Feliz, lutadora e sonhadora. Não se lembra do momento em que decidiu ser bailarina. Desde pequena que dança para multidões que só existiam na sua cabeça. Herdou do pai o sonho, da mãe os pés que a prendem ao chão. Tem 20 anos, mas as histórias que tem para contar são muitas para o pouco tempo que durou o nosso café. Emotiva e emocionante: Carlota Carreira.
Foste finalista do programa Achas que sabes dançar. Foram nove semanas de ensaios intensos, a dançar pela vida. Foram semanas difíceis?
Foram semanas muito difíceis, posso dizer que deve ter sido a experiência mais difícil que tive na vida, em termos artísticos. Foram muitas horas! Era de segunda a domingo, o dia inteiro das 8 da manhã às 11 da noite, todos os dias. Tínhamos câmaras e pessoas sempre lá a ver-nos, isso pesa. Somos sempre os mesmos e estamos sempre com pressão em cima. Todas as semanas era sempre um bocadinho mais difícil.
“Podemos dançar numa companhia com contrato o ano inteiro a receber um ordenado. Podemos ser freelancer e fazer trabalhos televisivos, eventos, patrocínios, anúncios”
Quando te inscreveste, esperavas chegar à final?
Não. Quando me inscrevi nunca achei chegar à final. Inscrevi-me numa de brincadeira. Foi num dia que apareceu o anúncio na televisão e eu vi. Ah que giro! O achas que sabes dançar vai voltar. Estou ansiosa para saber quem é que vai. [risos] E uma amiga disse Porque é que é que não vais? Vai, a sério, tu tens probabilidade de chegar longe. Mas estava longe (de acreditar). Nunca imaginei as galas e o que é que isso trazia. É um mundo desconhecido, as pessoas que não estão lá, não sabem. Sempre imaginei só as etapas que nós vemos no programa americano. De 300, passam 100 e dos 100 passam 30. Nunca pensei nas galas. Já por não pensar nas galas, nunca pensei chegar à final. Nunca pensei mesmo!
Na tua VT de apresentação dizias a dança para mim não é uma profissão. As pessoas quando gostam do que fazem não têm de trabalhar um dia na vida. Tu não queres trabalhar?
[risos] Eu não quero trabalhar! Estou bem assim.
Que carreira idealizas no mundo da dança?
O que eu gostava que fosse? Sinceramente, não sei… Porque o mundo da dança é um mundo tão diverso. Podemos dançar numa companhia com contrato o ano inteiro a receber um ordenado. Podemos ser freelancer e fazer trabalhos televisivos, eventos, patrocínios, anúncios. Podemos dançar com um artista musical. Sinceramente, era o que mais gostava. Com a Beyoncé. Se fosse possível, sff? [risos] Gostava muito. Porquê? Porque fazemos o melhor dos dois mundos: dançar para montes de gente e dançar a um nível muito alto e profissional. A nível comercial, quando tens uma quantidade de gente a gritar e a pedir que tu dês e dês, é fantástico. É muito bom! É uma sensação… Eu sonho com isso. Estar numa arena, num pavilhão, num estádio, a dançar para milhões de pessoas. Era o que mais gostava!
Em 2005, entraste no Conservatório de Lisboa. Numa reportagem da SIC dizias só uma pessoa especial entrava aqui, que quisesse muito seguir aquilo que quer da vida. És uma pessoa especial?
Vejo essa entrevista e fico curiosa como é que, com nove anos, disse uma coisa dessas! [Risos] Mas é verdade! Era o que eu sentia no momento. A escola de dança do Conservatório Nacional é a melhor em Portugal para seguires uma carreira no ballet clássico ou contemporâneo. É onde as meninas bailarinas querem entrar. Quando eu fiz a audição, éramos 60 e ficámos 15, no meu ano. Era fantástico entrar no conservatório! Olhava para os finalistas e para os mais velhos e ficava UAU! Isto é um nível… Isto é uma vontade… E é! Posso dizer que não sei o que é ir ao cinema em adolescente. Não sei. Sei o que é ir ao cinema depois dos 18! O conservatório é o mais rígido possível, mas é porque tem de ser, senão não vais a lado nenhum. É a formação! O espírito e a mentalidade que eles exigem ali é a certa. É muito difícil, é um bocadinho sobre-humana, mas é a correta. Quando eu disse isso, nessa entrevista com nove anos, pensei: vejo os mais velhos, os finalistas e eles estão ali e são tão bons que eu quero ser assim. Quero ser melhor, quando chegar a minha altura! Para isso, só uma pessoa especial é que sabe que não vai ter vida nos próximos dez anos (mas vai valer a pena), porque isto é exatamente aquilo que quero fazer.
Em 2011, ainda no Conservatório, acontece um dos piores momentos da tua vida.
Sim, a morte do meu pai.
Dizias, na tua VT de apresentação do Achas que sabes dançar, a minha salvação foi que eu tinha aulas na semana a seguir e fui logo para o Conservatório. Foi onde descarreguei toda a minha energia. A dança ensinou-te, de certa forma, a sofrer?
A dança… [Silêncio] Quando uma pessoa normal fala em dança, para nós é exatamente zero. Para nós, a dança não é a dança, uma coisa que as pessoas fazem no final do dia. A dança é a nossa vida! Hoje sou uma bailarina freelancer. Sempre que quero transmitir um sentimento, vou para um estúdio. No conservatório, somos impostos a dançar aquilo que nos dão. Cabe-nos dar emoção a essa coreografia. A que estamos a sentir ou a que nos pedem. Para mim, a minha maneira de falar, a minha maneira de explicar aquilo que se estava a passar com a minha vida, era dançar. A minha psicóloga era a dança! Era lá que exprimia tudo o que sentia, era o meu porto seguro. O meu pai morreu e eu, uma semana depois, já estava nas aulas. As pessoas nem sabiam como é que haviam de falar, mas eu estava bem. E depois os miúdos não sabem lidar com isso, somos adolescentes… É um assunto complicado ainda hoje de se tratar, porque não é suposto que aconteça tão cedo!
Em que é que essa perda te moldou?
Quando o meu pai morreu, passou-me uma imagem na cabeça de todas as coisas que ele não ia fazer comigo. [Silêncio] Ele não vai conhecer os meus filhos… Ele não vai ser avô! Ele não me vai levar ao altar quando casar… Ele nunca mais me vai ver dançar… Nunca mais vou passear com o meu pai ao jardim… Nunca mais vou passear o meu cão com o meu pai… Nunca mais vou jantar com ele, almoçar… Isto tudo vai acontecer e ele não esta cá. Como é que lido com isso? Hoje em dia, é um facto. Ele não esta cá, nunca mais vai estar… e eu sei disso. [Silêncio] E é verdade, os meus filhos não vão conhecer o avô, o meu pai não vai levar-me ao altar, não vai voltar a ver-me dançar. Quando perdi o meu pai, tinha 16 anos, era muito nova… O meu pai tinha 82 anos quando morreu, já era uma idade avançada, é verdade. Há sempre a coisa d’O meu pai vai morrer um dia e pensava muito nisso, mas quando aconteceu foi um bocadinho o e agora? E agora? Eu não sei o que é que é a minha casa sem os quatro. Eu sei a minha casa comigo, com a minha mãe, com o meu irmão, com o meu pai e com o meu cão. E agora? O meu pai não vai estar? O meu pai nunca mais se vai sentar no sofá dele? Nunca mais vou vê-lo a vir dar-me um beijinho à noite… [Silêncio] Essa pessoa nunca mais volta. Há muita coisa que passa e que molda a minha vida para sempre. A partir do momento em que o meu pai morreu, passei a dar o dobro ou o triplo do valor à minha mãe e às pessoas de quem gosto. As pessoas de quem gosto de coração, tento sempre mantê-las por perto. Não sabemos o dia de amanhã. Foi isso que aprendi, quando ele morreu. Ensinou-me a dar mais valor à vida e à minha vida. A ser feliz enquanto cá estou, a ser sonhadora como ele era. Ele era um sonhador e, por isso, é que era feliz. É como eu! Estou muito feliz e a pessoa que me apoia mais hoje em dia é o meu namorado (Nuno Carnaxide). Estamos juntos há dois anos e tenho a certeza que vou estar com ele durante muitos mais. Gostava imenso que o meu pai o tivesse conhecido. Era um marco importante na minha vida, saber que o meu pai vai conhecer a pessoa com que eu vou ficar e pretendo criar família.
O teu pai ia gostar dele?
O meu pai ia, sem dúvida, gostar muito dele. Muito mesmo! Eu sou muito parecida ao meu pai. Se calhar, também foi por isso que fiquei a gostar mais do Nuno.
Quando pensas nele, de que momentos te lembras? O que é que nunca se esquece?
Nunca esqueço o beijinho de boa noite… E do a minha princesinha…! O meu pai, com uma idade avançada, não sabia muito bem mexer em telefones, não sabia escrever mensagens, então deixava sempre voicemail. Quando ele me ligava, sabia que não era para atender, que ele ia deixar uma mensagem no voicemail. E ele sempre que me deixava uma mensagem começava minha princesinha…[Silêncio] Isso nunca me vou esquecer. Da voz dele a dizer isso e… do olhar. Sinceramente, do olhar. Porque ele tinha um olhar muito… quente. Muito… [Silêncio] de quem sabe que a vida vai acabar e, por isso, tem que estar aqui comigo o mais tempo possível e aproveitar.
Ele poderia supor que tu chegarias onde chegaste?
Sem dúvida. Sem dúvida! Costumávamos dizer que o meu irmão era feito para os bastidores e eu era feita para o palco. O meu pai dizia és uma estrela, nasceste para ser uma estrela e eu sempre senti isso. Eu sou uma estrela! Ele podia supor e de certeza que, onde quer que esteja, está a ver e está orgulhoso. Ele era uma estrela e eu segui um bocadinho o caminho dele. E sabia, tinha fé que eu chegasse longe. Estou a trabalhar para isso!
Peço desculpa e ter casado tão tarde e não vos acompanhar toda a vida. Peço apenas que de mim levem uma coisa, o respeito pelos outros e façam…
…da amizade uma bandeira e tratem muito bem a vossa mãe.
“Guardo essa entrevista que ele teve com o Herman muito bem, com muito carinho. Tenho esse vídeo, vejo-o muitas vezes e choro sempre”
Conheces estas palavras?
Sim… Conheço bem! Guardo essa entrevista que ele teve com o Herman muito bem, com muito carinho. Tenho esse vídeo, vejo-o muitas vezes e choro sempre. Tinha um mês, tinha acabado de nascer e ele… O meu pai, ao mesmo tempo que eu nasço, vê a vida dele toda. O que fez, o que não fez. A que deu valor, a que não deu valor. E agora tem dois filhos… E agora sente a fatalidade que é a vida. Tenho essa entrevista marcada, porque olho para os olhos dele enquanto ele diz essas palavras e… [Silêncio] Vejo tristeza por não estar cá mais tempo. Por querer acompanhar-nos, mas saber que não é possível, não será sempre possível. Não vejo culpa por ter sido pai tarde, fez a vida da maneira como fez. Como todos queremos fazer a vida como nós queremos. Mas sinto tristeza no olhar dele… e reconheço essas palavras! Façam da amizade uma bandeira. Sem dúvida! Os meus amigos são meus amigos, são mesmo… E tratem muito bem a vossa mãe que é uma coisa que tento honrar sempre, todos os dias. Esse texto define bastante como é que o meu pai era. Apaixonado pela vida, apaixonado pela minha mãe. Ele dizia sempre que teve duas vidas, a vida de artista e a vida depois de casar e ter filhos.
O que é que gostavas de lhe ter dito, que nunca disseste?
Gostava de lhe ter dito mais vezes que gostava muito dele. Eu disse, muitas vezes, mas parece que nunca é suficiente. Ele esteve dois dias em coma. Teve um AVC e ficou em morte cerebral, mas esteve dois dias em coma, até que o cérebro mandasse os órgãos pararem. Tive oportunidade de me despedir dele. E é a dúvida. Está morto? Não está morto? O que diz a fé? O que diz a medicina? Para mim, acredito que ele estava a ouvir. Não estava morto, estava ali. [Silêncio] Tive oportunidade de me despedir dele e dizer o que sentia… Não tenho remorso. Disse-lhe sempre tudo. Mas nunca estamos preparados para perder e… gostava de lhe ter dito mais vezes que gostava muito dele [emociona-se] Mas disse! Espero que ele tenha ouvido e que tenha partido em paz.
Ele esperou por ti?
Acho que sim, acho que também teve um bocadinho disso, porque esteve pouco tempo em coma, foram dois dias… [Silêncio] As únicas coisas que lhe disse naquele momento foi que o amava bastante e que ia ter muitas saudades mas que… [Respira fundo] que nós íamos ficar bem e que ele podia ir, porque a vida é assim. [Sorri]
O que é que lhe dizias mais vezes?
Que gostava muito dele, dizia-lhe todos os dias, quase todos os dias. Sempre! O meu pai fazia questão de, antes de dormir, dar um beijinho a mim e ao meu irmão. Ia ao quarto dar um beijinho e dizer boa noite. Sempre que ele me dava esse beijinho, eu dizia beijinho pai, gosto muito de si. Sempre, todas as noites. [Emociona-se] Não porque se torne uma coisa banal, porque é verdade e porque tem de ser. Acho que ao meu namorado, à minha mãe e ao meu irmão vou sempre dizer que gosto muito deles, porque nunca sabemos o dia de amanhã.
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular “Técnicas Redactoriais”, no ano letivo 2014-2015, na Universidade Autónoma de Lisboa.