Com uma voz forte e única, Adelino Gomes, 74 anos, relatou os últimos momentos da ditadura e participou em alguns dos momentos mais relevantes do jornalismo nacional. Antigo professor da Universidade Autónoma, recorda agora a trajetória que construiu junto das câmaras ou microfones e, sobretudo, fala dos constrangimentos que o jornalismo enfrenta.
Com a câmara a postos e microfones ligados, Adelino Gomes inicia uma conversa em que os ponteiros do relógio do estúdio trocam o seu sentido e retrocedem para voltar ao passado. As paredes tornam-se testemunhas de relatos, experiências e recordações que o jornalista colecionou em mais de 42 anos de carreira. É com um jornal cheio de apontamentos para a mulher que Adelino Gomes confessa: “Namoramos em volta do jornalismo.” Inspirado num artigo que leu, “O conhecimento do desconhecimento” serve como ponto de referência às respostas sobre o papel do jornalismo na atualidade.
Estudou Direito e Filosofia, na Universidade de Lisboa, cursos que acabou por não concluir para se dedicar ao jornalismo, carreira que exerceu por mais de 42 anos. Por que é que decide apostar numa área em que não havia espaço para a liberdade e justiça?
Porque a liberdade é essencial. Mas eu vivia em Portugal. A ditadura tinha, nessa altura, quase 40 anos e nenhum de nós tinha deixado de viver sob ditadura. Concluí, enquanto estudante que tinha vindo da província, sem grande consciência política, que o jornalismo era uma forma muito interessante e bastante eficaz de combater essa própria ditadura. Não digo que escolhi o jornalismo para combater a ditadura. É bonito, mas não foi isso. Não foi qualquer coisa que tenha feito num A4 a dizer: “o que é que vou fazer nos próximos 50 anos: primeiro combater a ditadura…”. Não foi nada disso, mas na verdade aconteceu.
Lembro-me que, quando andava no 5ºano, passou uma Volta a Portugal em Bicicleta pelo sítio onde vivia e fui ver os ciclistas à meta. Fiquei fascinado porque vi um repórter com um microfone numa mão e o braço em cima do ombro, penso eu do técnico, a descrever com enorme facilidade e em linguagem acessível aquilo que se estava a passar. Pensei assim: “Gostava de ser relator destas coisas.”
A rádio levou-me ao jornalismo. Um dia, ouvi um anúncio na rádio. Estavam abertas inscrições para um concurso para a Rádio Universidade (RU). Era uma estação que funcionava nas instalações da Mocidade Portuguesa, mas isso a mim não me interessou. Na verdade, foi lá que comecei a perceber como era interessante falar e dar notícias ao microfone. Foi assim que comecei a fazer crónicas e acabei por fazer reportagens. Apaixonei-me por essa perspetiva. Descobri, também, uma “militância” ou uma espécie de comportamento antirregime no próprio exercício do jornalismo.
Confrontos com a Censura
No exercício da sua profissão chegou a ser alvo de censura?
Costumo contar dois encontros que tive com a Censura. Um ainda estava nessa Rádio Universidade. Fui à Aula Magna da Universidade de Lisboa para realizar uma reportagem. Era a abertura solene do ano letivo e, quando o reitor da universidade começou a falar, foi interrompido pelos estudantes que começaram a gritar “abaixo o regime”. Lá encontrei o fulano que me tinha dado aulas de dicção. O Rui Pedro, um tipo face ao qual, não só tinha uma relação de respeito, como me tornei muito amigo. Enquanto descíamos a Alameda, questionamos sobre o que íamos fazer com a informação. O Rui, que era um homem pragmático, disse-me: “Olha, seja lá o que eu fizer, eles não põem nada no ar na Emissora Nacional. Tens de decidir dentro de ti.” E eu decidi. Foi a primeira decisão que tomei. Pensei assim: “muitos olhares podem ser lançados sobre isto, mas há uma coisa em que todos estarão de acordo: há um problema na universidade e é preciso resolvê-lo”. Era um problema tão grande que leva estudantes a contestarem o reitor da universidade onde estudam, no dia da abertura solene do próprio ano letivo.
Quando estava a escrever a reportagem, ao contrário daquilo que era habitual, aparece o diretor. Era comissário-adjunto da Mocidade Portuguesa. Perguntou-me o que ia fazer com a informação que tinha recolhido. Disse-lhe, mais ou menos, o que estava a pensar em escrever e ele disse-me: “Não vai dizer nada disso. Você vai dar uma porrada nos estudantes.” E eu: “Ó senhor diretor, não acho que seja isso que eu deva fazer.” E ele: “Volto daqui a bocado.” Foi embora confiante, na sua capacidade persuasora, de me convencer. Uma hora depois regressou: “Você escreveu aquilo? Então, o que é que você disse?” E respondi: “Aquilo que lhe disse.” O diretor mandou entrar dois fulanos que ocuparam o meu lugar. A partir daí, a minha relação com a RU acabou.
Mas não a sua relação com a rádio…
Uns meses depois, profissionalizei-me e fui para os noticiários, da Rádio Clube Português. Num dos primeiros dias, escrevi uma notícia. As notícias do estrangeiro eram retiradas dos despachos das agências noticiosas e tínhamos de esperar que o teletexto, ligado à Censura, ditasse o que estava cortado. O facto da notícia era o seguinte: na noite anterior, um B52, que era uma fortaleza voadora do exército americano, tinha sobrevoado o espaço aéreo do Vietname do Norte e um deles tinha sido abatido. Isto era a notícia, depois na continuação dizia que aquele era o 11º, penso eu, B52 fortaleza-voadora que tinha sido abatido nos céus do Vietname. Os restantes parágrafos desenvolviam que estávamos em plena Guerra do Vietname. Foi o que escrevi na notícia e, quando vi os resultados da Censura, só deixaram a primeira parte. Já não autorizava que se dissesse que aquele era o 11º B52 a ser abatido. Fiquei indignado.
Numa parte da notícia que estava cortada dizia-se que, nessa mesma noite e ainda antes da fortaleza voadora ter sido abatida, os B52 tinham bombardeado aldeias e diques. Então pensei: “Vim para esta profissão e vou enganar os ouvintes, ou melhor, vou contar meias verdades.” A partir daí, o meu sentimento era este: só vale a pena continuar nesta profissão se combater isto. Comecei a achar que o meu papel na sociedade seria começar a tentar combater a Censura e dizer as palavras que não eram as que o regime opressor gostaria que dissesse.
Na década de 70, cobriu um dos acontecimentos mais emblemáticos da história do nosso país, o 25 de Abril, que representou o fim da ditadura. Enquanto repórter, como descreve o feito único de relatar um acontecimento em que a esperança dos ouvintes estava dependente do seu discurso?
A esperança dos ouvintes não estava dependente do meu discurso. Mas, na verdade, as circunstâncias, o acaso é qualquer coisa de extraordinário, que permite a um repórter estar num momento em que algo de marcante está a acontecer. Não foi porque soubesse.
Tenho dito – aliás, já o escrevi – que se fosse enterrado e houvesse um epitáfio, o que gostaria que fosse lá posto era que estava ali enterrado um tipo que teve a felicidade de relatar o fim da ditadura e o princípio da democracia em Portugal, ao microfone de uma estação onde estava proibido de trabalhar nesse dia.
Infelizmente, nesses tempos, não era possível fazer um direto sobre o 25 de Abril sem ter linhas. As linhas pediam-se com antecedência à Marconi. Fazia-se para os discursos, para os acontecimentos oficiais, para os jogos de futebol, eram as linhas. Ninguém sabia, tirando o Otelo e os comandantes das Forças Armadas que intervieram, o que ia acontecer. Não sabíamos em que sítio era. Portanto, ninguém fez o direto daquilo que se passou no dia 25 de Abril. A esperança que eu tinha, tal como o Paulo Coelho e o Pedro Laranjeira – cujos nomes sempre digo, agradecendo porque foram eles que, num momento tão importante, não se importaram de partilhar o microfone com um fulano que não conheciam de lado nenhum – era a de que a namorada de um deles levava as bobines à Rádio Renascença (RR), que ficava a 100 metros, e que pusessem aquilo no ar, fazerem aquilo que se chamava tecnicamente um diferido, em que havia um delay de meia hora.
Se eles pusessem aquilo tudo no ar, os ouvintes não teriam ouvido, às onze da manhã, que a coluna seguia para o Carmo, mas ouviam ao meio dia, que já era bom. O que aconteceu foi que a RR não pôs no ar e foi só passado 24 horas que transmitiram a informação. As pessoas já sabiam o que se tinha passado quando a nossa reportagem foi para o ar. No fundo, o nosso orgulho foi que dissemos aquilo no momento em estava a acontecer, mas, infelizmente, os ouvintes não souberam a essa hora.
A voz da Revolução dos Cravos
No momento em que se apercebe que o Movimento das Forças Armadas (MFA) sai vitorioso, em que segundo as suas palavras: “centenas de pessoas diziam ‘abaixo o fascismo’ e mostram o sinal da vitória”, quais foram os pensamentos que lhe surgiram e a sensação de poder noticiar em plena liberdade?
Não quero estar agora a reconstruir a minha memória. Evidentemente que tenho a memória disso tudo, mas não sei se ela é fiel àquilo que se passou. A sensação que tenho… é que desde o momento em que peguei no microfone e comecei a falar, a minha primeira preocupação era ser rigoroso em relação ao que se estava a passar. O povo entrou na revolução e, nesse sentido, a minha ideia era descrever aquilo. Estava a viver um acontecimento e isso é o que faz um repórter. Não está a pensar “estou de acordo com isto, não estou de acordo com isto”, pode estar indignado… ou feliz, mas não sou eu que grito “abaixo o fascismo”. A segunda sensação tem a ver com a vontade de dizer “abaixo o fascismo” e ficaria muito triste se eles dissessem “viva o Salazar” mas, se estivesse com o microfone, diria “eles gritam ‘viva o Salazar’”. Deste modo, o repórter está a ser o fulano que descreve o que está a acontecer, por mais vontade que tenha que as coisas aconteçam de outra forma.
Às vezes, penso que, se em vez de ter sido o golpe dos militares do 25 de Abril e tivesse sido um contragolpe, que aliás esteve pensado pelo general Kaúlza da Arriaga, teria dito tudo como disse até ao fim. Provavelmente, aconteceria no fim o contrário daquilo que me aconteceu quando acabei esta reportagem, em que fomos à Rádio Renascença entregar as bobines e fomos embora. Não sei o que os meus dois companheiros foram fazer, eu sei e foi, finalmente, ir para o Rossio. Desci a Rua Garrett e a Rua do Carmo para ver militares passar e fazer-lhes eu o sinal da vitória, gritar “viva o 25 de Abril”. Passei a ser um manifestante, mas já não tinha o microfone. Foram dois papéis separados, em sequência.
Entre a sorte e o azar
Há oito anos foi distinguido com o prémio Gazeta de Mérito 2010, do Clube de Jornalistas, um prémio que destacou a sua carreira. Considera que o seu êxito se deve ao facto de ter nascido, como jornalista, numa época em que o jornalismo era encarado mais do que uma profissão, como uma “missão”?
Não foi por causa disso. O algum êxito que tive na profissão aconteceu porque os tempos o propiciaram. Entrei na profissão junto de uma geração de pessoas com quem aprendi muito. Tive a felicidade de entrar na rádio e de desenvolver o trabalho nos jornais com gente que estava apaixonada pela profissão. Foi com esses que aprendi. Na vida de todos nós, tirando aqueles que são geniais e que fazem tudo acontecer à volta deles, temos parte da responsabilidade das coisas boas e das más. Mas, sobretudo, temos muita sorte ou não temos sorte. Há pessoas que têm azar. Eu nisso não me queixo. Costumo dizer que há um Deus do repórter. Esse Deus, nalgumas fases da vida, me concedeu essa graça. As graças dos deuses é que me permitiram estar no dia 25 de Abril na Baixa, e com um microfone à minha frente. Quantas pessoas gostariam de ter estado nesse dia. Não posso dizer que foi por, na noite anterior, ter batalhado para isso, nem sabia. Isto tudo é sorte. Muitas vezes, tive sorte.
O paradigma do jornalismo
Em Portugal, os primeiros jornais pertenciam às famílias de elite, mas hoje em dia estão maioritariamente na posse dos grandes grupos económicos. Quais são as principais limitações que os jornalistas enfrentam no exercício da profissão?
São aquelas que sempre existiram, mas com as adaptações do tempo. Mesmo a velocidade… hoje dizemos “isto agora é tudo em tempo real”. A luta da minha geração foi sempre ir à procura da novidade absoluta que mais ninguém conhece. É aquilo que dá o primeiro. A velocidade e o chegar primeiro foram sempre a ambição desde a guerra dos atenienses contra os persas quando foram invadidos. A primeira coisa que o comandante fez, quando derrotaram os persas, foi mandar um soldado ao povo de Atenas dizer que tinham ganho a guerra. É por isso que a velocidade é uma coisa extraordinária mas, como todas as outras coisas, tem o lado bom e mau. A função do jornalista, para além da velocidade e de ser o primeiro, tem que dar uma informação verossímil. Tem que procurar a verdade.
Todas essas questões são limitações e, ao mesmo tempo, caraterísticas essenciais do exercício jornalístico. Por exemplo, a falta de dinheiro e a limitação de meios diminuem, por mais que tentemos, a qualidade. Não ter dinheiro limita a informação. Usamos a informação que uma fonte que está ali ao lado nos dá e a fonte pode ser inquinada.
As exigências e os desafios profundos são idênticos. No fundo, o jornalismo é dar aos concidadãos dados de realidades que estão a acontecer, no mais breve espaço de tempo, o mais próximo da verdade e de forma acessível e interessante. Isso não mudou hoje. O objetivo continua a ser o mesmo. Quando o jornalismo falhou no passado, quando foi mentiroso, quando foi atrasado e se enganou na informação, essas vezes falhou, mas falhou tal como falha ainda hoje. O jornalismo ainda mente, se engana e, às vezes, dá mais ou menos importância a coisas cuja real importância não é dada como devia de ser aos concidadãos.
Acredita que, apesar dos constrangimentos com que os jornalistas se deparam, no dia a dia, é possível haver jornalismo de qualidade?
Acredito. Se não, não vale a pena haver jornalismo. O jornalismo não é só dar notícias, também tem de dar atenção à definição daquilo que é ou não importante. É algo absolutamente essencial. O sensacionalismo, por exemplo, é um pecado contra a regra da importância e da qualidade. Este acaba por ser um abaixamento da qualidade. É o engano, uma vez que a hierarquia da importância deve ser uma preocupação essencial numa redação ou no próprio jornalista.
É uma realidade que os meios de comunicação vivem das audiências. Até que ponto é que isso influencia a qualidade e o rigor do jornalismo?
Claro que influencia. Influenciou sempre. Houve jornais que morreram, que venderam muito e alguns abastardaram-se. Houve sempre uma grande dificuldade.
Se hoje fosse diretor de um jornal, tentaria, por todos os meios, fazer crowdfunding. Procuraria arranjar dinheiro, para neste momento ter uma equipa de repórteres a acompanhar aquela migração, bíblica, de 30 mil pessoas que da América Central caminham até a terra da promissão, que é para eles os EUA. Como é que os nossos jornais não fazem isso?
Hoje li no “Público”, mas era tirado do “Washington Post”, uma reportagem onde se vê que, pelo menos, uma das colunas foi feita por alguém que esteve lá. É pouco, deviam lá estar mais jornalistas. E porquê? Não há dinheiro. É fácil a tentação de cair nas concessões ao sensacionalismo para ver se vende mais ou se tem mais audiência. Não se pode fazer essas concessões – para mim, não são concessões – se forem fazer um jornalismo atraente, mas ao mesmo tempo obedecendo aos princípios éticos da qualidade.
Considera que o jornalismo português é exercido em função do interesse público ou do interesse do público?
Hoje de manhã, tomei o pequeno-almoço num café e levei duas horas a ler dois jornais. Um foi o “Público”, que foi o meu jornal durante mais de 20 anos, e o outro foi o “Jornal de Letras”. Tenho o hábito de escrever sempre notas à margem dos jornais. É um diálogo, mediado pelo jornal, com a minha mulher. Namoramos em volta do jornalismo. Neste jornal, há um artigo muito interessante, “O conhecimento do desconhecimento”, em que ao lado escrevi “excelente! Guardar”. Isto vem a propósito da pergunta, uma vez que há muitos jornais que, julgo, terem uma motivação que é o interesse dos seus concidadãos e da sociedade. Este jornal, quinzenário, vende pouco e, por isso, estamos sempre com medo que acabe. Acho que, para quem o dirige e para quem o escreve, conseguir fazer com que um leitor escreva “guardar todo”, num momento em que toda a gente diz que o jornalismo escrito está a desaparecer, e que não pensava dizer isto publicamente, é sinal de confiança. Também escrevi no “Público” em coisas que me agradaram. Portanto, não estou de acordo com essas pessoas que dizem “o jornalismo já não era o que era”. Fico irritado. No meu tempo, havia idiotas e havia outros que tentavam não o ser… como hoje.
Só tive Carteira Profissional, apesar de estar no jornalismo profissional desde 1967, um ano depois do 25 de Abril, em 1975. Antigamente a Carteira Profissional só era dada a tipos que trabalhavam em jornais diários, que eram os piores, do meu ponto de vista. Este exercício profissional foi algo que, na história do jornalismo, teve pessoas que procuraram estar à altura das exigências e dos deveres e pessoas que não o fizeram. Hoje, também acontece isso. Há mais jornalistas, o que significa que há uma quantidade maior de melhores e há uma quantidade maior de piores.
O jornalismo português contribui para a literacia mediática dos cidadãos portugueses?
A literacia mediática é a capacidade de desconstruir aquilo que os meios de comunicação dizem. Se estes forem exercidos com competência, é evidente que é mais fácil descodificar. Um jornal pode contribuir para a iliteracia e literacia, seduzindo ou enganando. É por isso que considero que a escola, os pais e a sociedade têm um papel muito importante. Não aceito que se atribua os males da iliteracia só ao campo jornalístico, uma vez que esta não é só mediática. Um claro exemplo é a abstenção. As pessoas não irem votar é iliteracia política. É neste sentido que acredito que há responsabilidades que começam quando nascemos.
O texto de Afonso Cruz devia ser lido. “O conhecimento do desconhecimento”, do “Jornal de Letras”, mostra como, na verdade, não pode dar a conhecer quem desconhece. A única maneira que há de se conhecer é procurar o conhecimento e estudar. A maior responsabilidade do jornalista em relação ao outro, cidadão, é que tem de conhecer tudo. Não pode parar no dia em que se licenciar ou que entregar a tese de doutoramento. O jornalismo tem exigências de doutoramento todos os dias. Tem um júri que são os seus leitores, ouvintes e espectadores.
Um pacto implícito
Sabe-se que a comunicação política se tem vindo a aprimorar. Quais são as principais armadilhas com que os jornalistas enfrentam, nomeadamente, como podem contrariar a tentativa de manipulação?
Não acontece estritamente na política, mas em qualquer fonte, mesmo as bem-intencionadas. A quantidade de pessoas que nos contam, sobretudo, quando apelamos à memória, coisas que estão convencidas que são verdade e, se não escavarmos, não temos a ideia. Tudo isso se aplica a todas as secções de um jornal: sociedade, desporto, ciência e não só na política. As pessoas costumam dizer “políticos são mentirosos profissionais”. Não subscrevo esta ideia, porque, tal como no jornalismo, há bons e maus. No entanto, é preciso ter mais atenção e ser mais exigente, já que a política é um trabalho, eminentemente, ao serviço da sociedade. Ao não estarmos vigilantes, ao sermos, por inconsciência ou incompetência, veículos de desinformação e manipulação, estamos a prejudicar a sociedade. O jornalismo só existe porque assenta num pacto, embora não escrito, mas implícito, com a sociedade. É desta forma que o jornalismo existe em função do interesse público. Não é mais nenhum interesse.
No segundo Congresso de Jornalistas, em 1986, defendi, na tribuna, que a incompetência é um pecado ético. As pessoas acham que só está associada com a ética e a moral. Digo o contrário: escrever uma notícia mal feita porque se é incompetente é absolutamente antiético.
Numa época em que os novos media vieram revolucionar a forma como o jornalismo era encarado, em que cabia a uma pequena minoria decidir a agenda mediática, em que medida é que estas plataformas contribuem para o exercício mais livre da opinião pública?
Como todas as coisas, as descobertas, os desenvolvimentos e os progressos de instrumentos que utilizamos têm efeitos colaterais. Na medicina, acontece a mesma coisa. Um comprimido para aliviar as dores de cabeça pode ter repercussões na próstata. É preciso saber e ter consciência de que os empoderamentos que as novas tecnologias nos oferecem contêm em si alguns efeitos secundários que podem ser até mortais, como acontece com alguns medicamentos, se forem tomados mais do que a dose que é aconselhada ou mesmo se não tiverem em conta outras incompatibilidades.
Tudo nos pode oferecer o paraíso, mas temos de ter em conta que, às vezes, há serpentes, não digo em forma de mulher [risos], que estão correntes na água que parece limpa, mas que tem lá um veneno. Esse empoderamento tem, também, algumas limitações que precisam de ser tidos em conta por quem faz comunicação e quem, hoje, é cidadão. Qualquer informação que recebe e não é testada pode ir para milhões de pessoas, contaminando as águas que as pessoas estão a beber.
Falemos de jornalismo como quarto-poder e dos seus princípios nucleares. A procura da verdade ainda é o fim máximo do jornalismo da atualidade?
Prefiro dizer a “busca da verdade”. O jornalismo é como as utopias… até ontem andei a escrever um texto sobre o Zeca Afonso e numa canção que ele cantou, em 1985, a “Utopia”, em que perguntava se existia, lá para o Oriente, esse rumo… a utopia é alguma coisa em que pensamos “será que existe? vou procurá-la”. O jornalismo é um pouco isso e, nesse sentido, é uma exigência fundamental. É um trabalho de sempre, com essa consciência de que nós nunca encontraremos, nos Evangelhos, que Jesus Cristo diz que é ele a verdade e a vida. Apresenta-se como o filho de Deus. Portanto, a verdade está em Deus, que é uma entidade que não sabemos se existe, mas que está à nossa frente, no nosso Oriente, nesse rumo que nós procuramos.
Podemos falar de objetividade no jornalismo?
A objetividade é um outro conceito que é muito discutido, embora não caia, nem aceite, o contrário disso que, por exemplo, esteve muito presente no exercício jornalístico da geração anterior à minha que é: o exercício da subjetividade tal qual. O que significa que a objetividade é impossível, como a “verdade”. Há, pelo menos, a minha verdade, logo, exerço o jornalismo com a minha verdade. Essa verdade não é aquilo que acho, aquilo que acho é o “achismo”. É o reino daquilo em que me convenço de que é verdade. Há uma definição que gosto muito de utilizar de Carl Bernstein, um dos investigadores do Watergate. Ele disse que o jornalismo é alguma coisa que vale enquanto não soubermos qualquer outra coisa que ponha isso em causa. O investigador defende que “a imprensa existe para o bem público, não simplesmente para fazer dinheiro, entreter ou provocar controvérsia. A nossa função primária é enquanto repórteres, editores ou provedores de notícias de televisão ou vídeo, fornecermos aos nossos espectadores e leitores a melhor versão da verdade obtida”. [foi no final da entrevista que o jornalista citou a frase de Carl Bernstein] O jornalismo sério é aquele que contraria o que tomávamos como a “verdade”. A “verdade” é temporária à medida da nossa condição de humanos.
O valor da memória
Uma vez que foi diretor-adjunto do “Público”, como é que encara a já hoje assumida perda de memória por parte das redações?
Encaro como encaro a perda de memória por parte das pessoas. Há bocado esqueci-me daquela definição que escrevi tantas vezes de Carl Bernstein. A perda de memória é uma coisa que nos acontece. O engenheiro António Guterres, numa entrevista de rua, não conseguiu resolver uma divisão. Na altura, ele teria 40 ou 50 anos. A memória é qualquer coisa que nos falha muitas vezes.
A perda de memória nas redações aconteceu quando um jornalista mais velho era despedido, se despedia ou morria. Hoje acresce outra coisa, esta perda acontece quando os jornais, as rádios e as televisões têm cada vez menos dinheiro por causa desta mudança de paradigma digital. Eles vão com alguma limitação para o negócio, aliviando a carga dos mais velhos que, normalmente, ganham mais dinheiro, mas acabam por perder essa memória. É sempre um drama a perda da memória.
Nos países africanos dizem que quando um velho morre “perdeu-se uma biblioteca”. Era algo muito bonito. Qualquer um de nós, por muito pouco que saiba, sabe sempre mais do que aquele que acabou de nascer. Hoje em dia, isso também acontece no jornalismo com mais frequência e de forma mais dramática. Alguns vão achar que estou a ser demagogo, mas estou convencido disto. Quando o “Público” começou, em 1990, eu era o segundo ou terceiro mais velho. A idade terrível que tinha era 45 anos. Juntamente com Vicente Jorge Silva e uma secretária de redação, éramos os três mais velhos. Vou dizer esta coisa, se calhar, com bazófia, mas acho que naquela redação, em que ninguém tinha mais de 45 anos, havia mais conhecimento do que na maior parte das redações do País, em que havia algumas pessoas até com 70 anos. Não é necessariamente porque as pessoas são mais novas que sabem menos que aqueles que são mais velhos. Prescindiria muito, se fosse diretor, de alguns velhos que não sabiam nada.
Entre a academia e o jornalismo
Na sua tese de doutoramento centrou-se no news making e no agenda setting. Como é que se sentiu nesse duplo papel de jornalista e de investigador?
Entendo e, sempre entendi, que a ligação ao jornalismo não impede um exercício crítico sobre o mesmo. Afinal, este deve ser feito, todos os dias, numa redação. Porque é que não posso olhar, ao mesmo tempo, um pouco mais acima? Há coisas boas e coisas más. Quando fui para as redações, fui violar um princípio da investigação académica, que foi fazer exercício de observação no terreno, a gente à qual tratava por “tu”, de quem era amigo. Como é que posso ser um observador imparcial? Sim, é verdade. Poderia ser levado pela minha simpatia ou antipatia por uma pessoa, o que, ao mesmo tempo, era de algum modo compensado, por um lado, pelo alerta e, por outro, por conhecer muito bem algumas das coisas que estavam mal porque, eventualmente, até já as pratiquei. Não tive problemas.
Eles deram-me, talvez por solidariedade, por amizade ou porque lhes dei as garantias que não ia usar mal, uma coisa extraordinária que foi: poder assistir, na régie, à transmissão dos telejornais. Isso é algo completamente diferente de estar na redação. Por mais que eles tentem encenar, por mais que não sejam iguais àquilo que são quando não estou, porque sabem que estou a observar, a pressão do momento obriga-os, mesmo que não queiram, a dizer certas coisas, a mudar o alinhamento. Para mim, isso foi ótimo.
O que é e para que serve o jornalismo na sociedade de hoje?
Como no passado, para nos informar daquilo que não podemos saber sozinhos. Ao informar-nos, ajuda-nos a exercer os deveres da cidadania. Estamos mais informados para votar, estamos mais informados até para sair à rua. Sabemos se levamos gabardine ou não, se vai chover ou não, se há trânsito. Serve para nos dizer, de forma interessante, os filmes que estreiam, mas também a crítica dos filmes. Mesmo que depois façamos escolha se gostamos ou não da crítica. Serve para nos ajudar e para nos enriquecer a vida. Um jornal, uma rádio, um telejornal, um meio de comunicação que não tenha enriquecido a vida do espectador, do internauta e do utilizador não merece que a sociedade lhe dê esse privilégio que é exercer o jornalismo.
Que conselhos deixa para os futuros jornalistas?
Trabalharem. Procurarem ser cada vez mais cultos. O culto da atualidade é perceber o que é a filosofia, ter lido e estudado Sócrates e Platão. É, no fundo, ter estudado tudo aquilo que é possível e mais alguma coisa. Costumo muito meter o jornalismo no campo académico neste sentido: o jornalista, sem o saber e sem que a academia o reconheça, é uma espécie de doutor da atualidade. Tem é que todos os dias estar perante o júri, que são os seus leitores, ouvintes e espectadores a fazer exame. Às vezes, chumba-se.
Destaque:
“Tenho dito – aliás, já o escrevi – que se fosse enterrado e houvesse um epitáfio, o que gostaria que fosse lá posto era que estava ali enterrado um tipo que teve a felicidade de relatar o fim da ditadura e o princípio da democracia em Portugal, ao microfone de uma estação onde estava proibido de trabalhar nesse dia.”