A pandemia Covid-19 afastou os clientes do seu estúdio, na Zona Norte do Rio de Janeiro, mas nem a crise nem o facto de ser portador de diabetes tipo 2 desmoralizam o tatuador Ricardo Marinho, que procura uma forma de reabrir um negócio que abraçou há 10 anos e no qual o contacto físico não pode mesmo ser evitado.
Com o estúdio fechado neste momento, como tem sido a procura pelo seu trabalho durante a pandemia? Existe quem queira tatuar agora ou quem já busque marcar horários para o futuro?
Sempre tem alguém querendo tatuar, mas não tenho marcado ninguém para esses dias. Estou marcando pessoas para datas posteriores ao mês de junho. Infelizmente, as reservas financeiras vão acabando e é provável que eu precise marcar algum trabalho. Já que aqui no Brasil o comércio está parcialmente aberto e os mercados têm grande circulação, usando máscara, pretendo criar algum esquema para voltar a atender logo.
Você já tinha sentido a diminuição no número de clientes antes mesmo de ser decretado o isolamento? Quando decidiu interromper o trabalho?
Diminuiu sim, mas só pouco antes de ser decretado o confinamento. Pelo menos, meus clientes habituais são mais de remarcar do que de cancelar, então, só colocaram um pouco mais para frente as marcações. Já os clientes novos, alguns desistiram mesmo, mas foram poucos.
A situação da Covid-19 tem gerado uma grande incerteza económica, em muitos casos resultando em desemprego ou corte salarial. Sendo trabalhador independente, chegou a fazer algum planejamento neste sentido, antes do vírus chegar ao Brasil, para o caso de ter que parar sua atividade?
Planejamento sempre existiu, pelo menos para mim, pois o trabalho com arte no Brasil não é fácil. Creio que há uma fatia mínima de profissionais que conseguem se manter apenas com o que ganham com tatuagem, sem ter outra fonte de renda. Sempre tive reservas, desde novo, então não foi uma coisa que precisei fazer especificamente para esta situação atual. Mas, como disse, o dinheiro acaba, mesmo economizando.
“Os mais afetados são os trabalhadores autónomos, que ganham por produção, mas como vão produzir se a loja que vende a matéria-prima não abre?”
Existe um grande debate entre os que defendem o isolamento social e os que defendem a flexibilização das medidas de segurança, tendo como justificativa a manutenção da economia. O que você pensa sobre isso?
Tudo precisa ser levado em conta, tanto a parte financeira, quanto a parte saudável da coisa. Uma estratégia de rodízio de dias seria interessante ou um lado da rua funciona em um dia, outro não, e assim sucessivamente. Por outro lado, seria preciso a consciencialização das partes consumidoras para que saiam apenas com os equipamentos de proteção necessários para não contaminação e que evitem aglomerar. Os mais afetados são os trabalhadores autónomos, que ganham por produção, mas como vão produzir se a loja que vende a matéria-prima não abre? De todo modo, o Governo tem que pensar também em encontrar algumas soluções em relação às rendas dos estabelecimentos para quem teve que fechar durante esse tempo.
Tem diabetes tipo 2, um grupo de risco para o coronavírus. Quais as precauções que tem tomado?
Basicamente, não tenho saído de casa para coisas que não sejam extremamente necessárias. Quando saio, sempre levo uma bolsa a tiracolo com álcool 70% e uma máscara de tecido duplo, inclusive feita pela minha namorada, que tem vendido alguns pares, garantindo uma renda extra. Mas, acima de tudo, muito cuidado para não tocar em nada e manter o distanciamento social que foi instruído.
Como tem sido o contato com sua família e amigos? Está passando a quarentena sozinho?
Infelizmente, o contato com eles é somente por videochamada, Whatsapp ou telefone mesmo. Estou passando com minha namorada, pois moramos juntos.
O que você tem feito para se distrair?
Para distrair, trouxe o Playstation 4 para casa, pois ficava no estúdio, e comprei alguns jogos. Tenho desenhado e estudado desenho com mais calma, colocado projetos gráficos em dia. Basicamente, estou tentando manter uma rotina de trabalho. Faço algum exercício físico, estudo e produzo conteúdo de tatuagem para as minhas redes sociais, pois é uma forma de lembrar aos clientes que “ainda estou aqui”.
“Sinceramente, meus clientes gostam muito de tatuagem. Se tudo acabar logo, qualquer crise financeira que eu venha a ter vai acabar rápido.”
Disse que pensa em soluções para retornar ao trabalho, quais seriam elas?
Estou montando um esquema de segregação e rodízio no estúdio. Penso em atender apenas uma pessoa a cada dia e pulando um dia entre cada agendamento – tatuo alguém segunda-feira, terça-feira não e volto a trabalhar na quarta-feira. Como o estúdio sempre é limpo com critérios rigorosos, não muda nada na rotina lá dentro, a não ser a parte de transformar um lugar que cabem 10 pessoas, num lugar onde ficarão apenas duas.
Existem outros tatuadores trabalhando com você? Eles também pensam em voltar?
Trabalho com mais sete profissionais. Os outros artistas que fazem parte da equipe também poderiam marcar trabalhos, se quiserem, pois temos uma agenda compartilhada. Respeitando as regras: álcool em gel na entrada, cliente sempre com máscara e a tatuagem saindo de lá com curativo reforçado. Mesmo que todo cuidado seja pouco, acho que tendo atenção aos detalhes é possível voltar a trabalhar.
Mesmo com todo esse cuidado, sendo diabético, você não tem receio de voltar a trabalhar?
Receio existe, sim, mas voltar a trabalhar é uma coisa que não é discutível. Será necessário voltar e, quando isso for feito, medidas um pouco maiores de precaução serão tomadas para evitar qualquer tipo de contacto ou até mesmo “forçar” o uso da máscara e luva para clientes, assim como álcool para fazer a limpeza das mãos e braços. O medo existe, mas não tenho possibilidade de ficar parado por mais tempo.
Muito se fala nos efeitos a longo prazo desta pandemia. No geral, você acha que a procura pelo seu trabalho vai diminuir ou está confiante que, depois que a crise passar, os clientes vão voltar como antes?
Sinceramente, meus clientes gostam muito de tatuagem. Se tudo acabar logo, qualquer crise financeira que eu venha a ter vai acabar rápido. De qualquer forma, uma coisa é certa: tudo quanto for procedimento terá que ser mudado e praticado com muito mais cautela do que um dia foi. Estou preparado para isso.
Perfil do entrevistado
Afinal, o que é tatuar?
Nascido e criado na Zona Norte do Rio de Janeiro, Ricardo Marinho cresceu sabendo que, se não trabalhasse duro, nunca teria uma vida como o dos seus amigos de infância. Sua mãe trabalhava como empregada doméstica e seu pai como zelador do prédio em que viviam. Desde cedo, os dois lhe mostraram que, para ter dinheiro ou “ser alguém na vida”, era preciso ter estudo, premissa que tem guiado a sua vida desde então.
Mesmo tendo crescido numa época em que o hardcore e o skate estavam em alta na cidade, garante que tendo vivenciado de perto toda essa “rebeldia” durante sua adolescência sempre teve os pés no chão e que toda essa experiência pouco o influenciou a seguir o caminho da tatuagem. Antes, os desenhos animados, esses sim, foram sua grande fonte de inspiração. Embora tenha sido o primeiro de sua família a se interessar pelos caminhos da arte, as recordações de estar sentado em frente ao televisor ou lendo uma revista de banda desenhada em sua infância são lembranças que guarda com grande carinho, assim como seu primeiro desenho elogiado, o que lhe deu força e vontade para continuar desenhando e estudando novas técnicas.
Antes de ter coragem para se tornar tatuador a tempo inteiro e viver de arte, trabalhou em diversas profissões, como entregador, editor de vídeos, assistente administrativo… o que foi um fator importante para tomar a decisão de se focar somente nas tatuagens. Além disso, a ideia de ter um chefe cobrando, mais do que ele já se cobrava, também foi um ponto que pesou para ele entrar de cabeça no mundo da arte. A oportunidade de desenvolver mais a sua técnica, de abrir o seu próprio estúdio e saber que sua projeção (ou não) na profissão estariam somente em suas mãos, e não nas de mais ninguém, foram grandes incentivos para dar um passo adiante em sua carreira.
Fã de Art Nouveau e Surrealismo “quando preciso descolar minha mente do Mundo”, para ele tatuar não é apenas colocar tinta na pele de alguém e ganhar algum dinheiro. Afinal, o tatuador é como um psicólogo que, entre um traço e outro, ouve e dá conselhos aos seus clientes nas mais diferentes histórias que são contadas em cada nova sessão. E a soma disso tudo é que o faz amar este ofício.
As reações dos clientes ao verem sua tatuagem finalizada, a emoção de ver uma homenagem eternizada na pele, a constante presença de algo novo e surpreendente em cada novo cliente, a possibilidade de realizar todos os dias seu sonho de infância, desenhar o que seus olhos enxergam e, é claro, se divertir enquanto faz tudo isso… é como se não existisse uma separação entre o trabalho e seu prazer!