Viveu 15 anos sob um regime político autoritário e é hoje um verdadeiro embaixador da liberdade e um rosto inconfundível do entretimento. Fernando Pereira canta e imita vozes de vários artistas, e com o seu reportório fez digressões de sucesso em cerca de 20 países de diferentes continentes.
Contou com bastante detalhe, em 2014, e voltou a falar no assunto, numa entrevista que deu a Fátima Lopes, um momento marcante da sua vida: levou um tiro no dia 25 de Abril. Nesse dia, gritava-se “viva a liberdade!” Passados 46 anos, como é que o Fernando olha para a atualidade do ponto de vista da liberdade, falo de liberdade de ação e de expressão. Sente essa liberdade no dia a dia?
Para quem, como eu, viveu 15 anos a falar com os amigos e a olhar sempre por cima do ombro para ver se ninguém estava a ouvir, quem durante toda a adolescência, para ter acesso às notícias do que realmente se passava em Portugal, tinha de ouvir a BBC, por exemplo, em onda curta, porque os jornais e televisões eram todos controlados pela censura… Enfim, a liberdade é, talvez, o bem mais importante da humanidade, é aquilo que nos faz sentir vivos e plenos no nosso dia a dia.
É impensável, hoje em dia, as pessoas viverem sem liberdade para dizerem o que pensam, sem liberdade para criarem aquilo que acharem que devem criar, sem liberdade para se poderem reunir, para conversar com os amigos, para se organizarem nas mais diversas instituições, partidos, associações, o que quiserem.
A liberdade é ameaçada todos os dias, portanto, a tua questão remete-nos para aqui: hoje, como é que nós estamos em termos de liberdade? Ela existe em termos teóricos e, também, em muitas situações práticas, mas na realidade somos condicionados na nossa opinião, nas nossas escolhas, por toda uma moral vigente, por toda uma cultura vigente e, também, porque somos muito afetados por fake news, pelas mais diversas teses populistas… Há pessoas, tanto do lado esquerdo, como do lado direito, que nos inundam de slogans e de chavões, que nos imprimem sentimentos falsos em relação às coisas. Apesar de existir liberdade, temos de estar muito atentos àquilo que vemos, ao que ouvimos e que lemos, porque 80%, e não estou a exagerar, ou é mentira ou está contado de uma forma que quer condicionar a tua mente e a tua opinião.
Excesso de liberdade, excesso de fake news
Já sentiu a sua liberdade beliscada por excesso de liberdade de expressão dos outros? Existem fake news sobre si?
Por acaso, já fui afetado, mas nada que seja digno de nota. No que diz respeito a fake news sobre mim, não tenho dado motivos para que as pessoas me possam apontar coisas negativas. Nunca bati num jornalista, nem num fotógrafo (risos), como alguns colegas meus mais zangados já fizeram. Nunca me envolvi publicamente em situações desagradáveis, portanto, sou uma pessoa que me tenho divertido na vida, tenho feito tudo, mas sempre de uma forma equilibrada e, portanto, em público tenho tido cuidado, porque a liberdade é, também, responsabilidade.
Tenho a liberdade de dizer aquilo que penso e aquilo que quero, mas tenho a responsabilidade das palavras que digo e tenho de assumir as consequências dessa eventual irresponsabilidade da minha parte.
Hoje, na Internet, tens imensas redes sociais onde as pessoas se digladiam e quase se matam umas às outras por causa de uma opinião, o que é uma coisa perfeitamente disparatada. Devemos discutir as coisas em liberdade e no respeito pelo outro, acho que não há problema nenhum nisso. Agora, dar uma opinião sobre uma coisa e depois ter logo 50 tipos em cima a chamar-me todos os nomes porque penso daquela forma é completamente disparatado. Enfim, é o que é…
Aparelho vocal peculiar
Li que no Simpósio Internacional da Voz, na Universidade de Medicina do Porto, cientistas de vários países examinaram as suas cordas vocais e descobriram um instrumento de características invulgares. O que descobriram afinal?
Acho que eles estavam à espera de ver uma coisa qualquer tipo alienista, mas não aconteceu. Descobriram que tenho uma musculatura do aparelho vocal com grande maleabilidade, umas cordas vocais um bocadinho mais longas do que seria o normal para uma pessoa do sexo masculino, o que me permite, também, fazer mais oitavas. É como um piano. Se tiveres 70 teclas consegues, se calhar, quatro ou cinco oitavas, mas se tiveres 80, já fazes mais duas oitavas. Ou seja, podes ir buscar mais escala atrás e à frente.
A minha voz é como um pedaço de plasticina que funciona muito em ligação com a minha memória auditiva, portanto, podia ser um cantor perfeitamente normal como os outros. Se quisesse, podia ter tido essa opção: seguir o caminho de um cantor mais tradicional. Mas escolhi fazer uma coisa que mais ninguém faz, que é colocar a voz ao serviço do espetáculo, ou seja, não enquanto cantor e performer das minhas canções, que também as tenho, mas aquilo que me interessa, que diverte mais as pessoas e que torna o meu espetáculo mais original: o facto de, sozinho, fazer centenas ou milhares de vozes diferentes.
Isto funciona porque tenho uma memória auditiva muito grande. Nunca faria som nenhum em especial, se não tivesse gravado na minha memória, perfeitamente, a voz do Bruno Mars, da Lady Gaga ou do Frank Sinatra. Tenho esses sons perfeitamente claros na minha cabeça, de tal forma que, quando quero, é um bocado como a plasticina: faz-se um ‘boneco’, vai-se buscar outro. E faço isto milhares de vezes se for preciso num espetáculo e isso é que torna o espetáculo tão diferente, tão original e tão fora do comum.
Já se apresentou ao vivo em mais de 3.600 atuações, em salas de espetáculo, programas de TV, casinos, festivais, para governos, e até mesmo para o Presidente da República. Qual a atuação que requer maior preparação, no sentido de ser mais complexa?
As imitações de vozes exigem sempre muita preparação, se quisermos fazer isso profissionalmente. Há muitos comediantes e humoristas que também fazem algumas imitações, mas que não passam de caricaturas. São ‘bonecos’ que eles criam a partir de uma voz conhecida ou de uma figura conhecida. E isso tem um determinado nível de exigência e de preparação.
Agora, quando um cantor, como eu, leva isso ao extremo de fazer as vozes deles exatamente no timbre, no registo e até na própria tonalidade em que eles cantam, porque nunca mudo o tom das músicas… Se o Pavarotti dava um Si bemol, eu dou o Si bemol do Pavarotti. Se a Lady Gaga é Mi menor é Mi menor e, portanto, não vou alterar o som das músicas para me dar mais jeito, porque perdia a qualidade do ‘boneco’ que quero fazer. Procuro sempre um grau de exigência muito elevado e isso dá muito trabalho.
E qual é a imitação, o ‘boneco’, mais difícil?
Os ‘bonecos’ mais difíceis são as mulheres, as vozes femininas, porque imitar uma pessoa como a Maria Callas ou como a Céline Dion, a Mariah Carey… São registos muito agudos, colocados muito em cima, são vozes muito específicas e, por muito esforço que faça, nunca fica tão bem como, por exemplo, o António Variações, o Joe Cocker ou mesmo o Bruno Mars. É mais fácil [fazer] os registos masculinos do que os femininos. Mas há vozes de mulher mais fáceis do que outras, por exemplo, a Lady Gaga, Tina Turner, sei lá, Britney Spears, são mais fáceis de colocar e de conseguir uma aproximação quase a 100%, do que um registo muito agudo e muito cristalino.
No contexto do espetáculo e como, se calhar, dificilmente as pessoas veem um show meu em que não contam, sei lá, 200 vozes diferentes, não é tirar coelhos da cartola, não é tirar cartas da manga do casaco, mas é tirar vozes da garganta, de uma garganta só, e isso é que torna o espetáculo tão fora do vulgar.
Falemos de prémios e de reconhecimento público. Foi distinguido, em 2012, com o ‘Recognition of Vocal Performance’, pelo World Voice Consortium. Em 2017, recebeu o prémio ‘Pro Autor’, da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Que significado é que atribui a estes prémios?
Sou um grande divulgador dos autores, especialmente os portugueses, porque faço muitos espetáculos no estrangeiro, e não só para as comunidades portuguesas, faço também muitos para outros grupos. Muito do trabalho que faço são espetáculos privados para organizações das mais diversas. Muitas vezes, quase por força das circunstâncias, tenho de apresentar o meu espetáculo quase todo em inglês ou em espanhol.
A SPA, em boa hora, reconheceu que, ao fim de 30 e tal anos de carreira, com milhares de espetáculos já feitos por esse Mundo fora e em Portugal, devia estar nesse grupo, que já é um grupo considerável de artistas que tem sido bastante pró-autores e que, independentemente das obras que são nossas, tem feito um esforço muito grande para a divulgação daquilo que são os grandes autores portugueses, na poesia, na música, no texto e nas mais diversas circunstâncias.
A tua cara não me é estranha
Este ano, integrou o júri do programa de televisão “A Tua Cara Não Me É Estranha”, como presidente. Como é avaliar alguém que, na verdade, está a tentar fazer da forma mais profissional possível o que o Fernando faz há 30 anos?
Essa parte é a parte engraçada, divertida até, mas também com uma grande responsabilidade, porque todos olhavam para mim do género: “deixa lá ver do que é que ele vai falar agora”. Sempre que alguém fazia uma imitação, até tinha o cuidado de explicar que aquilo que eles estavam a fazer ali, e que nós fazemos, não são imitações, são personificações de outros artistas e nisto há uma pequena diferença: uma imitação pode ser uma caricatura e pode ser levada para o lado da brincadeira, outra coisa é como já muitos atores fizeram noutras circunstâncias. A Meryl Streep quando teve de fazer de Margaret Thatcher, o Rami Malek que teve de fazer Freddie Mercury no filme Boehmian Rhapsody, o Gary Oldman que teve de fazer de Churchill no Darkest Hour… Portanto, temos assistido muitas vezes a trabalhos de grandes atores que têm de se vestir exatamente de outro.
O que os meus colegas tentavam fazer era personificar determinados cantores, não só na colocação de voz, mas no timbre, no maneirismo, na linguagem corporal, há todo um acting que eles são obrigados a estudar e a trabalhar para aquela semana fazerem aquela figura. Isto não é uma imitação, uma imitação é gente a brincar no karaoke. Por um lado, eu tinha de ser simpático, ser pedagógico, correto e justo; por outro, percebia que tudo aquilo podia estar melhor se houvesse mais tempo, se a pessoa tivesse mais aptidão, se tivesse uma ajuda daqui ou de acolá, embora fossem todos ajudados pela produção. A TVI foi impecável, a Endemol…. Tinha esta consciência. Às vezes, toda a gente esperava que dissesse “cobras e lagartos” e não podia, porque, em consciência, sabia que aquela pessoa tinha feito o seu melhor. Os meus outros colegas, embora fossem justos nas suas apreciações, e tinham a sua opinião, como é óbvio, mas numa perspetiva um bocadinho diferente…
Para terminar, uma curiosidade: se, a partir de hoje, só pudesse representar um artista, qual seria?
Ah… isso seria, obviamente, o Fernando Pereira, seria mesmo o Fernando Pereira. Já fiz tantos ‘bonecos’, tantas figuras, que continuarei a fazer enquanto elas forem existindo, porque o meu reportório não se esgota. A minha voz é de plasticina, portanto, faço o ‘boneco’ que quiser com ela. Hoje faço um elefante, amanhã posso fazer uma cobra, um lagarto, um tigre, sei lá, um computador… Os ‘bonecos’ sou eu que os crio a partir de – assim existam – motivos para fazer o ‘boneco’. Eles vivem e convivem perfeitamente de forma natural. Hoje em dia, nos meus espetáculos, tenho espaço para fazer todo o tipo de imitações e de caricaturas dos artistas, dos mais antigos aos mais recentes, e isto é transversal a todas as gerações. Portanto, se tivesse de escolher só um hoje, depois de tudo isto que tenho feito, escolhia o Fernando Pereira.