Representante de Portugal em Espanha e com um percurso diplomático em instituições como a NATO e a União Europeia (UE), o embaixador João Mira Gomes partilha com o UALMedia a sua perspetiva sobre questões fundamentais que afetam tanto a Península Ibérica como o futuro da Europa.
Em que medida considera que a atual relação diplomática entre Portugal e Espanha difere de outras experiências na sua carreira?
As relações entre Portugal e Espanha estão a atravessar um período muito doce. Se olharmos para as relações entre Portugal e Espanha, temos três níveis: a relação Governo-Governo, o nível de relações com as comunidades autónomas – e aqui temos não só as comunidades autónomas transfronteiriças, mas também comunidades autónomas que são estratégicas para nós – e, finalmente, o nível de cooperação transfronteiriça.
A relação diplomática é importante porque Portugal e Espanha partilham os desafios do despovoamento e da “Espanha desertificada” e do “Portugal desertificado” na zona da raia. Se olharmos para a fronteira, que é a fronteira mais longa da Europa entre dois países, chegamos à conclusão de que apenas dois municípios têm uma taxa demográfica positiva, todos os outros municípios têm taxas demográficas negativas.
Mas temos algo que é muito importante nas relações entre os dois países: a grande confiança e cumplicidade que existe entre nós. Um exemplo desta grande cooperação é a forma como gerimos a COVID. Em muitos países da Europa, a gestão da COVID baseou-se em decisões unilaterais. Nós gerimos sempre a COVID e a questão das fronteiras em conjunto.
Neste momento, por exemplo, nesta enorme tragédia em Valência, Portugal esteve presente desde o primeiro minuto e está a manter uma força conjunta muito mais forte com a proteção civil e com as Forças Armadas.
Para construir a excelente relação que temos atualmente é necessário não só muito trabalho, mas também confiança entre os dois Estados, e isso existe.
Na sequência destas crises sanitárias e humanitárias, que lições desta colaboração entre Portugal e Espanha poderiam ser aplicadas para melhorar a capacidade de resistência da UE a futuras crises?
Na UE, já dispomos de importantes mecanismos de proteção civil, como acontece neste momento em Valência. Este verão, também tirámos partido desta solidariedade europeia por causa dos incêndios em Portugal. Mas a UE assenta também, em grande medida, nas bases da cooperação bilateral entre Estados. E aqui penso que a UE pode olhar para o exemplo de Portugal e Espanha, para o funcionamento das Euro-regiões, uma realidade muito importante e interessante, e para a forma como estamos a desenvolver programas conjuntos.
É fundamental concentrarmo-nos naquilo que une os países, especialmente em tempos de divisão e isolamento. A cooperação aberta entre Portugal e Espanha é fundamental, não só para ambos, mas também para o reforço da União Europeia.
“Precisamos de criar oportunidades para que esse talento fique”
Como é que a cooperação entre Espanha e Portugal pode pôr termo à perda de talentos e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento económico?
Há aqui duas faces da mesma moeda: uma é formar e reter o talento, e a outra é atrair o talento. No nosso caso, para reter o talento jovem, temos primeiro de ter boas escolas para formar esse talento, porque se não houver talento não há nada para reter, e penso que esta é uma realidade tanto em Espanha como em Portugal. Precisamos de ter mais colaboração – e já temos bastante entre universidades – para que o talento possa circular. E depois precisamos de criar oportunidades para que esse talento fique.
Se a universidade formar jovens bem preparados para o mercado de trabalho é muito mais fácil eles ficarem no país. Mas também temos de criar condições, não só a nível laboral – e aqui as condições laborais não têm só a ver com uma perspetiva de carreira profissional –, mas também com uma remuneração que lhes permita ficar no país.
Outras políticas públicas são também muito importantes para reter os jovens. Fala-se muito em habitação, e isso é importante. Quando vão trabalhar para o estrangeiro, talvez tenham uma melhor qualidade de vida do que quando trabalham no país. Tenho uma filha que trabalha em Amesterdão e a habitação também não é fácil lá, mas talvez as pessoas estejam mais dispostas a adaptar-se quando vão para o estrangeiro do que quando estão no seu próprio país.
Temos de fazer tudo isto analisando também a forma de atrair talento do estrangeiro, porque há alturas em que não temos talento suficiente nos nossos países e aí precisamos de ter políticas activas para atrair talento e fazer este intercâmbio com outros países. No nosso caso, é muito óbvio que esses países são o Brasil, países de África, mas não só, também outros países da Europa. Agora, por exemplo, há uma grande procura de mestrados nas universidades portuguesas e, quando olhamos para isso, há mais estudantes estrangeiros a fazer o mestrado em Portugal do que estudantes portugueses. Mas depois a maior parte dos estudantes não fica em Portugal, fica com o desejo de voltar a Portugal para passar férias, não para trabalhar lá.
Existem outras políticas que poderiam ser aplicadas a nível Espanha-Portugal, como a da habitação?
Na última Cimeira Luso-Espanhola, falámos sobre esta questão e concordámos em trocar informações e políticas para ver como podemos também analisar a situação no outro país e o que podemos fazer com ambas as experiências. É uma questão que leva tempo, precisamos de construir mais habitação social, de ter uma ideia do impacto dos apartamentos turísticos no mercado, da reabilitação da habitação. O próprio Estado tem muita habitação desocupada que talvez pudesse ser recuperada e colocada no mercado. Temos de olhar para a questão como um todo. Não é só um problema dos jovens, mas da sociedade em geral. As pessoas estão a afastar-se cada vez mais das cidades porque não têm dinheiro para viver nelas.
“Portugal e Espanha são já uma potência europeia em matéria de energias renováveis e, durante a crise da Ucrânia, ficou claro que exportamos segurança energética”
Que iniciativas conjuntas estão a ser consideradas por Espanha e Portugal para acelerar o desenvolvimento da energia marinha no Atlântico e como podem ambos os países utilizar esta vantagem geográfica para se posicionarem como líderes em energias renováveis na Europa?
Há quatro anos que temos um lema para as cimeiras e este ano o lema da Cimeira Luso-Espanhola de Faro foi: “Água: um bem comum”. Chegámos a um acordo muito importante sobre a gestão das bacias e dos rios que partilhamos. E isso é importante porque a água é cada vez mais um bem não só comum, mas um bem essencial para as pessoas e para a economia. E este é um bom exemplo de como dois países podem gerir um bem cada vez mais raro. E podem fazê-lo não só em conjunto, mas também com uma visão estratégica sobre a importância deste bem. Mas quando falamos de água, falamos também do oceano, porque ambos os países têm importantes zonas marinhas que temos de proteger.
Para além da água, que foi o tema principal, falámos também de energias renováveis, energia eólica e falámos muito de hidrogénio. Vamos continuar a cooperar em matéria de energia eólica e também no desenvolvimento de projectos como o H2MET. Este projeto tem duas vertentes, uma é a ligação entre Portugal e Espanha e a outra é entre Espanha e França.
Além disso, os dois chefes de Governo assinaram uma carta dirigida ao primeiro-ministro francês sublinhando a importância das interconexões, não só ferroviárias mas também eléctricas. Portugal e Espanha são já uma potência europeia em matéria de energias renováveis e, durante a crise da Ucrânia, ficou claro que exportamos segurança energética.
No entanto, para continuarmos a fazê-lo, precisamos de mais interconexões com França, um objetivo fundamental para a Comissão Europeia, uma vez que a taxa atual está abaixo da meta.
Salientamos também a importância de desenvolver um centro ibérico para estudar o armazenamento de energias renováveis. Produzir energia é apenas uma parte, temos de aprender a armazená-la quando a procura não a absorve. Neste sentido, Portugal e Espanha são cada vez mais actores-chave na UE em matéria de energia e olham para nós como exportadores de segurança energética.
Como pensa que Portugal e Espanha podem liderar o desenvolvimento de um mercado único na Europa?
Há uma questão muito importante que foi muito discutida na Cimeira: as interligações ferroviárias entre Portugal e Espanha. Já temos um projeto de alta velocidade entre Lisboa e Porto, que chegará à Galiza, e outro projeto importante entre Lisboa e Madrid. Estes corredores são fundamentais para o desenvolvimento de ambos os países, com a fachada atlântica e o corredor Lisboa-Madrid, que liga importantes zonas populacionais.
Também estamos a desenvolver o corredor do Arco Atlântico, que liga o porto de Aveiro a Salamanca e, a partir daí, a Burgos e ao País Basco. Trata-se de um corredor fundamental para o desenvolvimento da península. Estamos também a trabalhar na ligação entre o porto de Sines e a plataforma logística de Badajoz, que estará pronta no próximo ano.
Isto é fundamental porque na Península Ibérica temos uma oportunidade de desenvolvimento baseada na necessidade de uma infraestrutura sólida. Temos boas estradas, mas precisamos de reforçar os caminhos-de-ferro. Além disso, temos uma energia competitiva e mais barata do que noutros países europeus, o que, somado à nossa localização estratégica, nos posiciona como um ponto de entrada crucial de outras geografias.
Na esfera digital, Portugal e Espanha estão a tornar-se pontos de entrada de cabos de dados de outras geografias, o que torna a agenda digital ainda mais relevante.
No contexto europeu, qual é o principal desafio que a UE enfrenta em termos de coesão e segurança?
A coesão entre os estados-membros da UE, porque sem ela é mais difícil estabelecer um diálogo com outros parceiros internacionais. Num mundo complicado, com a guerra na Ucrânia e outros conflitos no Médio Oriente e no Sahel, a situação global está a tornar-se cada vez mais difícil e precisamos de trabalhar em conjunto para uma maior coesão dentro da UE. Precisamos reforçar a UE em áreas estratégicas. Fala-se muito dos relatórios Drain, do Relatório Leta, do Relatório Niinistö. São muito relevantes porque, se tivermos mais capacidade dentro da UE, podemos falar com mais força com outros parceiros internacionais.
A Europa tem de se preparar para um período complicado: por um lado os EUA com a administração Trump e, por outro, a Rússia e a China. Espanha e Portugal podem ajudar a Europa a não se fechar em si mesma, olhando para os seus parceiros tradicionais, como a América Latina e África.
E isto é muito interessante porque, embora periféricos na Europa, Espanha e Portugal estão na encruzilhada entre a Europa, a América Latina e África. Temos um papel muito importante a desempenhar: que a UE não se feche sobre si própria, que não olhe apenas para a sua fronteira oriental, mas que tenha uma visão de 360 graus.
A Europa não será um ator global se se fechar sobre si própria. Temos de desenvolver os instrumentos necessários para a reforçar no ambiente global.
*Traduzido do espanhol para o português por Ana Rivas Montero e Maria del Pilar Font García [estudantes ERASMUS]