Cinco homens, camaradas, barreirenses. Cinco histórias diferentes, uma reportagem. Um confronto com o passado, ainda muito presente. A importância de relembrar os que lutaram contra o fascismo. Ainda existe preconceito em ser comunista? Sim. Como existe lealdade a um partido centenário: a batalha de um é a guerra de todos.
Sábado, 11 de dezembro, 10:45h, 13º graus. A sede do Partido Comunista do Barreiro está praticamente vazia porque aqui perto ocorre um comício. Enquanto se espera, ouve-se “Conta-me histórias” dos Xutos & Pontapés. Parece que tudo está alinhado. Ao som desta música, canta de forma vibrante o cozinheiro que, entretido na copa, prepara o almoço para o pós-comício. O cheiro a comida é notável. O vermelho é a cor dominante de qualquer espaço, bem como os cravos de plástico tão resistentes quanto o partido.
Acaba de chegar da 3ª dose da vacina contra a COVID-19 Carlos Maurício, militante de 79 anos, engenheiro eletrotécnico, atualmente aposentado. Cumprimentam-se os camaradas à porta do partido e seguem por um corredor desarrumado, onde prevalece o retrato em grandes dimensões de Álvaro Cunhal. Gravado na parede: “PCP partido da verdade, da esperança, do futuro”
À direita, uma sala com uma estante de metal com imensos livros empilhados. Ao centro, uma mesa-redonda cheia de papéis, quase como se não tivessem tido tempo para a preparar. E começa a longa conversa.
O camarada Carlos Maurício afirma que foram as consequentes manifestações, greves e diferentes formas de repressão que o trouxeram ao partido. Que foi elemento ativo nos movimentos da associação académica e do cineclube do Barreiro, que tinham como objetivo o esclarecimento da população, ainda que de forma clandestina.
Na voz de quem nasceu e cresceu no Barreiro, conta que, em tempos, a maior característica desta cidade era a classe operária, muitas vezes perseguida. De forma a evitar qualquer tipo de manifestação, a Guarda Nacional Republicana viu-se obrigada a entrar na CUF para mostrar à população uma posição de domínio.
Nos dias seguintes ao 25 de abril de 1974, foi proposto um grupo composto por 19 elementos, um deles Carlos Maurício, para a comissão administrativa da câmara, que tinha como objetivo a democratização. Existiam preocupações como a poluição e a anarquia da construção. A partir desse momento, criaram-se comissões de moradores e fiscalização do meio ambiente.
“E mais: há membros do partido que têm algum receio em afirmar-se!”
A conversa alonga-se de tal forma que são 12:20h e o camarada José Paleta de 73 anos, em tom de brincadeira, pergunta a Carlos Maurício: “Queres o tempo de antena todo para ti?” Trocam-se gargalhadas e volta-se para a mesma sala. Como ex-operário e neste momento reformado, conta que o seu patrão era o homem que o explorava e que se apropriava das mais-valias que criava. Emocionado, refere que fez serviço militar no Hospital da Estrela, onde se revoltava por ver jovens que ficavam sem membros, sem visão e até sem vida por causa da Guerra Colonial. Afirma que no Barreiro, antes do 25 de abril, já existiam alguns movimentos de jovens contra a guerra.
De forma orgulhosa, diz que fez parte da grande manifestação de alegria no Barreiro, em que mais de 10.000 habitantes saíram à rua para vitoriarem as forças armadas, um dia que viria a fazer parte da história de Portugal. “O hino nacional entoava vibrantemente nas ruas.” Descreve o momento como festivo, mas ao mesmo tempo como um momento de tensão e de perseguição da PIDE. Um clima de vingança. Um momento de loucura, ruas cheias de pessoas, de carros e todos os estabelecimentos fechados. O Barreiro saiu à rua em peso, num exercício de direito que as forças fascistas reprimiam.
Mas ainda haverá preconceito em alguém se assumir comunista? José Paleta responde sem hesitar: “Eu acho que existe. E mais: há membros do partido que têm algum receio em afirmar-se! Porque a pressão é muito grande…”
“Havia malta que trazia ao pescoço dedos de alguém que tinha assassinado…”
Após o almoço, há algum movimento dentro do partido e um forte cheiro a tabaco sobrepõe-se ao da comida, quase irrespirável, muito pelo sufoco da máscara. Às 15:00h chega Carlos Humberto, 70 anos, atualmente 1º secretário da Área Metropolitana de Lisboa. Desta vez, a mesma sala já está completamente organizada e pronta para receber o antigo presidente da Câmara Municipal do Barreiro. Em cima da mesa-redonda, desta vez já sem papéis, a bandeira do PCP. Começa por contar que, com muita pena, não esteve presente na grande manifestação de alegria no dia 25 de abril de 1974, porque foi um de muitos a ser destacado para estar na Guerra Colonial em Moçambique. “Nós vivíamos num país pobre, mas ali a pobreza era ainda pior.” Carlos Humberto relembra, ainda com algum choque, as atrocidades que ouvia e via enquanto militar: “Havia malta que trazia ao pescoço dedos de alguém que tinha assassinado…”
Recorda que acabou por casar por procuração, em 1973, por estar em Moçambique e entre risos afirma: “Só soube que tinha casado uns dias depois!”
Entra na mesma sala de forma apressada o camarada Júlio Dias, aposentado de 70 anos. Militante desde 1970, diz que “em Portugal tinha ligações ao partido e a nossa função como militantes era divulgar e condenar a Guerra Colonial, através da distribuição de panfletos nos quarteis”.
O seu 25 de abril de 1974 foi em diferido porque estava como militar destacado na Guerra Colonial em Angola, onde acabou por ser castigado, porque a PIDE descobriu que tinha ligações à oposição. Nesse momento, foi obrigado a deixar a sua especialidade, encriptação de mensagens, passando para atirador operacional, ou seja, frente de guerra. “Foi aí que tive o primeiro contacto com a realidade: a morte de companheiros.” Emocionado conta o quão difícil era ser militar e comunista. No final da conversa, Júlio Dias afirma que grande parte dos preconceitos em ser comunista surgem porque “os meios de comunicação social não são independentes, são grupos económicos!”
“Fui escravo no Alentejo, tirei o 4º ano e no dia seguinte fui guardar ovelhas descalço…”
Ao fim da tarde, o sol punha-se rapidamente e é então que chega o camarada João Raio, 76 anos, antigo presidente da Junta de Freguesia de Santo André. Começa por dizer com grande humildade: “Fui escravo no Alentejo, tirei o 4ºano e no dia seguinte fui guardar ovelhas descalço, passei por trabalhos agrícolas até aos meus 16 anos.”
Diz, sem hesitar, que ingressou no Partido Comunista porque “era a única organização política que defendia os descamisados, os mais necessitados, os menos bafejados pela sorte… porque também pertenço a essa classe de pé descalço”. Recorda que o 25 de abril 1974 foi dos dias mais felizes da sua vida, viveu-o com emoção nas ruas do Barreiro, terra que o acolheu de braços abertos.
“A partir do momento em que comecei a guardar ovelhas descalço e a passar fome, açorda de manhã, grão ao meio-dia e açorda à noite, Cristo abandonou-me!” E o PCP mudou-lhe a vida.