Chamam-lhe o “Príncipe do Bairro”. O futebolista Berto abre as portas do Barruncho, onde cresceu e se tornou, com orgulho, o homem que é hoje.
Às 11:30h em ponto de uma manhã cinzenta e na qual a chuva fez questão de espreitar, Hildeberto Pereira, conhecido no mundo do futebol por Berto, está junto à Escola Básica Carlos Paredes, na Póvoa de Santo Adrião. O jovem avançado do Vitória de Setúbal, de 23 anos, conhece aquela zona como poucos e, por isso, segue-se de carro por um caminho enlameado até se chegar à Azinhaga da Barruncho, um dos 13 bairros de lata que ainda subsistem na Área Metropolitana de Lisboa e que atualmente aloja perto de 90 famílias. Ali, Hildeberto Pereira, “Berto”, é como “um príncipe”.
“Orgulho-me de ter crescido aqui. Moro em Setúbal, mas tento vir cá duas vezes por semana, pelo menos, para descanso e recarregar as baterias”
Amigos do jogador e moradores do bairro recebem as “visitas” com sorrisos e os olhos brilham assim que percebem que um dos filhos voltou a casa. “Orgulho-me de ter crescido aqui. Moro em Setúbal, é verdade, mas tento vir cá duas vezes por semana, pelo menos, para descanso e recarregar as baterias. Depois, quando volto a casa, sinto-me sempre muito bem por ter tido a oportunidade de voltar cá e estar com aqueles de quem gosto”, diz Hildeberto Pereira, já sem se conseguir libertar dos abraços da sobrinha, Kelly, e do afilhado, Marley. Os dois pequenos fizeram questão de o acompanhar desde o início da viagem pelo Barruncho e, sempre que possível, mostravam que sabiam falar crioulo de Cabo Verde.
Crioulo é quase a “língua oficial”
O crioulo é, muito provavelmente, a língua mais falada no Bairro do Barruncho. Hildeberto nunca esteve em Cabo Verde, apesar da ascendência, mas explica que ali é mesmo assim. “Falamos a língua 24 horas por dia. O meu crioulo é do bairro e se for a Cabo Verde não vou conseguir entender muitas coisas (risos), pois lá é mais desenvolvido”, brinca o jogador. Mesmo durante o passeio, foi soltando algumas expressões como, por exemplo, “nha mano” [em português, “meu irmão”].
Os quase 500 moradores do Barruncho – a maioria proveniente dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) – vivem em condições miseráveis. Esse é o primeiro impacto ao deixar um ‘mar’ de prédios e passar a estar entre autênticas casas de lata. Muitos ainda esperam pelo realojamento, uma vez que as barracas têm sido destruídas progressivamente ao longo dos anos. Outras pessoas, como o avô Poeta e a avó Bela, tiveram mais sorte e já têm casa ali perto. “Não é bom ver o bairro ser destruído. O metro vai passar aqui e estão a mandar as casas abaixo. Sei que há muita gente a ser ajudada, mas esta situação deixa-me de lágrimas nos olhos.”
Alegrias e tristezas numa “aldeia de lata”
Não é todos os dias que o Barruncho recebe desconhecidos, mas, com Berto ao lado, é como se fôssemos da família. Por entre os caminhos tortuosos do bairro, guiado por um dos filhos daquela terra, orgulhoso das origens que, garante, fizeram dele o que é hoje. “Os mais velhos daqui sempre acreditaram em mim e adoram ver-me na televisão a jogar ou no estádio a marcar um golo. Dão-me conselhos e isso é importante, porque já errei. Há quem pense que me incentivam para a má vida, mas não! E há uma coisa engraçada: Chateiam-se sempre comigo pelo facto de reclamar muito com os árbitros!”
Durante o percurso por entre as ruas daquela “aldeia de latão”, poucas portas se abriram com a curiosidade de perceber o motivo do rebuliço. Afinal de contas, ainda é hora do almoço e não são muitas as pessoas que estão no bairro. Mas curiosidade é coisa que não existe no que diz respeito a quem vive nas imediações. Berto sentiu-o várias vezes na pele. “Há aqui pessoas que, mesmo sem serem do nosso sangue, ajudam-nos todos os dias. Quem vê de fora pensa que passamos mal e que somos problemáticos, mas não! Olham de outra maneira para nós porque somos da barraca, mas sinto um grande orgulho do sítio onde cresci. Aqui temos alegrias e tristezas, como todas as outras pessoas.”
“Aqui somos muito unidos, é quase como no balneário do Vitória de Setúbal”
Durante a visita ao Bairro do Barruncho, Hildeberto distribuiu algumas camisolas do Vitória de Setúbal pelas crianças que por ali vão aparecendo. Afinal de contas, estamos na altura do Natal e qualquer oportunidade para arrancar um sorriso aos mais novos deve ser aproveitada.
Para o atleta internacional cabo-verdiano, o Natal nem sempre foi junto dos familiares mais próximos, mas as vivências no “gueto”, como os próprios chamam àquela zona, fizeram com que os amigos se tornassem irmãos. “Conheci a minha mãe há dois anos e eram as mães dos meus amigos que me acolhiam nesta altura do ano. A mãe do Mauro casou com o meu pai e estive quase sempre com eles. Também ficava com a tia Edna, mãe do Edy. Passar um melhor Natal era impossível! Aqui somos muito unidos, é quase como no balneário do Vitória de Setúbal. Damos as mãos uns aos outros”, refere Berto, sem conseguir fazer com que a voz não trema quando se lhe pergunta sobre como cresceu a paixão pelo futebol. E sim, foi ali mesmo, nas estreitas ruas do Barruncho.
O bairro transformava-se num autêntico campo de futebol durante os anos em que chutar uma bola ainda era apenas uma diversão e não uma profissão para a vida. “A minha paixão pela bola começou mesmo aqui. Jogávamos ali na escola”, diz Berto, enquanto aponta para os muros da Escola Básica Carlos Paredes, onde um grupo de crianças brinca no recreio.
“Não podíamos entrar no recinto depois das aulas, mas queríamos tanto jogar, pelo vício que tínhamos, que até saltávamos o muro e furávamos a rede para podermos ir para o sintético. Pegava na tesoura, cortava a rede e lá íamos nós… Tínhamos era de estar sempre a controlar para ninguém se chatear connosco ou para nos expulsarem dali”, lembra Berto, entre sorrisos, antes de identificar o momento em que decidiu que queria ser futebolista profissional. “Quanto fui para a Casa do Gaiato de Setúbal, a coisa foi crescendo. Tínhamos uma bola quase 24 horas por dia e jogávamos descalços ou em chinelos, estivesse a chover ou a nevar. Não interessava! O que mais importava era ter uma bola nos pés. A partir dessa altura, foquei-me nesse objetivo de ser futebolista e aqui estou eu.”
Atualmente, Hildeberto Pereira sente-se uma pessoa diferente, também por tudo o que aprendeu no balneário do Vitória: “Todos os dias aprendo com os meus colegas. Abrem-me os olhos e também sabem que podem contar comigo. Agarro todos os conselhos com muita força.”
Férias de Natal ao lado da filha
A pequena Phoebe, de apenas um ano, é fruto de uma antiga relação de Berto com Liza, que conheceu em Inglaterra durante a passagem pelo Nottingham Forest. E é lá que vive. “Não estou com ela há quatro meses…Mudou a minha vida e ajudou-me a crescer! Passo os dias a pensar nela e jogo por ela. Mas é difícil … Todos os pais querem ter os filhos por perto”, diz emocionado.
Os olhos deixam fugir uma lágrima quando revela que está prestes a viajar para Inglaterra: “Vou lá passar o Natal para ela também estar com a mãe. Ninguém merece passar o Natal sem a mãe por perto! Eu e a Liza já não estamos juntos, mas temos uma boa amizade e isso é o mais importante para a nossa filha. Todos os dias falo com ela através de videochamada e quando a vejo é como se ela estivesse aqui comigo. O futebol é isto: dá-nos alegrias, mas também tristezas. Nestes dias em que estarei lá com ela, vou dar-lhe todo o carinho que não dei nos últimos quatro meses.”
Mentalizados para vida difícil
Berto cresceu no bairro do Barruncho e, hoje, a sobrinha e o afilhado também por ali vão brincando e aprendendo dia a dia. O jogador sublinha a importância de ensinar Kelly e Marley sobre as dificuldades da vida adulta, em particular para os habitantes dali.
“As crianças aqui aprendem muito e sabem bem onde estão e onde vivem”, começa por dizer, apontando, depois, para Kelly, que, desde o momento em que chegámos não largou uma única vez um golfinho de peluche: “A minha afilhada tem o sonho de ser veterinária e de tomar conta de animais. Ela, assim tão pequena, já pensa nisso. A minha irmã ensina-lhe que a vida não é fácil e ela está mentalizada disso mesmo. A vida não é fácil, mas é muito boa!”
Cabo Verde no coração
As raízes de Berto estão em Cabo Verde, mas o jogador nunca teve a oportunidade de viajar até à cidade da Praia pelos mais diversos motivos. Ainda assim diz: “Sou metade português e metade cabo-verdiano, sem dúvida!”
Na calha está já um período de férias para ser gozado em terras africanas com mais alguns amigos, mas a verdade é que, pela boa temporada que está a fazer, a seleção também poderá permitir-lhe uma visita a Cabo Verde: “O meu objetivo é esse mesmo. Quero mostrar-me no clube para depois merecer a oportunidade na Seleção Nacional e poder representar o meu país e o meu povo, e orgulhar a minha família cabo- verdiana.”
Com o Vitória, metas mais ambiciosas
O jogo com o Benfica, na Taça da Liga, não terminou da melhor forma para Berto, que teve de sair ainda durante a primeira parte devido a uma lesão. No entanto, o avançado cabo-verdiano quer recuperar rapidamente para ser cada vez mais útil para Velázquez e ajudar o Vitória de Setúbal a consolidar-se numa posição confortável da tabela.
“Estamos em 7.º, que é o lugar que merecemos. Os golos não estavam a aparecer, mas nunca baixámos os braços e continuámos a trabalhar. O nosso grupo é muito unido e todos nos ajudamos uns aos outros. Temos de dar continuidade e este trabalho”, afirma Berto, decisivo nos últimos dois últimos triunfos do Vitória de Setúbal no campeonato, frente a Paços de Ferreira e Desportivo das Aves – um golo a cada.
“Estou feliz, estou a atravessar um bom momento, é verdade, mas devo-o também a todos os meus companheiros, à equipa técnica e a toda a estrutura do futebol profissional, que tem feito um trabalho excelente. O presidente tem-nos dado todas as condições de trabalho e a forma como cumpre sempre connosco transmite-nos tranquilidade, serenidade e união para podermos fazer o nosso trabalho da melhor maneira. Ganhei um amor muito grande por este clube.”
A exigência dos adeptos sadinos também faz com que os jogadores sintam o clube de uma forma especial. “É como uma relação entre pais e filhos. Os adeptos são os nossos pais e, por vezes, não ficam satisfeitos connosco. Mas juntos vamos conseguir coisas positivas!”
Rendido às ideias de Julio Velásquez
A entrada de um novo treinador numa equipa nunca é fácil e Berto assume que, no início, as ideias de Julio Velásquez não estavam a ser recebidas na perfeição pelo plantel. No entanto, tudo mudou com o tempo.
“Ele sabe explicar as coisas e numa semana já tínhamos tudo na cabeça. Em jogos anteriores, sofríamos um golo e ficávamos em baixo, mas agora reagimos. Estamos diferentes, mais maduros e unidos. Sempre fomos, é verdade, mas os golos e as vitórias aparecem e já entramos em campo mais leves”, explica o jogador, rendido à qualidade do técnico espanhol.
“É muito exigente e gosta que os jogadores estejam concentrados e sejam competentes. Estamos a corresponder e, assim, podemos andar nos lugares cimeiros.”