Nem sempre a informação esteve à distância de um clique. Em plena década de 60 do século XX, numa pequena aldeia no centro de Portugal, eram poucas as pessoas que sabiam o que acontecia no resto do país e além-fronteiras. Esta é a história de um homem que, fruto da sua criatividade, persistência e inovação, conseguiu colocar a sua aldeia a ouvir rádio pela primeira vez.
Manuel Lúcio nasceu nos anos 30 do século XX, na união de freguesias do Landal, uma zona rural entre Rio Maior e Caldas da Rainha, junto à serra de Todo o Mundo. Os pais trabalhavam na agricultura, como grande parte dos habitantes da região, e não demorou até que, também ele, começasse a exercer nos campos. Mas era um “engenhocas” e interessado por tecnologias, quando não estava na labuta ou na escola. “A minha mãe não queria que eu ficasse a trabalhar nos campos e, por meio de uns senhores que ela conhecia de Lisboa, arranjou-me um trabalho na cidade.”
Aos 23 anos, ruma à grande capital. O próprio admite que era para se ter mudado mais cedo, mas quis ajudar os pais no campo durante o tempo que pôde. Chegado a Lisboa, vai trabalhar para uma loja de eletrodomésticos, a Dinâmica, na Rua de S. Bento, onde ficou a viver num quarto. Estava finalmente num meio inovador e empreendedor, ao encontro da sua identidade. “O meu trabalho não era só vender”, recorda. “As máquinas, mas fazer aquilo que muitas empresas já não se encarregam hoje: a instalação, e caso necessário, a reparação.”
Rádios de Galena
Entre montagens de aparelhos e subidas a telhados para alinhar antenas, o interesse de Manuel pela área renascia a cada dia. Decidiu tirar um curso de rádio e televisão, por correspondência, na Rádio Escola Álvaro Torrão, onde aprofundou conhecimentos, aprendendo também como fazer os seus próprios rádios. Foi assim que começou a construir “rádios de galena”, nome derivado do mineral utilizado, que, por ser rico em sulfeto de chumbo, permitia criar um aparelho sem recurso a energia elétrica. “Nunca trabalhei numa oficina de rádio, sempre fiz isto por gosto”, salienta, afirmando ainda que os “rádios de galena” até eram as mais simples de fazer. Construía-os não só por curiosidade, mas também para “mostrar serviço” à Rádio Escola que frequentava.
Nas ocasiões que visitava a “terra natal”, muitas pessoas perguntavam-se o que andava Manuel a fazer na grande Lisboa. Com o que é que se ocupava. Afinal de contas, quando aparecia para visitar os pais, passava os dias a enrolar fios nuns tubos de linha finíssimos. A resposta chegou mais tarde, quando numa das visitas improvisou uma antena que, através de um fio, ligou à casa da sua avó Cândida, nos Amiais, uma das aldeias da união de freguesias do Landal. Após unir o fio à rádio, o aparelho fez soar músicas e pessoas a falar. A Emissora Nacional fazia-se ouvir pela primeira vez nas terras do Landal e os habitantes não esconderam o entusiasmo.
“A intenção nem era que todos ouvissem, mas ele punha aquilo muito alto!”, admite a mulher de Manuel, Juvenália, que conheceu após a sua mudança para Lisboa. Apesar das limitações iniciais da máquina, Manuel foi aprimorando o aparelho, para que se pudessem ouvir outras estações e aumentar o volume. A seu tempo, a casa da avó Cândida foi-se tornando num ponto de encontro para as pessoas que queriam ouvir rádio. Algumas chegavam a vir de terras vizinhas, motivadas pela curiosidade, encantamento e até desconfiança daquele emaranhado de fios dentro de uma pequena caixa de madeira que conseguia fazer som.
José Manuel da Paz, presidente da direção do Centro de Desenvolvimento Comunitário do Landal, recorda outra característica do aparelho. “Além do gosto pela rádio, o Manuel também gostava muito de trabalhar com barro, tanto que nas primeiras ‘galenas’ os botões eram feitos de barro!”
Durante anos, a “Rádio do Manel” atraiu imensas pessoas que ouviam os mais variados programas, como as notícias, a hora do terço e o programa “A Hora da Saudade”, voz dos soldados que combatiam na Guerra do Ultramar. Até a energia elétrica chegar à aldeia, era daquela pequena caixa de madeira que saía grande parte do conhecimento da população local.
Para imortalizar a presença do engenho na localidade, Manuel doou a rádio ao Raízes, Museu Rural do Landal, em 2001, onde está exposta até hoje. Este museu, que é parte integrante do Centro de Desenvolvimento, coleciona grande parte da história da região, tendo em posse os mais diversos utensílios que eram comuns neste meio rural.
A vida de Manuel
Manuel esteve na Dinâmica até esta fechar portas em 1996, contabilizando 35 anos de serviço. Após o encerramento da loja, fez alguns “trabalhinhos” como eletricista, pois detinha carteira da profissão. O filho refresca a memória do pai, afirmando que este “ainda ajudou na montagem da EXPO 98 e na construção de alguns centros comerciais”. Juvenália revela ainda que o marido costumava montar vários sistemas elétricos para as festas de Lisboa, como os Santos Populares. “Gosto e vontade de trabalhar nunca lhe faltaram”, confessando que os colegas até se aproveitavam disso. “Muitas vezes lá ia ele a carregar tudo sozinho e os colegas a ver.”
Atualmente reformado, Manuel continua na região da Grande Lisboa, residindo em Santo António dos Cavaleiros, no concelho de Loures. Aos 85 anos, relembra com saudade as idas à terra durante os fins de semana, assim como todos os seus engenhos. Admite que, apesar da memória fraca devido à idade avançada, essas são coisas que nunca vai esquecer. No Landal, os mais velhos também não esquecem Manuel Lúcio, que deixou marca na história da localidade.