Aideia de fim – ou mesmo de fim último – fez uma alegre caminhada ao longo de milénios. Fosse nos “Livros” que se pretendiam revelatórios, fosse nos mais diversos domínios agnósticos. Na cultura contemporânea (divirto-me quando a intitulo por “mundo-pós-pós”), esse modelo linear, que liga as visões de uma origem única ao seu termo, parece hoje, no mínimo, encoberta por uma névoa bastante espessa.
Em primeiro lugar, porque a rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a metempsicose platónica às redenções do Ganges com um tipo de instantaneidade que hoje brilha de modo natural no instinto das nossas crianças. Em segundo lugar, porque a febre da actualização (o deslumbre do ‘refresh on-off’) já se tornou numa aprendizagem que nos diz que um corpo só é de facto um corpo, se estiver sempre conectado com a rede.
Esta reinvenção da vida que se baseia no ‘update’ permanente afasta-nos das tradições melancólicas, pois passamos o tempo a nadar nas vagas do presente como se nada mais existisse. A tradição da melancolia sempre se associou a um tipo de “História” – ou a um conjunto de narrativas –, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. Contudo, nas últimas décadas, esse tipo de narrativas estáticas – que me educaram na escola e fora dela – foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua territorialidade imperial.
A supremacia do ‘Agora’ passou a governar todas as novas melancolias, convertendo-as numa doce ansiedade que apenas se conforma ao teclar ou ao deslizar com o dedo sobre os ecrãs. Já não existe hoje a melancolia que se estruturava em objectos fixos (na Carta medieval do Pseudo-Hipócrates, a bílis era ainda o humor da melancolia), tendo esta dado origem a uma outra que se dilui na exaltação das interacções e na acelerada ‘desreferenciação’ da vida e do quotidiano.
Quando penso neste tipo de efeitos que decorrem da nossa ininterrupta ligação à rede, ocorre-me quase sempre Maurice Blanchot, no momento em que, possuído por uma espécie de desespero apocalíptico, se pôs a imaginar o último escritor sobre a terra (o autor referia-se ao escritor, enquanto figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre nas arenas do espaço público). Quase no final de Le livre à venir (Gallimard, 1959), Blanchot colocou em cena a morte do último escritor e questionou, alarmado: o que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, era clara: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases de que me lembro muitas vezes.
A reflexão de Blanchot é logo a seguir invadida por um vaticínio dramático, já que, com a morte do último escritor, apareceria “um novo ruído” com a função de nos anunciar ‘a era da não palavra’ (“l´ère sans parole”). Este novo ruído passaria a ouvir-se para sempre, transformando-se num vazio que fala (“un vide qui parle”). Um vazio insistente, indiferente, sem segredos, capaz de isolar os homens; capaz mesmo de separá-los de si mesmos e de os conduzir a labirintos ínvios e sem fim. Este “terrível” ruído, espécie de recriação da música com apelo disfórico, teria uma natureza estranha (“l´etrangeté de cette parole”) e basear-se-ia na mais pura simulação. Se parecia querer comunicar-nos qualquer coisa concreta, essa “palavra” estaria antes a convidar-nos ao nada, ou seja, ao paraíso da angústia pura, território desapossado de passado onde, como é natural, não há sequer lugar para um olhar melancólico.
Blanchot reviu nesta metáfora da ‘palavra-ruído’ algo que escaparia à intimidade e ao ânimo, como se tivesse sido criado expressamente para os operários-autómatos a que Fritz Lang deu corpo no seu magistral ‘Metropolis’. Uma “palavra” que, ao fim e ao cabo, subtrairia a humanidade ao essencial pois só sobreviveria se estivesse ligada a uma máquina. Uma “palavra” fantasmática e em forma de vírus – continuava Blanchot já no penúltimo capítulo do livro (capítulo IV) – que seria “essencialmente errante”, manipuladora e exterior (“toujours au-dehors”), ao contrário, por exemplo, do fulgor do monólogo interior que seria movido a partir de um centro irradiador.
Apesar de se poder hoje escarnecer desta metáfora de Blanchot, ela contém em si uma premonição interessantíssima do mundo da rede. Ao ‘actualizarmos por actualizar’, a todo o momento, removemos o que antes aconteceu e, a pouco e pouco, apagamos a memória sem sequer darmos por isso; ao entregarmo-nos minuto a minuto aos nossos terminais, prendemos a mente a esse gesto e o próprio rosto torna-se num diagrama que declina e que se assume em estado de dependência.
Relembro que este livro de Blanchot, baseado no mais puro questionamento metafórico-literário, saiu a público curiosamente na mesma altura em que, no campo da ciência, duas teorias – que viriam a ser importantes para uma história da internet – se tornaram conhecidas: a teoria dos grafos aleatórios de Paul Erdos e Alfréd Rényi e a teoria da interacção simbiótica homem-computador de Joseph Licklider. A coincidência fala por si.