma pessoa num estado frágil: “Abstenho-me de fotografar as pessoas quando estão fora de si, em pânico e em desespero a tentar proteger os seus bens do fogo. Mas respeito quem fotografe essas situações e sei que, por vezes, poderão ser esse tipo de fotografias a fazer a diferença na opinião pública, levando a que o poder estatal se veja na obrigação de intervir e com alguma sorte, melhorar a situação para anos vindouros. Nesse caso, a exploração talvez já não tenha sido gratuita, digo eu”. O essencial, segundo a opinião de Adriano Miranda, é juntar na mesma imagem a estética com a informação: “Produzir imagens com alto valor estético e que contenham a maior informação possível. Isso é o mais difícil de fazer, mas só assim se obtém boas imagens.”
A cobertura de um evento dramático supõe que seja feita “no imediato”, “em direto”. Os incêndios são notícia no momento em que decorrem e não apenas quando acabam. Esta imediaticidade requer uma enorme capacidade de reação e lucidez por parte do fotojornalista. Paulo Pimenta defende que é muito complicado. “São milésimos de segundos e é a nossa maneira de estar no momento e de decidir”, afirma, referindo-se ao respeito e cuidado, imprescindíveis para com a pessoa que está do outro lado da câmara. Acima de tudo, para o fotojornalista, importa saber colocar-se do outro lado, do lado de quem está a ser fotografado.
Dificuldades na cobertura dos incêndios
Pelo risco que supõe fotografar locais dominados pelas chamas, o fotojornalista deve preparar-se, se o poder, ou pelo menos, ter alguns fatores de risco em conta. Sérgio Azenha percorreu dezenas de quilómetros a pé, com os perigos que isso implica, até conseguir encontrar as situações que queria fotografar, dado que o acesso às frentes dos fogos foi-lhe constantemente barrado pela GNR. “Após as mortes em Pedrógão Grande, a opinião pública pôs em causa a atuação das autoridades e elas reagiram, talvez com excesso de zelo, impedindo os jornalistas de fazer o seu trabalho”, conta.
Conhecer o tipo de catástrofe que se está a fotografar, ter noção de como o fogo avança consoante o tipo de terreno e mesmo deixar o automóvel em sítios estratégicos para fugir caso a situação se complique são parâmetros a ter em conta. Sérgio Azenha diz ainda que “é importante ter noção do risco aceitável, não exagerando na ‘coragem’ em situações que possam realmente colocar em perigo de vida. Um fotojornalista morto não tira boas fotografias”.
Paulo Pimenta partilha o que sentiu quando esteve no meio das chamas a fotografar: “De um momento para o outro, ficava sem ver nada por causa de tanto fumo e pensava que o que tinha acontecido aos outros também me podia acontecer a mim. Desta vez, havia essa sensação de que o perigo era mesmo muito próximo e real.”
O risco a que se expõe o fotojornalista, que pela natureza da sua profissão tem de estar no sítio e no momento certos do drama, junta-se à dor sentida ao testemunhar a tragédia, que Paulo Pimenta qualifica de “cenário de guerra”. “Uma pessoa anda quilómetros e quilómetros de estrada e só vê casas destruídas, zonas inteiras completamente destruídas. Aquela cor de medo e tudo destruído e o silêncio brutal do cenário. Antes existiam ali pessoas, existiam animais, existia vida e de um momento para o outro, surgiu uma mancha de negro. Ainda dói.” Também Adriano Miranda ficou abalado, tal como se imagina que qualquer pessoa que tenha presenciado os incêndios teria ficado. O ex-editor de fotografia do jornal Público diz que o mais difícil foi o cenário de terror com que se deparou. “Foram as mortes. Foi o sofrimento das pessoas. É por vezes difícil saber quando e o que se deve fotografar. É uma decisão muito pessoal”, revela.
Fotografias que marcaram outubro
Hectares e hectares de floresta a arder, chamas de um vermelho ameaçador a devorarem casas, bombeiros e populações a combaterem os incêndios foram algumas fotografias que marcaram os meios de comunicação e as redes sociais, durante o mês de outubro. Depois, veio a fase pós-incêndios, com fotografias de casas destruídas, carros ardidos, montanhas negras invadidas por tristes árvores nuas e carbonizadas. Vieram as imagens do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, abraçado às vítimas e aos familiares das vítimas dos fogos, fortes em emoções.
Destacam-se também as fotografias com os moradores a “pousarem” para a câmara de frente às suas propriedades ardidas, desde casas a veículos, empresas e fábricas. Estas fotografias têm muito impacto, não só pela visível dimensão dos estragos como pela presença humana da pessoa que tudo perdeu, a sua expressão, o cansaço, o desespero que se vê na sua expressão.
A fotografia do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, abraçado a uma idosa que chora, em profundo sofrimento, deu a volta ao mundo e causou um forte impacto emocional no leitor. A expressão do rosto transmite, sem serem necessárias palavras, a dimensão trágica que vai para além dos hectares ardidos e zonas destruídas: é o sofrimento humano que está em causa. Em menos de sete horas após a partilha da fotografia, cerca de 40 mil pessoas já a tinham visto e que centenas de pessoas deixaram comentários solidários.
A força das imagens
A emoção nasce da interpretação e reconhecimento que cada leitor faz da imagem. Uma imagem tem vantagem de mostrar, de forma rápida e óbvia, toda a informação que contém. Seria infundado estabelecer uma relação de poder das imagens sobre o texto narrativo. Como crítica Sérgio Azenha: “A verdade é que a maioria dos jornalistas da escrita raramente vai à frente de fogo ver o que se passa. O texto sem as imagens não provocaria a reação que acabámos por observar no povo português. Saber que morreram dezenas de pessoas é uma coisa. Ver imagens dos carros carbonizados é outra completamente diferente. Se essas imagens chocantes tiverem contribuído para o despertar das pessoas para este problema cíclico e recorrente de Portugal e, pela pressão dessas pessoas, conseguirem que este Governo e os futuros mudem algo para que as tragédia se evitem, acho que valeram a pena.” Para o fotógrafo de Coimbra, a responsabilidade social do fotojornalista “é a de mostrar o que se passa no terreno e dar voz às vítimas, às pessoas cujas casas arderam e aos bombeiros que sofreram com o esforço acumulado ao longo de dias nas florestas”. Já Adriano Miranda defende que “o fotojornalista deve ser um ativista permanente na busca de histórias e temas que façam a sociedade refletir, aprender e atuar por uma sociedade melhor”.