São diversas as paixões de Anita Guerreiro, mas só uma suscita o verdadeiro amor: cantar. Mulher de diversos talentos, afirma ao UALMedia que, enquanto a memória não falhar, irá continuar a cantar.
Anita Guerreiro, 81 anos, possui uma carreira de mais de 60 anos e nela cabe tudo: fado, teatro de revista e televisão. Começou a cantar aos 16 anos no programa “Comboio das Seis e Meia” e a atuar com 19 anos no teatro de revista, “Ó Zé, Aperta o Laço”. Fez uma pequena participação num filme americano, pisou mais de 50 vezes os palcos portugueses, passando pelo Teatro Maria Vitória e o Coliseu dos Recreios. Em televisão, fez parte de todos os canais generalistas, sendo que foi na TVI que fez mais séries e novelas, com personagens únicas e diferentes como a avó Batanete, na série “Os Batanetes”. Foi na Rua da Misericórdia, em Lisboa, na Adega de São Roque, que conversou com o UALMedia após um almoço com a filha, Pepita Cardinalli.
Quando preparava esta entrevista, li que o seu nome verdadeiro não é “Anita Guerreiro”, mas sim “Bebiana Guerreiro Rocha Cardinalli”. Qual foi a razão desta mudança?
É porque era tão lindo que ninguém ia fixar [risos]. Aliás, quase todos os artistas têm diminutivos porque, às vezes, é complicado o público fixar. “Anita” é muito fácil. “Bebiana”, que é o meu verdadeiro nome quem é que o ia fixar?! Fixavam-no, mas levavam tempo. Foi o Marques Vidal, que era um locutor de rádio da altura, que num concurso, “Comboio das Seis e Meia”, me pôs o nome de Anita. Ele era assim: “Temos que pôr um nome à miúda que Bebiana ninguém fixa.” Foi então que começou a pensar e a dizer “Bebiana, Ana, Anita Guerreiro”. Foi assim, de repente. É um nome mais fácil e pequeno e toda a gente fixou logo. Tenho o nome de uma tia minha, e ela sempre disse à minha mãe: “Gostava que, quando tivesses uma filha, lhe desses o meu nome.” E assim foi. Quando nasci, essa minha tia já tinha falecido e a minha mãe colocou-me o nome Bebiana. Não tenho vergonha do meu nome, aliás, ninguém me trata por Bebiana, é só Anita.
Com 16 anos, concorreu, como já disse, a um passatempo do programa “Comboio das Seis e Meia”, do qual Marques Vidal era o locutor apresentador. Este apresentou- a ao diretor do programa, José Castelo, e ao maestro Miguel de Oliveira, querendo que a Anita cantasse para eles. Não só cantou como encantou e o diretor do programa afirmou que queria que fosse a Anita a estrear o programa. Qual foi a sua reação a esta decisão?
Fiquei em êxtase, eu queria era cantar! Já cantava desde pequenina, desde os tempos da escola. Comecei a cantar o Hino Nacional na primeira classe, porque ao sábado davam lavoures, fazíamos orações e terminávamos o dia com o hino. Era tudo umas “canas rachadas” e, um dia, quando já sabia, comecei a cantar e a minha professora disse-me: “Espera aí, canta lá tu sozinha.” Comecei a cantar o nosso hino e a minha professora interrompeu-me e afirmou: “Passas a ser a nossa vocalista.” Foi assim que tudo começou. Por isso, quando o José Castelo disse que eu ia estrear o programa, fiquei tão contente que nem queria acreditar naquilo que me estava a acontecer.
“Eu tive coisas muito lindas no teatro, posso-me gabar que nunca vi nada como aquilo que eu fiz”
No teatro estreou-se em 1955, na revista “Ó Zé, Aperta o Laço” e, desde então, não parou, tendo participado em mais de 50 revistas. De todas as revistas em que participou qual foi a que a marcou mais?
Gostei de todas! Tive sempre muito bons números, mas há um que saliento, o “Os Pescadores”, que era bastante impressionante. O que mais recordo desta peça foi no momento em que entrei no cenário: dentro de um barco pequeno de pescadores num mar revolto, que atravessava o palco e o fosso da orquestra que se encontrava por baixo do palco e emitia os sons do mar, e ia até a segunda fila cantar “Barco foi para o mar e o pescador…”. Esta cena foi linda e o público ficava arrepiado. Eu tive coisas lindas no teatro, posso-me gabar que nunca mais vi nada como aquilo que fiz no Teatro Maria Vitória. Quando era no Coliseu dos Recreios, com aquele palco, tive coisas maravilhosas como, “Ai, ai, Lisboa” que cantava com a Fernanda Baptista (já falecida) na cúpula do coliseu sem microfone.
Tinha que projetar muito bem a sua voz para o som conseguir chegar a todo o público?
Não era necessário. O coliseu tem uma acústica fantástica, para quem estava na cúpula virada para o palco, o lado direito emitia o som estridente, bonito. Ouvia-se bem dos dois lados, mas do lado direito era fenomenal. Era algo único, como já tinha referido, nunca mais vi algo assim. Foram tempos em que tive muita sorte, cantei sempre com pessoas que naquela altura tinham nome em Portugal, como a Fernanda Baptista.
Tem falado muito na Fernanda Baptista. O que significava para si?
Éramos irmãs, nunca tivemos ciúmes uma da outra. Se numa revista eu tinha uma coisa que agradava mais do que a dela, ela ficava feliz por mim e vice-versa. Não havia “a tua cantiga é mais bonita que a minha”. Nunca! Não havia essas rivalidades. Eu tive coisas muito lindas, mas ela também e ficávamos felizes uma pela outra, nunca chocámos e isso é muito bom numa amizade. A nossa relação era muito bonita, éramos colegas de trabalho e amigas para a vida. Quando cantávamos as duas, era um momento único. O público levantava-se para nos aplaudir, são tempos que já não voltam, e não podem. Tive um dueto com ela, na qual eramos duas prostitutas e vínhamos para um café contar a nossa vida, como tínhamos chegado àquela situação e depois terminávamos a cantar: “O mesmo fado, novela de amor maldito, triste e chorado, no mesmo livro foi escrito, aquilo que o concebeu, o mesmo que escreveu, ao mesmo amor fatal…” Chorávamos as duas e o coliseu de pé. Era lindo, impressionante. Trabalhar assim no coliseu, não há nada igual.
Quando ouvimos falar de Anita Guerreiro, lembramo-nos da grande fadista, mas também da grande atriz. Uma das séries em que me recordo de a ver foi nos “Batanetes” na qual tinha uma personagem bastante engraçada. Como viveu essa personagem e esta série que foi tão acarinhada pelos portugueses?
Adorei fazer de avó Batanete. Sabe o que é andar na rua e escutar os miúdos a chamar-me “Avó Batanete”?! Eles andavam atrás de mim a chamar-me por “avó” e isso era muito gratificante pois significava que estava a fazer um bom trabalho. Tinha um papel bastante engraçado e eles achavam-me graça. Agora já não tanto, mas antigamente era um caso sério. Agora também voltou a dar na TVI Ficção e, quando posso, vejo novamente. Esta série e tudo o que se fazia antigamente era diferente. Uma boa parte dos portugueses gostaram desta série, porque era diferente, o elenco era fantástico, as cenas maravilhosas, com humor, eram uma distração para qualquer um. Adorei fazer esta personagem e esta série, foram ambas especiais para mim.
Participou em dois filmes, fez mais algumas séries e novelas. Qual foi para si o papel mais marcante?
A minha primeira participação em filmes foi com apenas 18 anos, no filme americano chamado “Lisbon”, com Ray Milland e Maureen O’Hara. Eram dois grandes atores americanos que vieram a Portugal fazer um filme sobre Lisboa e eu apareço quando o Ray e Maureen vão ao restaurante. Estou a cantar a canção “Lisboa Antiga”, ele fica encantado comigo e ela fica cheia de ciúmes. Esta cena, por acaso, até está no Youtube e, às vezes, vou ver para recordar destes momentos. Este, sim, foi para mim um marco histórico na minha vida e agradeço muito este convite. Em relação a séries ou novelas, gostei de fazer todas porque cada uma teve a sua história e o seu momento. Trabalhei com muito bons atores e principalmente boas pessoas, sempre me acarinharam muito e, quando tive o meu marido mal eles ajudaram muito. Disponibilizaram um motorista para andar com o meu marido, quando não estava nas melhores condições. Enquanto eu gravava, sabia que tinha alguém a cuidar do meu marido. Vou estar sempre muito grata pelo que fizeram.
Casou com um homem oriundo do mundo do espetáculo, Pepe Cardinalli. Nunca sentiu vontade de participar no mundo do circo?
Participei, como atração do espetáculo. Cantei em alguns circos e gostei bastante, era diferente algo assim. O meu marido era ilusionista e eu gostava daquilo que ele fazia. Mas participar como integrante de um circo, não! [risos] Também nunca tentei, porque aquilo que gosto mesmo de fazer é cantar e atuar.
“Lembro-me que quando a cantei [marcha “Cheira bem, cheira a Lisboa”] pela primeira vez para o público tive uma receção tão boa, que na mesma noite, cantei-a oito vezes”
Em 1969, popularizou a marcha “Cheira bem, cheira a Lisboa”, que até aos dias de hoje é uma marcha que muita gente gosta e conhece. Qual foi a inspiração para este tema tão bonito?
Não fui eu que o desenvolvi. O maestro Carlos Dias fez a música e o César de Oliveira fez a letra, eu apenas cantei. Mas quando ouvi essa marcha senti algo, era algo maravilhoso, retrata a nossa capital. Quando ouvimos “Cheira bem, cheira a Lisboa” sentimos a “necessidade” de cantar também, é algo que nos pertence e é por isso que nós, portugueses, gostamos tanto. Lembro-me que, quando a cantei pela primeira vez para o público, tive uma receção tão boa que, na mesma noite, cantei-a oito vezes. E isso foi gratificante.
De todos os fados que já cantou qual aquele que mais gosta?
Eu gosto bastante da marcha “Cheira bem, cheira a Lisboa”, mas o fado “Tia Anica” foi aquele que me deu nome. Este fado foi feito para os nossos soldados quando estes foram para a Índia, de quem fui madrinha de guerra e assim me impulsionou para o mundo. É um fado lindo e mostrava aquilo que as famílias sentiam por ver os seus a irem para a guerra. [pausa para cantar o fado “Tia Anica] Foi este fado que me tornou naquilo que sou hoje.
Durante vários anos participou, nas Marchas Populares de Lisboa, tendo sido madrinha de algumas. Qual é a sua marcha?
A minha não é nenhuma em especial, são todas! Torço por todas, fui sempre tratada bem por todos os bairros que me acolheram enquanto pessoa e madrinha. Não podia, nem vou fazer distinção naquela que me tratou melhor ou pior, fui sempre muito bem-recebida. A última que fiz foi a Marcha dos Mercados.
E aquela que mais gostou de desfilar no pavilhão e na avenida?
Gostei de todas, também. São todas diferentes, cada uma tem o seu jeito. Mas ultimamente era a Marcha dos Mercados que, como já tinha referido, foi a última em que participei. Mas há dois ou três anos que não sou convidada para ser madrinha. Sou convidada para estar na tribuna juntamente com o Sr. Presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina. Foram mais de 40 anos a desfilar nas marchas, mas ultimamente até ia num carro alegórico ao tema da marcha todo florido.
“Preciso de cantar, dos colegas e do público. O público faz falta ao artista e o aplauso é único”
Em 2014, fez 60 anos de carreira e comemorou numa grande festa com amigos na Feira Cultural de Ermesinde. O que mudou nestes quatro anos?
Tecnicamente, nada. Continuo a cantar todas as noites, não consigo parar, é a minha vida. Canto de domingo a domingo, no restaurante “O Faia”, situado no Bairro Alto, e quando não vou cantar é mesmo por motivos de força maior. De resto, se nada se opor, eu vou cantar. Preciso de cantar, dos colegas e do público. Graças a Deus, continuo a ser acarinhada e se há “brasileiros” há emoção, eles choram comigo, adoram as minhas canções. É ótimo sentir o público do nosso lado. Enquanto a minha cabeça e a minha memória não falharem, vou continuar a fazer aquilo que gosto.
A Anita é uma mulher multifacetada pois é fadista, atriz de revista, de série televisiva e de novelas. Se tivesse de escolher entre estas suas paixões, qual escolheria?
Eu gostei de fazer tudo! Mas gosto muito de teatro, adoro sentir o público de perto é diferente. Mesmo que gostemos de fazer tudo, estar na televisão é bom, mas só lá estão os atores, os autores, os câmaras, os senhores da realização, entre outros, mas não temos o público ao pé de nós. O público faz falta ao artista e o aplauso é único. Às vezes, o artista não está bem, mas vê o público e vê que, no final, o seu trabalho foi reconhecido com os aplausos. Então, esquece tudo o que está mal e concentra-se nas coisas boas que estão a acontecer. É um privilégio ter alguém a ver-nos e quantas mais… melhor. Como disse há pouco, os “brasileiros” são emotivos em relação ao fado e gostam demais daquilo que fazemos. Eu trabalhei com muitos “brasileiros” nas revistas como, por exemplo, a Bibi Ferreira. Houve um colega que me disse que existe uma casa de fados no Brasil com o nome “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”, o que, para mim, foi uma honra. Aqueles que não percebem a nossa língua aplaudem, dizem que gostam muito, mas os “brasileiros” percebem aquilo que dizemos. Como eu digo, “quando estou com brasileiros, estou com a minha gente”.