Alvo de alterações recentes, o Código Deontológico dos Jornalistas conta com uma nova cláusula e reformulações em duas. A intenção é reagir aos tempos controversos que os profissionais enfrentam. Os representantes máximos da profissão explicam o que muda
As constantes ameaças à liberdade de imprensa e alguns riscos de falta de rigor no tratamento noticioso em casos específicos, como nos acontecimentos que envolvem menores, levou à necessidade de alterações de alguns pontos mais vulneráveis no Código Deontológico dos Jornalistas(CDJ). A nova cláusula que entrará em vigor pretende reforçar o rigor profissional
A necessidade das reformulações no documento que orienta a conduta dos profissionais de informação foi abordada pelo CDSJ (Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas), no 4º congresso, que decorreu a 15 de janeiro de 2017, em Lisboa. O encontro, que ocorreu 19 anos depois de uma iniciativa semelhante, juntou centenas de profissionais para discutirem os problemas e desafios mais prementes da profissão.
O referendo para votar as alterações sugeridas teve lugar nos dias 26, 27 e 28 de outubro de 2017 online e, presencialmente, no dia 28, mas sem grande adesão dos jornalistas portadores de título profissional. Nas sedes do Sindicato dos Jornalistas, em Lisboa e no Porto, apenas 6% dos jornalistas com Carteira Profissional válida participaram na eleição, o que corresponde a apenas 347 dos 5.746 com título.
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CDSJ) que, em parceria com a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ) e ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), regula o exercício da classe apresentou três propostas distintas. A primeira, com votos a favor de 331 participantes, centrou-se na independência da cláusula de consciência.
o número 6 do Código Deontológico dos Jornalistas (CDJ) ratifica que “o jornalista deve recusar atos que violentem a sua consciência”, uma orientação que já existia, mas que agora merece mais destaque. A presidente da direção do Sindicato de Jornalistas, Sofia Branco, justifica a necessidade da criação desta nova cláusula. “Pela sua importância e relevância e por ser muito desconhecida por parte dos jornalistas, consideramos que deva ser um artigo, por si só, autónomo.”
“A consciência é individual. São os valores éticos e morais de cada profissional independentemente da tarefa que executa”, explica Otília Leitão, ex-vice-presidente do CDSJ, jornalista especializada em assuntos judiciais. Para esta profissional, “a consciência é fundamentada na moral e na dignidade humana. É um direito que, no limite, garante a possibilidade de pensar e agir de forma livre e coerente com os princípios e valores em que acreditam e pelos quais orientam a conduta e as escolhas que são chamados a fazer no exercício da sua profissão”.
Ana Paula Pinto Lourenço, advogada, professora e investigadora da Universidade Autónoma de Lisboa defende que a autonomização desta cláusula, no CDJ, seria desnecessária. Uma vez que na Lei n.º 1/99, de 01 de janeiro, (que é o do Estatuto dos Jornalistas), o artigo 12.º contempla a Independência dos jornalistas e a cláusula de consciência”.
Segundo o ponto 1 do artigo 12.º desta lei “os jornalistas não podem ser constrangidos a exprimir ou subscrever opiniões nem a abster-se de o fazer, ou a desempenhar tarefas profissionais contrárias à sua consciência, nem podem ser alvo de medida disciplinar em virtude de tais factos.” Contudo, segundo Sofia Branco, “muitos dos jornalistas portugueses não sabem, sequer, que ela existe”.
Evitar os rótulos negativos
A segunda mudança refere ao artigo 7.º do mesmo Código, atual artigo 8.º do novo documento e contou com 324 apoiantes. Nesta cláusula, salienta Sofia Branco, a “expressão «delinquentes» foi excluída “e alarga o âmbito de proteção aos menores para além das vítimas de crimes sexuais”. Ana Paula Pinto Lourenço sublinha que “estas palavras são para desaparecer”.
Segundo a advogada, por vezes, a comunicação social, no tratamento de matéria com envolvimento de menores, excede os limites impostos pelas Lei tutelar educativa (lei que regula a práticas exercidas por menor com idade entre os 12 e 16 anos) e a Lei de proteção de crianças e jovens em perigo (que promove os direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo para garantir o seu bem-estar e o desenvolvimento integral).
A também docente da Universidade Autónoma acredita que “tendencialmente, as pessoas, neste caso, os menores, se aproximam de uma etiqueta”. E acrescenta: “O jovem pratica delitos, mas não é delinquente e é necessário favorecer a sua reinserção social e evitar a sua identificação com esta etiqueta. Pela própria Constituição da República Portuguesa, é necessário proteger as crianças.”
A especialista em Direito considera que “ao dizer que não deve identificar, direta ou indiretamente, menores, como se lê no atual artigo 8.º, é exagero”, salientando que “o jornalista tem obrigação de ouvir as fontes e, se a criança for a única fonte, terá de ser ouvida”. A advogada defende que é preciso fazer uma leitura “hábil” deste artigo: “Se os pais autorizarem, dentro dos limites que a lei permite, não vejo contradição para dar voz às crianças”.
É preciso ter em conta, como sublinha Ana Paula Pinto Lourenço, que “na Convenção dos Direitos da Criança (CDC) há duas vertentes a considerar: uma é a proteção das crianças, a outra é o seu direito à participação anexados nos artigos 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º e 17.º”. E acrescenta: “Quanto aos meios de comunicação, segundo esta convenção, devem dar uma imagem, não só negativa, mas também positiva das crianças e adolescentes, bem como lhes dar voz. Não se trata de assuntos infantis sem falar com as crianças.” Neste sentido, a advogada defende que “vê neste ponto do novo Código Deontológico dos Jornalistas, um “confronto” com a CDC.
Novos termos discriminatórios
A terceira alteração do anterior artigo 8.º do CDJ e atual artigo 9.º consiste no que deve ser hoje considerado “tratamento discriminatório” e incluiu novos termos que possam ser reconhecidos como tal. Nesta questão, votaram 325 jornalistas a favor. Acerca desta cláusula, Sofia Branco explica que “o objetivo é adaptar o CDJ ao artigo 13.º da Constituição da República nos princípios da igualdade e ao artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no princípio da não discriminação”.
A não discriminação também está explícita no Título III, capítulo II do Código Penal Português (CPP), no artigo 240º. Segundo o CPP, quem incitar à discriminação é punido com pena de prisão de um a oito anos. Em Portugal, os organismos têm implementado condutas positivas, a fim de combater o percurso histórico do racismo. Como se lê na página online, do Centro Regional de Informação das Nações Unidas-UNRIC.
Em fevereiro deste ano, foi avaliado, em Genebra, o relatório periódico a “Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial em Portugal”. Segundo o Comité da ONU (Organizações das Nações Unidas), “o país tomou medidas inovadoras para lidar com a integração numa sociedade multicultural”. Contudo, os membros da organização “expressaram alguma preocupação pela falta de referências à sociedade civil no relatório e pela ausência da mesma na discussão do relatório”.
Em território nacional, a Assembleia da República também está ciente das orientações do Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa. “Os deputados querem sair da assembleia e visitar prisões, fazer debates, audições e colocar o tema na agenda”, anunciou Pedro Bacelar Vasconcelos, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias do Parlamento, em declarações à Imprensa.
Jornalistas ignoram referendo
Foram três dias para votar no referendo do CDSJ, mas a presidente da direção deste conselho considera que “os jornalistas, em Portugal, participam muito pouco em tudo o que tem a ver com o jornalismo, o que é muito visível nas assembleias gerais do sindicato”. Sem explicação concreta para o desinteresse da maioria pelo referendo, Sofia Branco reconhece que “trabalham muito e o tempo é pouco ou nada”, mas lamenta, ” uma vez que o voto esteve à distância de um clique”.
Para o jornalista Jacinto Godinho, membro eleito pelos jornalistas para o plenário da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ), a resposta é especulativa. “Porque, possivelmente, a grande maioria não tem, eles próprios, uma literacia sobre a importância dos princípios do código ou por não acreditarem que as alterações pudessem significar mudanças na prática.”
Diogo Cavaleiro, jornalista do Jornal de Negócios, explica que “há falta de união destes profissionais. Esvaziamento das redações e ausência de troca de experiências entre as gerações de jornalistas, bem como a escassa realização de congressos, o que afasta dos novos profissionais a importância destes eventos”.
Adelino Gomes, ex-jornalista, professor, investigador e autor de várias obras sobre o universo dos media, confirma: “Votei sim. Não entendo como é possível que nem um, ao menos, dos 11 artigos ecoe sequer a disrupção maciça causada pela Internet à distribuição e consumo de notícias e ao chamado modelo de negócio”. O histórico repórter completa: “Às vezes, parece-me que os jornalistas portugueses e os seus organismos representativos continuam distraídos a habitar a fortaleza jornalismo.”
Obediência ao Código Deontológico
O Código Deontológico é a autorregulação dos media. Mas quanto à sua obediência as opiniões não são favoráveis. Para a docente da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), Ana Paula Pinto Lourenço, “os jornalistas não são obedientes ao regulamento. Embora haja sempre os honestos, existem muitos mais que o ignoram. Estes profissionais têm dificuldades em saber distinguir o interesse público do interesse do público e há pouquíssimas intervenções pelas entidades competentes na regulação e prevenção destas lacunas, bem como por parte da comunidade”.
Adelino Gomes, decano do jornalismo, considera que o exercício profissional tem sido alvo de várias investidas dos interesses capitalistas das administrações: “Fosse no passado, seja no presente, certos jornais, redações, jornalistas, consciente ou inconscientemente, defenderam e defendem, direta ou indiretamente, por ação ou omissão, interesses de pessoas, famílias, grupos, instituições e governos. Não apenas económico-financeiros – também políticos, religiosos, partidários ou ideológicos. Poderia dizer-se que o jornalismo foi invadido pelo capitalismo e aí está a distância que separa o rigor do simplismo.”
A advogada Ana Paula Pinto Lourenço destaca “a preocupação económica dos meios de comunicação e a fraca fiscalização das entidades competentes como sendo porta aberta ao não cumprimento deste princípio. Com o objetivo de regular o respeito pelo CD existe a CCPJ, que tem o poder de retirar o título profissional do jornalista infrator, mas os recursos humanos são escassos e o processo após uma queixa é demorado”.
Jacinto Godinho, membro deste organismo, vê “os media envoltos numa bola de neve. Não há experiência, meios suficientes que os regulam, condições mínimas para um trabalho 100% isento e não há a mais importante: exigências do público que se habituou receber e calar”.
O público pode recorrer a várias entidades, caso sinta os seus direitos violados pela comunicação social, como a Comissão De Carteira Profissional De Jornalista (CCPJ), os tribunais, a Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens (CNPDPCJ), a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Pode ainda recorrer ao Provedor de Justiça, que também é Provedor da Criança (é um elo entre a comunidade e a administração/poder). “Estes organismos existem para servir, apoiar a sociedade, mas as intervenções desta perante estes meios é quase nula”, reforça a advogada.
Futuro do jornalismo
Perante os relatos preocupantes, há uma questão que se levanta. O futuro do jornalismo poderá ser incerto? Adelino Gomes, que no 25 de Abril de 1974 contava com 29 anos e sete como repórter, menciona: “Quanto ao futuro do 4.º poder, o mais preocupante na crise dos velhos e agora também já dos novos media de informação é que ela segue a par com a emergência de um colossal poder de controlo sobre os cidadãos e os próprios estados, por parte dos GAFA (Google, Amazon, Facebook e Apple), pondo em causa a democracia tal como a conhecemos.”
Para Jacinto Godinho, “nos últimos 20 anos, o público habituou-se a não ser rigoroso e a contentar-se com a informação superficial. A borla”. O membro da CCPJ vê as exigências – ou seja, a capacidade de exigir, impor e reclamar por um jornalismo mais independente – da população como sendo o fator chave para o reatar da estabilidade jornalística.
O jornalista da RTP lembra que “existe uma dificuldade cada vez maior por parte do público de saber distinguir a informação real, isenta, concreta e independente daquilo que é informação patrocinada. Pelas adoções de práticas não transparentes para obter dados e fontes através de compra, pagar por entrevistas e trabalho precário, a fortaleza dos media reside nas audiências”. Como constata Jacinto Godinho, “o futuro desta profissão depende, sobretudo, de um público exigente”.
De modo a assegurar e proteger a ética da profissão, o CDJ é uma base que tende a moldar no tempo para orientar os jornalistas no exercício profissional. Por ser considerado um pilar essencial na construção de uma sociedade crítica, democrática e emancipada, “sem liberdade e independência, o jornalismo perde a alma, isto é, a razão de ser”, conclui Adelino Gomes.