Com quase 63 anos de radiofonia, é o locutor há mais anos no ativo. Experienciou momentos únicos e emoções inexplicáveis. Começou a sua carreira aos 17 anos na Rádio Peninsular. Passou pela Rádio Renascença e, atualmente, é produtor e locutor na Rádio Sim. De madrugada, a sua voz continua a ser a companhia de todos os ouvintes do programa “Suave É a Noite”.
A sua vida sempre foi a rádio.
Sim, principalmente a rádio. Fiz outras coisas, passei pela televisão como produtor e como apresentador na RTP, em 1958, a convite de uma figura muito importante, Dr. Artur Varatojo. Mas a televisão obriga a uma imagem mais cuidada e eu não gosto daqueles imperativos “tens de estar aqui”, “tens de olhar assim”, “tens que fazer acolá”. Gosto de estar livremente a falar e a transmitir, e a rádio possibilita que eu esteja à vontade, se quiser até estou em “mangas de camisa”. A rádio é comunicação.
Também tive a possibilidade de dirigir jornais e revistas. Fui diretor de uma revista de um programa meu. Esse programa era dedicado a gente nova, naquela altura era o “Páju”, era o marco da altura. Começou no início dos anos 60 e tinha o que têm hoje muitos programas, como, por exemplo, as rúbricas populares e o desporto. Fugíamos um bocado ao futebol. Íamos mais para a esgrima, natação, para aquilo que precisava de apoio. Apoiávamos os jovens.
Tive ainda uma revista dedicada ao Alentejo. Eu sou natural do Porto, mas a minha mulher era alentejana e levou-me, na altura, a fazer uma revista que foi a primeira a cores que saiu, dedicada ao Alentejo, que se chamava “Alentejo Ilustrado”. A revista dava a conhecer o que era a região.
E com a minha mania da rádio, mais tarde criei um jornal chamado “Jornal da Rádio”, em que falava do panorama radiofónico, na altura em que tinham começado a surgir as rádios locais. Mas a rádio… a rádio sempre foi a minha espinha dorsal.
Imagine um mundo sem rádio. Quem seria o Aurélio?
Por acaso, é uma pergunta muito pertinente. Acho que não seria ninguém (risos). Gosto tanto da rádio, vivo-a tão intensamente que, se não a tivesse, não sei o que me aconteceria. Chego a pensar muitas vezes nisso. Não quer dizer que fosse a minha morte, mas era um desgosto enorme que me podia definhar e acabar por levar exatamente a uma forma, digamos, final. Eu vivo a rádio intensamente.
Tem 62 anos de rádio e é o locutor há mais tempo em atividade. Segundo sei, daqui a três meses completará 63 anos. Como começa esta história?
Olhe, começa numa rádio que hoje já não existe, a Rádio Peninsular, que pertencia aos Emissores Associados de Lisboa. Quando comecei, havia a Emissora Nacional, Rádio Clube Português e a Rádio Renascença. A Sul, numa cobertura de Leiria até ao Algarve, os Emissores Associados De Lisboa; no Norte, os Emissores do Norte Reunidos, que faziam a cobertura de Leiria e Coimbra para cima. Eram quatro estúdios que estavam juntos nos Emissores Associados e um deles era o Peninsular, onde comecei em 1956.
Início de carreira
Como é que começa essa paixão pela rádio?
Desde miúdo. Os Emissores do Norte Reunidos tinham aqueles programas de discos pedidos que ainda hoje existem em certas rádios. Pedi ao meu pai para me inscrever como sócio, porque as rádios, nos anos 40, viviam de associados. Esses associados pediam discos e tinham direito a ir a bailes. Bom, naquela altura, com os meus seis ou sete anos, não ia a bailes, não é verdade? (risos) Então, o meu pai inscreveu-me para que tivesse a possibilidade de ir pedindo discos a uma das rádios dos Emissores do Norte Reunidos. Pedia aquelas músicas de miúdo, próprias para crianças.
Depois, mais tarde, comecei a organizar festas com os meus primos durante as férias. Reuníamos todos numa quinta que o meu tio tinha e, nos espetáculos, o que é que eu fazia? Era o locutor! Uns cantavam, outros declamavam e eu fazia exatamente de locutor. Logo que tive possibilidade, tentei concretizar a ideia de entrar na rádio a sério.
A sua carreira inicia-se muito cedo, aos 17 anos, na Rádio Peninsular, como já disse. Foi difícil esse arranque?
Foi difícil, porque naquela altura ninguém acreditava num jovem de 17 anos. Eu também trabalhava em publicidade. Um dia, visitei um cliente de uma firma em Lisboa perguntando-lhe se queria fazer publicidade nos meus programas e ele disse-me: “Oiça lá! O que é que anda a fazer por aqui? Devia era estar era no liceu, na escola ou na universidade a estudar, agora aqui na rádio?! Deixe-se dessas coisas!” As pessoas não podiam acreditar que um jovem de 17 anos se iniciasse numa atividade que naquela altura era muito acarinhada, mas ao mesmo tempo mal vista. Tanto que a minha irmã tinha vergonha de dizer que o irmão trabalhava na rádio, porque trabalhar na rádio não era lá muito bonito. Muitas pessoas perguntavam-me: “Ah, trabalhas na rádio? E o que fazes mais?” (risos)
Para além dessa dificuldade, nessa altura, só se era adulto aos 21 anos ou aos 18 anos se emancipado. O meu pai morreu muito jovem e a minha mãe emancipou-me e ao meu irmão mais velho para poder administrar algumas coisas. Se não fosse assim, só aos 21 anos é que podia entrar para a rádio. Depois, tinha a vida militar, mas fiquei livre dela, numa altura em que recebi o convite para a televisão. E nisso tive uma sorte enorme.
Hoje, a rádio continua a ter a mesma magia que tinha quando falou ao microfone pela primeira vez?
Não, com certeza que não. Os locutores eram principalmente vistos por aquelas pessoas como “família”, havia uma certa intimidade todos os dias. Vou-lhe contar uma história curiosa. Conheci uma senhora muitos anos depois, isto já nos anos 80/90, no Alentejo, que me disse: “O Aurélio não sabe o quanto a minha mãe gostava de o ouvir. Lembro-me que era miúda, vivíamos num monte no Alentejo, num sítio ermo, eu ia para a escola e, quando voltava, a minha mãe dizia-me que estava muito triste porque, naquele dia, ainda não tinha ouvido o ‘seu’ Aurélio.” Ela não me conhecia, mas era aquela voz que a encantava e que lhe fazia companhia nos momentos mais solitários. E a rádio tinha essa magia. A voz do locutor fazia companhia a muita gente e passávamos a pertencer quase à família dessas pessoas.
Passou por momentos muito importantes da História de Portugal. A ditadura foi um deles. Os meios de comunicação eram controlados e censurados, e a rádio era o órgão mais importante e mais utilizado para se chegar aos portugueses. Que tipo de controlo e censura sentiu nessa época?
Tive muitos problemas com a censura. Nós aprendíamos à nossa custa e à custa dos conselhos dos mais velhos, era assim que íamos evoluindo. Sempre fui uma pessoa que procurou outros meios, assinava muitas revistas francesas, inglesas, brasileiras e espanholas. Numa dessas revistas, reparei que havia uma escola em Madrid que fazia cursos que naquela altura estavam muito em voga. Havia até cursos de cultura geral! Nessa escola, não era necessário estar permanentemente a assistir às aulas, respondíamos às lições que nos mandavam e depois íamos fazer um exame final a Espanha. Eu fiz um curso mais ligado à produção do que à locução.
Estava na rádio há cerca de um ano e escrevi um artigo. O seu assunto era: “Porque é que em Portugal não há uma escola de rádio como em Espanha?” Como sabe, em Espanha também era uma ditadura. Ditadura por ditadura, achei que não causasse problemas, mas enganei-me. Veio o texto completamente cortado a lápis azul e à margem dizia: “É uma grande verdade, mas habitue-se, como jovem que é, que nem todas as verdades se podem dizer.” Era uma coisa estúpida, porque o censor concordava que devia haver uma escola de rádio, mas, no entanto, riscou todo aquele artigo.
Pela vida fora, tive vários problemas, quase sempre com um resultado estúpido. Iam buscar as coisas mais… (pausa) Um dia, fizeram-me um aviso, dizendo que andavam atentos porque metia uma canção muito romântica nos “Poemas de Autor”, chamada “Pide”. Colocava a música, porque era interessante para a gente nova e para os bailaricos, mas os homens da PIDE pensavam que andava a gozar com eles por andar sempre a pôr esse disco. (risos)
Programas, reportagens e entrevistas
O programa “Páju” foi um dos mais duradouros de sempre, com 48 anos de emissão. O Aurélio deu-lhe uma dinâmica e apostou numa interatividade com o público que na atualidade quase não existe. Acha que é possível voltar a essa proximidade entre o locutor Aurélio e ouvinte?
Não, hoje a rádio está diferente, é triste dizê-lo. É muito mais “controlada”, mas quando falo em controlada, não falo em censura.
Antigamente, tinha uma ideia para um programa e como produtor – por exemplo, o “Páju” era um programa de produção independente – chegava junto dos responsáveis da rádio e dizia: “eu vim fazer isto e aquilo” e a resposta era: “faça!” Tinham confiança em mim. Como dizia um administrador da Rádio Renascença há uns anos: “Porque é que eu hei de dizer que não, se você só me tem dado alegrias?” Até dar uma tristeza, que nunca lhe dei, automaticamente não havia problema.
Hoje em dia, apresentam um programa, têm de ver se esse programa está enquadrado na questão etária… é outra coisa. As audiências mataram a rádio, porque atualmente as pessoas procuram ter audiências, não procuram saber de que forma chegam lá. O que é importante é ter espetadores e ouvintes, e eu não alinho nisso!
Fez reportagem na casa onde começou e na Rádio Renascença, transmitiu 23 voltas a Portugal em bicicleta e dois campeonatos do Mundo em ciclismo. Esteve presente em mais de 60 edições do Festival da Canção, cinco na Eurovisão e outros cinco no Festival OTI [Organización de Televisión Iberoamericana ]. Como é que começa essa aventura de repórter?
Começa muito cedo, ainda no final dos anos 50, quando me convidam para estar presente num festival em Espanha, que tinha uma grande vantagem: tinha muito movimento, muitos eventos que davam a conhecer a música nas suas mais diferentes formas. Fui ao festival, ganhei-lhe o gosto e continuei a acompanhar.
O primeiro grande festival que acompanhei foi em 1966, o Festival da Eurovisão onde esteve presente a Madalena Iglésias, com o “Ele e Ela”. No mesmo ano, estive na Canção do Mediterrâneo, em Barcelona. Os OTI foram mais tarde, o meu primeiro foi em 1977, em Madrid. Depois, continuei na Argentina, Venezuela, México, e aqui em Portugal.
O Midem (Marché International du Disque et de l’Édition Musicale) chamava a Cannes, em França, o que havia de melhor na música internacional naquela altura. A minha estreia no festival foi na companhia do João Paulo Diniz, em janeiro de 1974, e logo a seguir foi o 25 de abril. Nesse festival estiveram The Pointer Sisters – uma banda norte-americana sensação –, um senhor chamado Stevie Wonder, o músico francês Yves Montand e a brasileira que vendia mais discos juntamente com Roberto Carlos, Clara Nunes. Tive a sorte de estar com eles, entrevistá-los e ver os seus concertos ao vivo. Muitos deles nem nunca vieram a Portugal e, os que vieram, tive a oportunidade de os entrevistar muito tempo antes…
Falou em entrevistas. Tem alguma entrevista marcante?
Não… Bom, há uma interessante (risos), com um senhor italiano, Adriano Celentano, que era ator de cinema. Tinha a mania que era o Frank Sinatra Italiano, mas realmente cantava muito bem e venceu o Festival de Sanremo em 1970. Naquela altura, andava a frequentar o Instituto Italiano e tinha uma admiração pela música italiana. E a ida a Sanremo era uma forma de praticar o italiano, durante o ano não tinha essa oportunidade. Fui ter com ele e pedi-lhe no melhor italiano que conseguia uma entrevista: “Olhe, dê aqui uma palavra para Portugal!” O Adriano era uma pessoa muito brincalhona, era preciso ter muito cuidado. Ele pega-me no microfone e diz: “Ciao, Portogallo” e devolve-me o microfone. Fiquei com “um melão”, como se costuma dizer. Mas, no dia seguinte, veio ter comigo amavelmente e confessou: “Eu ontem estava a brincar, vamos fazer uma entrevista para Portugal.” Também gostei muito de entrevistar o Yves Montand. Mas houve tantos nomes como Tina Turner, Diana Ross…
É locutor, produtor e já foi repórter. Destas três atividades, qual a que mais gosta?
E se eu lhe dissesse a que gosto menos? Locutor. Eu sou locutor por força das circunstâncias.
Produtor gosto imenso, porque é criar. Tenho uma frase que entrou na minha vida: “Criar é a mais alta forma de viver.” Repare, criar um filho, criar uma iniciativa, uma coisa qualquer. A criação é das coisas mais importantes da vida de cada um. Repórter… as reportagens que vivi mais intensamente foram a das primeiras eleições legislativas, para o primeiro Presidente da República em liberdade e as primeiras autárquicas. Pela primeira vez, via-se as câmaras municipais a falarem de uma forma que antes não podiam. Também a primeira visita do Papa João Paulo II, em 1982.
Uma vez, relatou um jogo de futebol quase por acaso, porque o colega que o ia fazer faltou. Quer falar-nos dessa experiência?
Adoeceu! Então puseram-me ao microfone, fiz uma vez, e nunca mais o voltei a fazer na minha vida! Se houvesse televisão, viam que estava todo ruborizado, tinha vergonha de mim próprio. A minha sorte é que a transmissão era para o Canadá. Recebi uma mensagem de um ouvinte com muita graça, que também nunca esqueço. Perguntava: “Quem foi o artola que fez o relato no domingo passado?” (risos) Era um jogo do Belenenses contra o Sporting, eu sou do Belenenses, fui diretor do clube, e foi numa altura que coincidiu. Conhecia os jogadores melhor que ninguém. E, nesse desafio, os jogadores do Sporting não tocaram na bola, só tocaram os do Belenenses que era os que eu conhecia (risos). Toda a gente acha fácil, mas ser relatador desportivo é um dom. O início não custa, a continuação é que é mais complicada. É uma coisa muito própria.
Passado, presente e futuro da rádio
Os meios de comunicação sofreram uma grande revolução com a entrada do digital, tiveram de se adaptar. Acha que a adaptação da rádio foi a melhor?
Em algumas coisas foi, mas as pessoas que hoje dominam essa coisa maravilhosa que é a internet não sabem aproveitar o que têm nas mãos. Começam a comparar o que seriam se usassem internet nos anos 80/90. Por exemplo, um artista qualquer que “punha” em transmissão, eu próprio perguntava para mim: “Será que ele ainda é vivo?” Como é que sabia? Ou ligava para o artista, para a família, ou ligava para um especialista que era capaz de o ser tanto como eu e não se lembrar. Hoje em dia, têm ali tudo, data de nascimento, se morreu, o que é que fez…
Para além disso, as condições de transmissão. Tinha um espetáculo para jovens do programa “Páju”, no Cinema Restelo, em que o aparelho só admita a introdução de três microfones: um era para quem cantava, o segundo para o piano – se houvesse – e o terceiro era para quem fizesse mais barulho, o baterista. O resto era capturado à distância. Hoje em dia, conseguem-se tais condições técnicas que a gravação fica com uma qualidade extraordinária.
O que perdeu a rádio?
Hoje está a tentar recuperar, mas perdeu muito a comunicação, a verdadeira comunicação. Houve uma altura, de finais dos anos 90 até ao início deste século, em que teve uma queda extraordinária, em que o locutor era o locutor e os ouvintes eram os ouvintes. Ainda continua a haver muitas palavras-chave, como dizer que a rádio é música, e é! A música é muito importante, mas é necessário saber equilibrar com outros assuntos, saber comunicar com o ouvinte, porque para ouvir música não preciso de estar ligado ao recetor de rádio, tenho outras formas de lá chegar em melhores condições e ao meu gosto.
Continua a fazer planos para a rádio?
Muito poucos. Posso ter muitas ideias e depois ter muitas desilusões. Acharem que a ideia é muito boa, que tem pernas para andar, mas não ter sucesso por “não estar enquadrada na faixa etária”. Por exemplo, no programa que faço, no “Suave É a Noite”, que é um programa calmo, com muitas músicas suaves e românticas, leio citações. Agora acrescentei uma outra coisa: além do nome do autor das citações, digo o que ele foi e o que fez. Acaba por ser um pouco cultural. Nós não somos nenhum Ministério da Educação, mas temos obrigação de educar, de uma forma ou de outra. Houve um amigo meu que disse “na rádio deve-se dar cultura em forma de comprimidos”, ou seja, aos bocadinhos. Quase que o ouvinte não dá por ela, mas ouve e fixa. Temos a obrigação de ir introduzindo umas coisas até chamar a atenção, as pessoas acham giro e começam a evoluir. É curioso, nota-se isso.
Aos 17 anos, imaginava vir a ser o “senhor da rádio” que é hoje?
Está a ser muito amável, sou só uma das pessoas que faz parte da rádio e não digo por falsa modéstia. Sou uma das pessoas que respeita a rádio, porque há gente que não a respeita, e isso é que me dói. Respeito a rádio e quem me ouve, porque os ouvintes são os meus patrões. O ouvinte é quem manda, queiram ou não queiram. Se não fosse assim, não andavam todos à procura dos resultados das audiências!