Com o livro Mulheres no Romance Histórico Contemporâneo Português recentemente publicado, Aldinida Medeiros é professora de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Paraíba e investigadora convidada do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, da Universidade Nova de Lisboa. Apresentou a obra no dia 4 de dezembro de 2019, numa livraria em Lisboa, e nela aborda a forma como a mulher é representada nos romances históricos contemporâneos que ainda hoje influenciam a forma como vemos as personalidades portuguesas da Idade Média.
Na Guerra Junqueiro, às 10 da manhã, ouvem-se as palavras feministas de Aldinida entre o som da máquina de café que não pára o seu trabalho. O livro vermelho com as imagens de quatro mulheres da História de Portugal abre e fecha, não só para ajudar nas citações, mas também com vontade de ser lido, vontade de mostrar a Portugal as mulheres que nos geraram. Fala-se das ‘Rainhas’, das ‘Padeiras’, das ‘Santas’, das ‘Amantes’, das ‘Evas’: das Mulheres.
Uma pergunta que se impõe: Porquê o romance histórico?
Sou um tanto sentimental… Foi por causa do amor de Pedro e Inês que acabei por chegar ao romance histórico. Procurava um tema para fazer doutoramento e fui visitar os túmulos – até então, só conhecia Inês de Castro através de Camões, nunca tinha estudado aprofundadamente a sua história. Para além disso, há estudos sobre teatro, sobre poesia, mas o romance estava despontando, já na época em que iniciei em língua portuguesa com três romances históricos contemporâneos: da Agustina Bessa-Luís, do Antonio Candido Franco e de João Aguiar.
Comecei por estudar esses três romances e desenvolver a tese de doutoramento no Brasil. Depois, decidi aprofundar o estudo com a bolsa CAPES e fiquei aqui um ano a fazer o estágio de doutoramento. Inicialmente, conversei com o professor e romancista Antonio Candido Franco, em Évora, e ajudou muito, tornou-se inclusive uma espécie de responsável.
Tive aulas com um medievalista, na Universidade do Porto, e com a professora Maria de Fátima Marinho, que estava justamente ministrando uma disciplina sobre romance histórico. Foi quando comecei a conhecer melhor o género que vi que, muito mais do que o amor de Pedro e Inês, o romance histórico era um portal que me levava no tempo.
Existiam já dois estudos, o de Maria Fátima Marinho, uma grande estudiosa e minha orientadora na Universidade do Porto, e um capítulo do estudo de Miguel Real sobre romance contemporâneo que é dedicado ao romance histórico. Eu segui estes estudiosos e vi que carecia um estudo sobre as mulheres no romance histórico, então iniciei esse estudo em Coimbra.
O projeto foi acolhido pelo professor Carlos Reis e orientado pela professora Cristina da Costa Vieira, que é investigadora do Centro de Literatura Portuguesa, na Universidade de Coimbra. O que está aqui [no livro], diria que é uma pequena parte. Pretendo continuar com isto, pois o romance histórico permite abordar vários temas, diversas formas de preconceito, não só contra a mulher, também contra o judeu, contra o negro.
Acredito que a literatura ganha essa porta aberta de buscarmos a confluência entre as questões sociais no texto literário a partir dos estudos culturais, pois estamos a viver uma época que não pensávamos reviver, de tanta intolerância e de tanto preconceito.
Eu compreendo e respeito quem prefere a arte pela arte, mas, até relembrando estudos de António Cândido que dão pluralidade às questões sociais, a arte e a literatura também servem para ajudar nessa luta constante do dia a dia.
As mulheres da História
Neste livro, conseguimos rever nas personalidades históricas a mulher moderna. É ainda relevante existir um livro com o tema do papel da mulher na sociedade e como esta é representada?
Em primeiro lugar, estamos numa época em que o romance histórico alcançou um status que já há muito não tinha. Busca-se entender o passado histórico e acontecimentos importantes para a nação que definem a identidade coletiva de um país. Em segundo lugar, não é necessariamente por buscar o aspeto da mulher contemporânea nestas obras, mas sim por compreender – a partir dos estudos de género – que as mulheres de todas as épocas, não só as medievais, precisam ser revisitadas, precisa de lhes ser dada a voz e a vez que o patriarcado negou durante muito tempo.
O título do segundo capítulo integra no nome “Como as Evas assustavam os padres e os homens”. Porque é que as Evas metem medo aos padres?
É muito curiosa a pergunta, aliás, é ótima! No lançamento, ia comentar isso, mas com tantas coisas acabou passando. O curioso é que a supervisora do trabalho, a professora Cristina da Costa Vieira, achou que não devia colocar a palavra “padres” porque os padres já são homens. Mas não, é preciso separar entre padres e homens, porque há padres que não são homens – no sentido de não conhecerem nada da natureza oposta, que é a natureza feminina.
Quando coloquei este título é porque a mulher era tida como Eva, a pecadora: ou ela era imensamente santa, para poder parecer-se com Maria, a virgem, mãe de Jesus; ou era bruxa, a Eva, a Lilith. Por isso insisti nesse título, para falar no contexto da época histórica dessas mulheres e de como as “Evas” assustavam padres e homens, porque os padres viam uma Eva em todas as mulheres.
Gosto muito desta citação: “então logo o bispo, que se calhar nunca tinha ido com nenhuma mulher para a cama, e por isso nem sabia o que era ser homem, quanto mais ser mulher”. (risos) Com os desejos que tinham de reprimir era preciso tornar a mulher repulsa, acreditar nisso como verdade, na mulher pecadora, na Eva.
Analisa quatro personalidades femininas do romance histórico português, D. Isabel, Leonor Teles, Inês de Castro e Brites de Almeida, a Padeira de Aljubarrota. Porquê estas quatro mulheres e o que se destaca de cada uma delas?
Principalmente por serem mulheres que alcançaram, na sua época, uma determinada visibilidade, mas que nos chegaram apenas por meio dos cronistas, no caso das três rainhas, e no caso de Brites, através da lenda. A escolha dessas quatro mulheres relaciona-se com o tempo que o romance histórico as vem tornando protagonistas.
Considerando todas as histórias em volta destas mulheres, algumas até tendo fama de mito como a Padeira e D. Isabel, não acabam por ter todas elas uma certa dimensão mitológica?
Sim. Diria que todas têm também um lado mitificado, em que a tradição popular, o aspeto da lenda, o próprio conjunto de fatores do consciente coletivo nacional, em busca de arquétipos, mitificou essas mulheres. Por isso é que é ainda mais interessante como o romance histórico contemporâneo elabora estas figuras.
Destacou a questão do corpo quando falou da Padeira de Aljubarrota e do facto de ela “ter escolhido ser homem”. Ainda existe este preconceito e necessidade?
No romance da Júlia Nery, a Padeira de Aljubarrota tem uma elaboração que acho fantástica. Diferente de outro romance que é o da Maria João Lopo de Carvalho, Nery toca mesmo na questão de identidade da mulher.
Acho muito interessante quando a própria Brites diz ter sido influenciada pelas histórias de donzelas guerreiras – então aí, nessa Brites, temos o arquétipo da donzela guerreira. Depois, quando ela se vê assustada com a dominação masculina, pois vivia sozinha, não tinha família, não tinha pais, e corria o risco de ser estuprada num naufrágio, teve que matar. Ela opta pela entidade masculina por proteção.
Particularmente, acho genial a forma como Júlia Nery consegue coadunar todos esses elementos na Brites de Almeida. Ela não é só a mulher corpulenta alta e nada feminina que saiu a matar castelhanos! A romancista traz as dificuldades de uma mulher sozinha que precisava proteger-se e precisava preservar-se. Esses elementos que se juntam nesta Padeira de Aljubarrota têm que ser lidos já com um pensamento dos estudos de género. Em que lugar está a mulher? Em que lugar fica o corpo feminino?
Hoje, é necessário haver uma Padeira de Aljubarrota?
Penso que todos os mitos que nos mostram mulheres fortes e lutadoras continuam a ser importantes, pois temos ainda mulheres amordaçadas de diversas formas, reais e figurativas.
O número de feminicídios no meu país, o Brasil, ainda é assombroso, e mesmo em Portugal é bem preocupante. As mãos que oprimem, as mãos que calam estas vozes ainda continuam a existir, ainda existe necessidade de as combater. Aí sim, não só é importante a Padeira de Aljubarrota – que, há que esclarecer, não é um mito feminista, mas sim nacionalista, com a intenção de dizer que até as mulheres portuguesas expulsaram os espanhóis. Mas é um mito que é relido e revisitado pelos estudos feministas, pelas pessoas que precisam de encontrar essa figura feminina forte.
Todas as mulheres que trazem uma mitificação para este lado do conhecimento, da força, da inteligência – os seus mitos precisam de continuar a inspirar para que as mulheres despertem.
A Padeira de Aljubarrota é uma lenda. Será um mito por ser necessário na altura existir uma história como a dela ou terá realmente acontecido?
Um pouco de cada. Seomara da Veiga Ferreira, que é historiadora, diz no seu romance sobre Leonor Teles que todos os povos precisam dos seus mitos. Por isso, conjuga-se a necessidade do mito da Padeira com a possibilidade da história ter realmente acontecido, de ter existido uma mulher como Brites de Almeida que tenha inspirado o mito e não existir documentação sobre ela.
Visto que analisou todos os romances históricos portugueses, incluindo os de autoria masculina, que chegam a ser mencionados no seu livro, qual a diferença que notou entre personagens femininas escritas por autores masculinos e autoras femininas?
Quando escolhi os livros, não tive em conta a autoria feminina. É um aspeto que também trabalho, mas não especificamente nesta obra. Há diferenças como as questões mais identitárias e questões de maior sororidade na forma como a figura feminina é elaborada. Mas não se trata de falar em “escrita feminista”.
A Júlia Nery, não se autodeclara feminista, mesmo assim, a sua escrita não deixa escapar questões sensíveis do corpo da mulher na Idade Média. Ao corpo que precisava de ser negado para não ser submetido ao masculino. Isto poderia ter sido escrito por um homem? Poderia, mas não é comum.
Existe um romancista brasileiro baiano que tem um romance chamado “Evangelho Segundo Maria” em que as vozes narrativas são as duas Marias: Maria Madalena e Maria Mãe de Jesus. Percebe-se naquela escrita masculina uma sensibilidade com a figura feminina, uma sensibilidade que muitos outros autores não trazem.
Mas não foi um critério que tenha usado, embora isso também tenha a ver com o meu trabalho. O romance do Antonio Candido Franco trazia um aspeto muito importante que era a questão genealógica da Rainha Santa Isabel, e ele vai intitular isso como um dos aspetos dos pecados. E no romance do João Aguiar, por ele se colocar num local muito próximo à crónica de Fernão Lopes, em que a Inês é uma ambiciosa, a Inês se deixou levar pela ambição dos irmãos, uma Inês um pouco fingida, mas, de todo o modo, acaba por ressaltar o amor de Inês por Pedro, o amor de Pedro por Inês, e o amor de Inês com Pedro.
Sendo que os romances sobre Inês de Castro destacam o seu amor com Pedro, e apenas sabemos a história dela através do amor de Pedro, na literatura acaba por ser mais importante o amor e o ideal romântico do que a mulher em si?
Nos nossos dias já não, pois já tivemos uma grande leva de escritores e escritoras que não o descrevem assim. Tem também a ver com a questão da ciência e da psicologia, que não eram pertinentes na Idade Média: era, sim, aquele ideal amoroso, o amor idealizado, como sempre foi em diversas épocas e que ficou muito desenhado pelo romantismo.
Hoje, muitas mulheres não colocam o amor acima dos seus ideais, da sua busca por uma identidade. Na Idade Média, sim, a relação amorosa era bastante almejada – e embora mais pelas mulheres, acabava por favorecer sempre o homem.
Um personagem masculino na literatura contemporânea vive dependente de uma personagem feminina, e vice-versa?
Não percebo que nos romances exista dependência dos homens, aliás, os romances retratam os homens tal e qual como eles eram na Idade Média e, normalmente, eram o lado dominante da relação, exemptando-se os romances sobre Leonor, que foi traçada como uma mulher de caráter muito forte. Ela não sucumbe ao amor de D.Fernando, antes pelo contrário, D. Fernando é o lado apaixonado da relação.
O romance da Seomara Ferreira também mostra isso, embora se detenha pouquíssimo na personagem de D. Fernando. O centro da narrativa é mesmo a Leonor Teles, mas assim como a história nos passa, os romances de Leonor trazem a sua figura que demarca e dá o compasso ao relacionamento. Então, aqui, ela se vinga das pessoas contra o seu casamento e depois, mais adiante, fala-se do caso do romance extraconjugal com o Conde Andeiro e até uma possibilidade de ter tido um filho, quando estava presa em Tordesilhas, já viúva. A Leonor era uma mulher que fugiu a esses padrões da época de ser dependente de um homem.
Leonor Teles foi julgada pela sua infidelidade, apesar de esta ser comum entre membros da nobreza. Ainda existem dois pesos e duas medidas na sociedade atual, como existiu para Leonor?
(Suspiro) Ainda temos, longos séculos passados, ainda temos… Os homens que traem não são olhados socialmente com o mesmo peso que as mulheres são. A infidelidade masculina ainda é muito perdoada, ainda é muito amenizada, enquanto que a infidelidade feminina fica sempre com a carga pior, a pecha mais malvada.
A mulher fica sujeita a outros estereótipos, que são os estereótipos da mulher que toma o marido da outra: nunca é o marido que faz, nunca é ele que quer, nunca é o casamento que estava acabado, como se ele fosse o cordeirinho que foi laçado e arrastado. A culpa é sempre da mulher.
Estamos a combater isso, com os meios literários e académicos, com os estudos feministas, mas a verdade é que ainda há muitas mulheres que ainda são machistas. É incrível como as mulheres recebem das suas mães e dos seus pais uma educação machista, e repassam essa educação para os seus filhos e filhas, alimentado estes estereótipos.
As mulheres hoje
Durante a apresentação, disse que na História só vemos as mulheres através dos homens. A visão que hoje temos das mulheres ainda é inteiramente de uma perspetiva masculina?
A visão que temos hoje já é uma visão em que outras mulheres estão a falar após as vagas feministas. Mas quanto mais distante as mulheres estão, quanto mais no passado, mais as suas figuras nos são trazidas por homens, ou seja, na grande maioria dos escritos sobre estas mulheres, a voz é masculina. Não acontece, por exemplo, os cronistas falarem da Rainha D. Amélia, que já é uma rainha da modernidade – aí, já havia mulheres escrevendo sobre a História, mulheres escrevendo jornais -, mas aquelas que estão na Idade Média, durante muito tempo, só nos chegaram através dos homens.
Para finalizar, há hoje na nossa sociedade mulheres com a dimensão destas?
Existem, existem muitas. A lista é enorme. Em diversos âmbitos e escalas sociais, inclusive no viés religioso. São demasiadas, seria uma lista imensa para elencar.
Temos vários nomes na literatura, como Mary Wollstonecraft e Virginia Woolf. São tantos nomes que quero dizer, corro o risco de citar alguns e não citar muitos. Destaco, por exemplo, um trabalho pioneiro de grande importância na medicina, da psicanalista Nise da Silveira, que mudou a forma de tratar doentes mentais. Para começar foi uma das poucas mulheres na sua turma, e precisou de enfrentar muito machismo e conservadorismo porque estava a revolucionar uma área da medicina.
Até a Dilma Rousseff, que é para mim um grande exemplo de mulher: não poderia deixar de destacar uma mulher que foi torturada na ditadura militar brasileira, sobreviveu, não entregou os companheiros, tornou-se Presidente do Brasil, sofreu um golpe de estado e ainda está forte e lutando.
Temos muitas mulheres magnânimas, muitas médicas, atrizes e lutadoras por causas de minorias.