Maria Elisa Domingues, respeitada jornalista e figura ímpar do jornalismo português, aborda algumas das questões mais pertinentes relacionadas com o jornalismo da atualidade e o estado atual da comunicação social.
Hoje, com as redes sociais é cada vez mais fácil distorcer informação, propagar informação falsa, passar uma determinada agenda, como foi, recentemente, o caso da Cambridge Analytica. Se possível, como se pode combater isto?
Eu acho que não pode. Acho que as redes sociais vieram para ficar e são facilmente manipuláveis, e de facto isso que aconteceu com a Cambridge Analytica é um exemplo e não acredito que se fique por aqui. A tentação de encontrar alvos em função dos dados disponíveis das pessoas faz com que estas empresas sejam muito procuradas por pessoas que pretendem extrair vantagens do conhecimento que há sobre o perfil das pessoas, quer para fins políticos, como foi o caso, quer para, sobretudo, fins comerciais. A única forma de combater estas coisas é ter cidadãos informados, mas é muito difícil ter cidadãos informados. Quanto mais é a informação, mais dificuldade há em a compreender e as pessoas estão convencidas que por aderirem às redes sociais, por irem ao Google e escreverem o que querem e terem ali uma resposta cozinhada ficaram informadas. Não ficaram nada. Ficaram com um amontoado de dados que se não souberem descodificar e interpretar, não servem absolutamente para nada.
Poderá o facto de a informação estar tão facilmente disponível, até ao ponto de quase não precisarmos de a procurar para a obtermos, dar uma falsa sensação de literacia mediática?
É isso mesmo. As pessoas têm a falsa sensação que estão informadas, é um acumular de informações, mas não é uma informação credível na maior parte dos casos. Para se ter uma informação credível é preciso saber-se o que se vai procurar, é preciso descodificar aquilo que se encontra, é preciso verificar aquilo que se encontra! Eu acho que o Google e estas coisas todas são os melhores amigos dos jornalistas, mas também os piores inimigos, pois, se as pessoas não souberem filtrar, confirmar, comparar, etc., não obtêm informação credível. É preciso estar preparado, ter ferramentas para utilizar estes novos meios de comunicação.
Tendo em conta o que foi dito e pensando especialmente nos mais novos, poderá ser uma boa forma de combater isso uma aposta no ensino da literacia mediática desde os mais novos, na escolaridade obrigatória, por exemplo?
Há muitos anos que defendo isso. Há uns anos, por volta de 15, fui ter com o Ministro da Educação e tentei convencê-lo a fazer nos liceus uma cadeira para aprender a ver e interpretar televisão, para perceber as imagens, para perceber a linguagem, etc. Ele achou muito interessante, sorriu muito, é claro que não ligou ao que eu disse, como é evidente (risos). Aqui, é um bocadinho a mesma coisa. O que se faz é ensinar as crianças a trabalhar com os computadores e todas as escolas fazem isso, mas eu não conheço experiências de ensinar a perceber o que lá se encontra. Assim como se ensina o alfabeto e a tabuada, devia-se ensinar as crianças a utilizarem os computadores, a interpretarem o que lá vem, o que está certo, o que está errado, e como se percebe, não há formulas, não é como a fórmula do hidrogénio. Há mecanismos para perceber, mas é preciso que as pessoas que o ensinam saibam.
Recentemente ouvi a seguinte frase: “Não deixar a verdade interferir com uma boa história.” A Maria Elisa crê que isto está muito presente atualmente na mentalidade jornalística?
O que é que as pessoas queriam dizer com isso?
Por exemplo, um título sensacionalista na página de uma publicação ou numa rede social, apenas com boatos e sem confirmação alguma, atrai muitas visualizações e atenção e não é pela veracidade da história.
Ah, sim, com certeza, mas isso é um dos grandes obstáculos e adversários da boa informação hoje. Realmente, aquilo que vende e que atrai são muitas vezes as “boas histórias” que muitas vezes mais não são do que boatos. Muitas vezes há essa tentação e até é feito de propósito. Isso é uma coisa perigosíssima hoje em dia, com essa história dos likes e tudo isso. Muito antes dos likes, eu e um amigo decidimos fazer uma brincadeira. Tínhamos a teoria que era muito fácil meter um boato a circular. Então nós inventámos um boato, não era nada de perigoso, mas era um boato, de uma pessoa conhecida, porque é o que atrai mais a atenção das pessoas. Cada um de nós telefonou a dez pessoas a contar aquela história que era puramente inventada. Fizemos uma experiência. Não tinham passado nem 12 horas, (e não havia redes sociais, esta rapidez que há agora, foi há cerca de 30 anos) e cada um de nós começou a receber chamadas de outras pessoas completamente diferentes a dizer: “Epá, queres saber uma coisa? Sabes o que aconteceu a não sei quem, não sei que mais”. Já era facílimo espalhar boatos. Se em vez de dez telefonemas, for ao seu caderno de endereços eletrónicos e enviar aquilo para toda a gente que conhece, e cada uma dessas pessoas fizer a mesma coisa, imagine em quanto tempo põe a circular o boato que quiser! E enquanto nós fizemos aquilo por brincadeira e para provar a nós e aos nossos amigos o quão fácil era, há pessoas que fazem isto por maldade ou por estratégia. Mas não podemos também duvidar de tudo sem razão.
A facilidade de produção e distribuição de informação hoje em dia pode ser encarada como algo negativo. Concorda?
Não, apesar de tudo o que disse até agora, não concordo. Acho que é sempre melhor termos mais informação do que termos menos. Esta quantidade de informação é o “preço” de uma sociedade democrática. Uma sociedade democrática produz opinião e mais informação. Qual é a alternativa? Uma sociedade não ser democrática e a informação ser filtrada? Ora, eu não concordo com isso. Prefiro sempre que haja mais informação, mesmo que isso possa tornar mais difícil apurar o que é verdade e o que não é. Tenho é de dispor das ferramentas para interpretar a informação.
A facilidade de produção e distribuição de informação e o fácil acesso a essa mesma informação faz com que estejamos numa época em que é mais importante a rapidez com que as informações são lançadas do que propriamente a veracidade das mesmas….
É verdade.
Nota-se alguma falta de profissionalismo a nível deontológico e ético. Crê que, apesar disto, possam “nascer” jornalistas que terão o mesmo respeito e credibilidade que a Maria Elisa tem?
Acho que é sempre possível. Acredito sempre no presente e no futuro como sendo melhor que o passado. Sempre! Tomara eu ter à disposição, para a construção da minha carreira jornalística, instrumentos de pesquisa como o Google e não ter passado centenas ou milhares de horas da minha vida fechada em centros de documentação. Tinha de ir à procura de cada fonte no sítio, em lugares diferentes das cidades, do país. Não há qualquer comparação entre as ferramentas que os jornalistas têm hoje e as que tinham no passado. As coisas têm sempre melhorado e acredito que sim. Acho que as pessoas têm de construir as suas carreiras baseadas nos tais critérios deontológicos, que têm de continuar a ser respeitados, e tenho esperança que as pessoas continuem a saber distinguir aquilo que é bom, que é verdadeiro, que é feito com honestidade intelectual e com deontologia, e o que não é.
É seguro então dizer que, apesar dos problemas que o jornalismo enfrenta hoje em dia, os aspetos positivos são superiores aos negativos?
Com certeza, mais que seguro.
Potugal vs Estados Unidos
Sendo a Maria Elisa uma pessoa que viaja bastante entre Portugal e os Estados Unidos, qual a diferença entre o jornalismo e a forma como a informação é produzida?
A diferença é o dinheiro. O (nosso) país é pobre e pequeno. É pequeno, o que significa logo que o número de leitores ou espectadores é sempre pequeno. Nós somos mais pequenos que a maior parte dos estados dos Estados Unidos, que são 52, ou seja, temos um PIB mais pequeno que a maior parte dos estados dos Estados Unidos. Isto traz muitos problemas para a produção de jornalismo. Não se pode comparar os recursos da SIC ou da TVI com os da CNN, é outra escala. Não só pelo tamanho do país, mas porque lá transmitem para todo o mundo. Ora, aquilo que os órgãos de comunicação podem fazer a nível da pesquisa e tempo de investigação para um tema é uma coisa importantíssima para a produção das notícias. Dinheiro (necessário) para a deslocação, para as fontes, pois há fontes que, por vezes, só falam com dinheiro… Não se pode comparar com aquilo que pode fazer um órgão de comunicação social português, por melhor e mais sério que seja. Portanto, a grande diferença é essa, os Estados Unidos têm um público alvo bastamente superior ao nosso e recursos económicos proporcionais a esse público alvo.
Tendo em conta a atividade de Trump nas redes sociais, devem indivíduos do seu estatuto e posição participar “exporem-se” nas redes sociais? Devem ser mais resguardados ou a participação nas redes sociais, que facilita a comunicação com o cidadão comum, pode ser algo benéfico para a cidadania, no sentido da educação e mobilização do cidadão?
Eu penso que o Presidente Trump não usa as redes sociais porque quer encorajar a cidadania. Usa as redes sociais porque assim não tem de se expor à confrontação com os jornalistas e pode, sem filtros, expor diariamente ao cidadão o que pensa e o seu estado de espírito ao longo do dia. É uma pessoa que se expõe sem filtros. Não havia na experiência política de nenhum país um caso como o de Trump. É um caso completamente único que se gosta ou não. Ele, do meu ponto de vista, exatamente como foi a utilização da Cambridge Analytica, faz exatamente aquilo que quer, que lhe convém e sabe que vai ter os frutos do que procura. Cria essa convicção com o público, comunica diretamente com ele e não precisa de jornalistas. Quer dar esse aspecto. Dirige-se constantemente à sua base eleitoral, foi eleito com aquela base, desde que não perca uma pessoa daquela base é reeleito. Não o considero muito inteligente, não tem formação como nós a concebemos para ser muito inteligente, mas é muito esperto, e a esperteza às vezes é mais importante que a inteligência, sobretudo na política. Ele sabe exatamente o que quer e sabe exatamente a quem se dirige constantemente. O Presidente Trump dirige-se permanentemente à sua base eleitoral, sabe que se a cultivar com carinho e se dirigir constantemente a ela mantêm os eleitores e é assim que a sua taxa de popularidade ainda não diminuiu.
Poderá essa facilidade de comunicação com o cidadão comum, se usada corretamente, ser benéfica?
Mas o que é o correto? É o seu critério de correto, ou o meu, não o dele. Para ele está a fazer a utilização correta.
Não ser tão impulsivo, ser mais profissional.
Eu acho que ele é super profissional! Está a dizer que ele não é profissional porque ele é muito impulsivo, mas ele quer ser impulsivo. Eu tenho a teoria de que essa impulsividade dele, em que ele diz uma coisa e passado duas horas é capaz de estar a dizer o contrário, agrada ao eleitorado. Tudo o que ele faz agrada ao eleitoral dele. Eu penso que ele estudou muito melhor o eleitorado do que a maior parte das pessoas que o critica. Ele só trabalha para aquele eleitorado, não quer agradar a mais ninguém.
Quando me refiro a profissionalismo, tenho a ideia tradicional de como um Presidente se deveria comportar…
Sim, mas nós não temos termos de comparação em relação às redes sociais. Nunca ninguém tinha usado as redes sociais como ele usou, nunca nenhuma eleição tinha usado as redes sociais como esta. Bom, tivemos um exemplo aqui em Portugal, o Presidente Marcelo ganhou as eleições nas redes sociais também. O Presidente Marcelo é um professor universitário, catedrático, super bem informado, super bem-educado, no sentido da formação académica, com um desenvolvimento académico completamente superior, utilizou as redes sociais da maneira que você talvez chame correta, não se serviu das redes sociais para dizer “baboseiras” a toda a hora nem para dizer duas horas depois o contrário do que tinha dito antes, usou-as da maneira correta. Foi talvez dos primeiros exemplos. Macron também, na França. São pessoas que utilizaram as redes sociais para as suas eleições. Cada um utiliza-as com as suas características próprias. Para nós, com certeza que, uma coisa é correta e outra não é, mas não podemos confundir a nossa opinião com o todo. Se for falar com algum eleitor do Trump, ele não vai perceber do que está a falar, porque considera a forma dele a correta. Para eles, quem diz que o que o Presidente Trump diz está errado é considerado “do outro lado” e quer mal ao Presidente Trump e à América que defendem.
Então, poderá a participação de figuras políticas nas redes sociais, e a mais fácil comunicação com o cidadão comum, ser algo benéfico no sentido da mobilização do cidadão, independentemente do lado político a que pertence?
Com certeza que pode, mesmo em países não democráticos também se consegue a mobilização das pessoas para certas iniciativas através das redes sociais.
É também por isso que a utilização da internet na China, por exemplo, é limitada. Eles percebem que no dia em que as pessoas tiverem fácil acesso à internet será muito difícil controlar a população. A internet permite de facto uma mobilização das pessoas que é incompatível com as ditaduras e favorecem as democracias, claro.
Para fechar: Sem ser sobre desporto, existe uma escassez de programas televisivos de debate e discussão hoje em dia, em particular sobre os assuntos ditos sérios como política, economia ou ciência. É falta de interesse do público ou dos media? Até porque este tipo de programas é relativamente barato de produzir.
É verdade que é barato, mas as televisões generalistas têm muito pouca audiência. O público não está interessado. É por isso que a especialização é cada vez maior. Existem canais especializados, canais só de notícias, televisão por cabo…
A televisão é cada vez mais segmentada, como toda a informação, portanto, os canais generalistas têm dificuldade, em prime time, de transmitir programas que não vão ter um bom resultado.
E há alternativas: quem procura essa informação vai ver esses canais.