Contra o oculto, o tempo e o silêncio, alguns jornalistas encontram a sua missão de informar naquela que é considerada “a forma superior de jornalismo”: a investigação. Com persistência e sem medos, encaram a procura pela verdade como um desafio maior, desvendando o que a cortina de fumo esconde, atrás da democracia.
Guardião da verdade dentro das sociedades democráticas, o jornalismo tem-se revelado um marco incontornável no acesso ao conhecimento. Como afirmou o Prémio Nobel da Literatura Gabriel García Márquez, que considerava a profissão o melhor ofício de mundo, “o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade”. Pretende ser espelho do mundo, uma vez que, seguindo o Código Deontológico, os profissionais assumem a responsabilidade de difundir, com rigor e exatidão, conteúdos verdadeiros que sejam necessários para uma sociedade mais informada e mais ativa democraticamente.
Na mais profunda essência do que é a profissão de informar, o chamado jornalismo de investigação, que precisa de tempo e entrega a um tema, assunto ou história a revelar, tem, no entanto, desaparecido das páginas de imprensa diária, meios online e rádio por falta de meios financeiros, mas tem conquistado espaço na televisão, onde as audiências mais alargadas ainda tornam possível o investimento. Apesar de ser um processo transversal ao trabalho jornalístico na generalidade, visto que qualquer forma de jornalismo exige uma pesquisa original e conhecimento prévio antes de ser transformado em conteúdo noticiável, a investigação assume um maior impacto quando se trata de desvendar verdades incómodas. Como refere Pedro Coelho, jornalista de grande reportagem da SIC, “se um tema está oculto, é porque alguém quer à força que ele se mantenha assim”.
Michael Rezendes, jornalista com ascendência portuguesa que integrou a equipa Spotlight, a divisão de investigação do diário norte-americano The Boston Globe, lembra, contudo, que “todo o jornalismo deve ser de investigação. O jornalista deve fazer perguntas, desafiar e confirmar a versão oficial dos eventos. Tem a função de pressionar pela verdade ou pela história por trás da história”. Já o grande repórter da SIC classifica a investigação como “uma forma superior de jornalismo, no sentido em que é mais minucioso e com um grau de prova mais elevado. É um trabalho de levantar as pedras”.
Sandra Felgueiras, a jornalista que conduz o espaço semanal de reportagem “Sexta às 9” no canal RTP, sublinha que “ao apurar e desvendar as verdades escondidas, em prol do interesse público, a investigação jornalística consegue provocar mudanças. Nessa medida, é o quarto poder”, acrescentando que “o jornalismo de investigação não existe para ter poder, mas para contar a verdade. Não é um meio para atingir um fim. É um fim em si mesmo”.
Imparcialidade sim, neutralidade não
Ao aprofundar casos de carácter sensível, durante o processo de investigação, há a descoberta de lesados, que são, muitas vezes, vítimas das irregularidades praticadas. Nessa circunstância, a imparcialidade, um dos desígnios profissionais, volta a estar em cima da mesa. “É muito difícil definir imparcialidade. Eu faço um esforço porque é a minha obrigação, mas não sou totalmente imparcial. Sou refém da minha própria história e contexto e não dá para me libertar deles”, afirma Pedro Coelho.
Já a neutralidade, por vezes equiparado à imparcialidade, para muitos, não existe no jornalismo. Como afirmou a jornalista da CNN, Christiane Amanpour, num vídeo promocional para o canal, “insisto em ser verdadeira, não neutra”. De facto, a neutralidade assume-se como a impossibilidade de tratar de igual forma e oferecer o mesmo “tempo de antena” aos dois lados da história. Numa investigação, cabe ao jornalista destapar o pano do desconhecido, permitindo que as ‘vítimas’ tenham uma oportunidade e voz para agir contra às falhas praticadas, sem nunca se acusar ou culpar os suspeitos, mas sim apresentar os factos.
A necessidade de o jornalista se manter equidistante da história que está a trabalhar, de modo a que a verdade seja a meta a chegar, é um dos desígnios que norteiam o jornalismo. “Relatar os factos com rigor e exatidão”, como evidencia o Código Deontológico dos Jornalistas, só é possível com objetividade, mas, “a objetividade é inalcançável. Não se consegue ser objetivo e neutro”, frisa Pedro Coelho. Por outro lado, Michael Rezendes e Sandra Felgueiras assumem uma diferente posição. “Todo o jornalismo requere imparcialidade”, admite Rezendes, visto que “só é possível ser-se jornalista se se for 100% imparcial. Não há meio termo”, completa a jornalista da RTP.
Contra a imediaticidade
Contrariamente ao jornalismo diário, o jornalismo de investigação não é imediato. Ao se desenvolver por meio de pesquisa, planos e entrevistas, a investigação requer um maior tempo de desenvolvimento, de modo a que “a prova seja à prova de bala”, alude Pedro Coelho. Como realçou o jornalista e autor David Randall, “a investigação começa no ponto em que a ação quotidiana para”.
Por pressão do tempo do fecho dos jornais diários ou da imediaticidade do online, a fronteira com a investigação faz-se com a necessidade de aprofundar temas que, à partida, não seriam trabalhados com mais detalhe, por falta de tempo. Sandra Felgueiras admite que “o jornalismo diário raramente alcança as verdades escondidas porque não tem tempo para esperar, ganhando, neste sentido, o jornalismo de investigação um lugar para o fazer”.
Individual ou em equipa, a proatividade e organização tornam-se lemas fundamentais para regular o tempo de uma investigação que pode levar meses a ser concretizada e, consequentemente, publicada. Para Michael Rezendes, “trabalhar em equipa, por vezes, é mais produtivo. Mas também há momentos em que um jornalista de investigação, ao trabalhar sozinho e com um bom editor, torna tudo, igualmente, eficaz”.
À falta de tempo e de recursos humanos, alia-se os meios financeiros. O tempo – que é dinheiro – torna-se um dos principais obstáculos ao jornalismo de profundidade. Sem garantias de resultados, a investigação exige tempo que a imediaticidade não permite, sendo, por essa razão, uma forma de jornalismo que tem merecido o desinvestistmento nas redações. Michael Rezendes defende, no entanto, que “o jornalismo de investigação compensa economicamente com a publicação de histórias que se distinguem”. São peças exclusivas que, como acrescenta Pedro Coelho, “outro órgão de comunicação não tem, uma vez que a qualidade gera receitas”.
Credibilidade para o acesso às fontes
O repórter da SIC admite que “o património do jornalista é a sua credibilidade”. Nesse caminho, a credibilidade torna-se um fator de destaque, mesmo quando é necessário confrontar as fontes. “Algumas pessoas assuntam-se e pensam: ‘Se é este jornalista, é melhor ter cuidado para não esconder nada’. No entanto, há vezes em que fogem para tentar não falar com ‘aquele’ jornalista porque ser quem é”, confessa.
Ao seguir o rasto a um elevado número de documentos e com acesso a inúmeras fontes fidedignas, o jornalista inclui um elevado grau de detalhe através do desenvolvimento das suas hipóteses e pesquisas, uma vez que o principal objetivo é verificar se o rumor é, efetivamente, a realidade. “O jornalista vai consolidando a sua ‘marca’. Quem denuncia, confia no jornalista e quer que seja ele a investigar aquele assunto sensível porque sabe que vai levá-lo até ao fim”, reconhece Pedro Coelho, vencedor de dois prémios Gazeta do Jornalismo. E, nesse momento, “o sentimento é de dever cumprido. O trabalho só se renova quando somos merecedores da confiança daqueles que nos seguem”, alude Sandra Felgueiras.
Ao suportar os factos em on ou off the record, as fontes são cruciais. “O jornalista de investigação não se rende à limitação imposta pelas fontes oficiais”, refere Pedro Coelho. De olhos abertos, com desconfiança e o sentimento de verdade sempre presente, o jornalista deve “ouvir todos os protagonistas e até os secundários”, refere Sandra Felgueiras.
Além das denúncias, Pedro Coelho acrescenta uma outra possibilidade na procura pela investigação. “Pode-se estar a trabalhar num determinado tema e, de repente, perceber que aquilo tem outra história por trás”, explica. Nestas situações, cabe ao jornalista encontrar as suas próprias fontes, com o propósito de se conectar com elas para o auxílio da investigação. Ao descortinar o tema, o jornalista transforma a sua suspeita na procura pela verdade. “Desde que se diga a verdade de forma séria e bem fundamentada, só se granjeia respeito”, completa a repórter do “Sexta às 9”.
De Watergate a Luanda Leaks
O poder do jornalismo de investigação, na procura pela verdade, não é recente. Considerado um dos primeiros casos de referência do jornalismo de investigação, Watergate foi o escândalo político de corrupção, que ocorreu em 1974, nos Estados Unidos da América, e que conduziu à renúncia do Presidente Richard Nixon, fruto do trabalho de investigação dos jornalistas do The Washington Post, Carl Bernstein e Bob Woodward. O caso foi adaptado para o cinema e é um dos filmes de referência dos cursos superiores de Jornalismo. Para além de representar a força da investigação periodística, este caso representa ainda a liberdade de imprensa e de expressão, embora, atualmente, Sandra Felgueiras reconheça que “há ainda muitas pessoas que desconhecem que a liberdade de expressão é um direito porque existe muito medo da exposição pública”.
A este símbolo do jornalismo de investigação alia-se outros tantos, como é o caso de Michael Rezendes e outros três jornalistas da equipa do The Boston Globe. Em 2001, a equipa designada por “Spotlight” desafiou o poder da Igreja na cidade, denunciando casos de abusos sexuais de crianças por parte dos padres da Igreja Católica. O sucesso da investigação, que deu origem ao filme vencedor de dois Óscares, O Caso Spotlight, possibilitou que Rezendes e a equipa continuassem a investigar mais casos. “A partir desse caso, foi fácil encontrar outros tantos. Pesquisávamos as histórias que tinham um maior impacto ou que criassem a mudança positiva de maior alcance e encontrávamos”, adianta o jornalista.
Já em 2016, pela mão de jornalistas de todo o mundo, pertencentes ao Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação, o caso Panama Papers voltou a evidenciar a importância do jornalismo de investigação. Ao expor 11,5 milhões de documentos internos da firma de advogados Mossack Fonseca, sediada no Panamá, sobre sociedades criadas em “offshore” e sistemas de corrupção, o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação (ICIJ), fundado em 1997, manteve o seu papel de referência na procura pela verdade.
Composto por cerca de 190 jornalistas, de mais de 65 países, na colaboração conjunta com o objetivo de desvendar casos de profunda investigação, o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação foi também o autor do mais recente caso Luanda Leaks. Resultado da pesquisa desenvolvida por 37 meios de comunicação internacionais de 20 países, o ICIJ revelou os esquemas de Isabel dos Santos através das ligações privilegiadas ao Estado angolano, na acumulação da sua fortuna de mais de dois mil milhões de euros.
Este e outros casos desvendados comprovam a necessidade do jornalismo de investigação nas sociedades democráticas, “na busca dos factos e da verdade, acima de tudo”, como refere Pedro Coelho.
A investigação em Portugal
Para os dois jornalistas portugueses Sandra Felgueiras e Pedro Coelho, investigar algo que é “inconveniente” já faz parte do trabalho diário e da vida de ambos. Com grande quantidade de informação e denúncias que chegam de várias fontes e formas aos jornalistas, o jornalismo de investigação em Portugal tem conquistado mais visibilidade graças aos espaços de investigação nos canais de televisão.
Pedro Coelho, na “Grande Reportagem” da SIC, revela o que está invisível, como é o caso das investigações relativas a lavagens de dinheiro e fraudes. “Qualquer ato social tem sempre consequências. O mesmo acontece com as investigações”, conta. Já Sandra Felgueiras, no “Sexta às 9”, da RTP, desenvolve, juntamente com a sua equipa, investigações profundas, com o sentimento de serviço público, num órgão de informação que diz ser “absolutamente livre e independente”. Como reforça: “Não será por acaso que é o único canal que tem um programa de investigação no ar há mais de oito anos consecutivos.”
A jornalista revela que “há dificuldades em fazer investigações, que se prendem, sobretudo, com os lobbies e o corporativismo” E acusa: “Coloca obstáculos a toda a hora. Mas também à falta de cultura democrática.”
Sobre a liberdade para investigar e publicar, os dois repórteres apresentam opiniões complementares. Em Portugal e, de acordo com o artigo 38 da Constituição da República Portuguesa, “é garantida a liberdade de imprensa”, que implica “a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores”.
Sandra Felgueiras admite a garantia da liberdade de expressão e de informação, mas defende “existir muita autocensura. Há cada vez mais jornalistas que preferem a qualidade de vida à investigação e, por isso, seguem o trilho mais fácil: não apoquentar aqueles que têm poder e podem arranjar-lhes problemas”. Na publicação de determinadas matérias, pode, como destaca Pedro Coelho, “haver choques entre os interesses da empresa, mesmo com a vontade do jornalista pendente”. No entanto, o repórter acrescenta que “se a prova for verdadeiramente sólida e o jornalista conseguir mostrar ao editor isso, a decisão de não publicar é perigosa. Se não se revelar uma matéria que é, de facto, muito relevante, outro órgão vai publicar. Se a prova é boa, é inevitável que a história seja divulgada”.
Do sucesso das investigações que ambos têm desenvolvido desde 2012 e da consequente exposição mediática, podem surgir perigos na vida pessoal. Sandra Felgueiras confessa que fazer jornalismo de investigação implica riscos. “Mas não podemos viver reféns do medo.” O mesmo reconhece Pedro Coelho, que considera que “os jornalistas de televisão ficam mais desprotegidos porque o grau de exposição é muito maior”. Como assume o repórter da SIC: “Se estamos a mexer com poderes instalados, isso pode trazer consequências. Mas num país livre, como é o caso de Portugal, onde há liberdade de expressão, fazer algo contra um jornalista de investigação dá demasiado nas vistas. Mas pode acontecer, obviamente.”
Persistência, coragem e curiosidade são as três palavras-chave que traduzem o perfil do jornalista de investigação. De acordo com Comité Internacional para a Proteção dos Jornalistas, desde 1992 até ao início de 2020, 391 jornalistas repórteres que cobriam as áreas da corrupção, crimes e política foram mortos, sobretudo, no México, Iraque e Paquistão. Os dados revelam que para reportar o que está desconhecido, os jornalistas ultrapassam as fronteiras do perigo, ao serviço da mais nobre missão de informar e servir a “forma superior de jornalismo”.