Entrar no Snooker Club Lisboa, na zona da Praça da Alegria, em pleno coração da capital, é como seguir numa viagem no tempo aos saudosos anos 80 e 90, tão bem retratados pelo realizador Martin Scorsese, na famosa longa-metragem ‘A Cor do Dinheiro’. Fomos conhecer o espaço, as pessoas e as histórias que marcam uma modalidade com mais história no país do que se julga.
Paredes verdes e luzes fortes de todas as cores, estantes repletas de taças e outros troféus ou preenchidas por retratos dos vencedores, além das indispensáveis bebidas e empregados fardados a rigor compõem um cenário real, mas típico de filme.
O Snooker Club é dos poucos espaços em Lisboa onde se pratica oficialmente o bilhar de competição. À escala global, a modalidade espalhou-se pelo mundo e é praticado em países tão diversos como os Estados Unidos da América, França, China, Espanha, Itália, Austrália, Índia ou Inglaterra, onde, de resto, nasceu a variante de snooker que é considerada, em terras de “sua majestade”, um dos principais desportos. A modalidade é mais fácil, segundo quem sabe, do que se acredita. “Não precisamos de ser nenhum Einstein para jogar snooker. Basta apenas ter habilidade e concentração para jogar”, garante Miguel Alexandre Sancho, gerente do Snooker Club.
Ao entrar neste espaço, o ambiente é tenso e de muita concentração, por parte dos clientes e também dos trabalhadores que se encontram em volta das mesas, indiferentes à chegada de novos clientes. As pessoas entram e saem e mal se nota a sua presença. Esta concentração é sentida no dia a dia, mas intensifica-se nos campeonatos e nos torneios. De acordo com o ex-vice-presidente da Federação Portuguesa de Bilhar, “o snooker ajuda a compreender melhor a geometria e a física e, numa mesa de bilhar, consegue-se ver todas as leis matemáticas aplicadas à realidade”.
Em Portugal, o bilhar é, sobretudo, praticado em clubes, cafés, salões de jogos e casas particulares. Há uns séculos, a modalidade não era vivida nesses termos. Em ‘Os Maias’, de Eça de Queirós, o bilhar é representada como uma modalidade praticada, sobretudo, pela nobreza, em dias de baile ou mesmo nos salões da alta sociedade, onde a aristocracia convivia e se divertia à volta de uma mesa de pano verde.
É muito habitual haver dúvidas quanto às dissemelhanças entre os termos bilhar, snooker ou pool, mas existem algumas diferenças. Como explica o também comentador de snooker do Eurosport, Miguel Sancho, “as pessoas fazem muita confusão, mas a explicação é simples. Bilhar é tudo o que é jogado numa mesa, com tacos e com bolas. Isto é uma família, tudo isso é bilhar. Dentro desta, existem três grandes modalidades: o snooker, a mais mediática e que transmitimos no Eurosport. É jogada com 15 bolas vermelhas e seis bolas de cor: amarela, verde, castanha, azul, rosa e preta. Outra modalidade é a carambola, que é jogada apenas com três bolas e não tem buracos. O objetivo principal é que a nossa bola toque na segunda bola e depois faça três tabelas antes de tocar na terceira. Depois, temos o pool que no Norte chamam bilhar e no Sul snooker, mas cujo nome correto é pool: sete bolas cheias e sete listadas e a preta no fim, isto na sua disciplina mais comum que é a bola 8”.
Das três variantes, o Snooker Club apenas não dispõe de carambola. Porém, em Portugal, essa até é a variante jogada pelos três grandes: FC Porto, Sporting e Benfica. Contudo, a nível de praticantes – federados ou não – o pool é, de longe, a modalidade mais praticada, sobretudo, nas mesas tradicionais portuguesas, pequenas e de buracos arredondados. Já o pool internacional, jogado em mesas maiores e de buracos retilíneos, é uma variante, sobretudo, urbana e de elite, assim como o snooker, a última das variantes a chegar ao nosso país, no que à competição oficial diz respeito, explica Miguel Sancho.
Ambiente intimista
As pessoas jogam e as luzes incidem com intensidade sobre as mesas. As bolas azuis, laranjas e vermelhas batem nas laterais de cada mesa, emitindo um som seco e opaco, quando colidem uma nas outras. O facto de ser uma atividade entendida na perspetiva do lazer pelo cidadão comum torna mais difícil, aos olhos do grande público, ser vista como uma modalidade de relevância para o desporto português. “Infelizmente, não temos profissionais em Portugal e falta-nos um nome à escala internacional para o bilhar crescer”, lamenta Miguel Sancho. “É, acima de tudo, uma questão de mudança de mentalidades. “Não é fácil sair deste ciclo, mas as coisas estão bem melhores do que antes e acredito no futuro. Já temos medalhas europeias em diversos escalões. Em 2018, Portugal foi Campeão da Europa em pool feminino e, em 2017, o FC Porto ganhou a Taça dos Campeões Europeus de Carambola. Aos poucos vamos chegar lá”, afirma.
Os jogadores dão tacadas estratégicas e, durante o treino, perdem a noção do tempo e do espaço. Tendo em conta os campeonatos e mundiais, quer de snooker como de futebol, o Snooker Club dispõe de oito televisões com dimensões consideráveis, para além da tela e projetor para os jogos importantes. As imagens, as televisões, as madeiras e a decoração da casa conferem um ambiente intimista a este lugar digno de cenário de filme, a lembrar os espaços frequentados pela Máfia liderada por Marlon Brando, no icónico ‘Godfather’ (O Padrinho), de Francis Ford Coppola, ou, com um set já dos anos 80, ‘A Cor do Dinheiro’, de Martin Scorsese.
Um pouco de história
De todas as variantes de bilhar, o snooker é a que muitos consideram um dos desportos de taco. Surgiu na segunda metade do século XIX, através dos oficiais do Exército Britânico colocados na Índia. A sua popularidade cresceu no final do século XIX e início do século XX. Em 1927, chegou a ser organizado o primeiro Campeonato Mundial de Snooker por Joe Davis que, como profissional de bilhar inglês e jogador de snooker, foi o primeiro a elevar o jogo de um simples passatempo a nível profissional.
Joe Davis venceria todos os campeonatos mundiais até 1946, ano em que se reformou. O Campeonato Mundial de Snooker de 1978 foi o primeiro transmitido pela televisão. Miguel Sancho lembra “que a modalidade deu um salto muito grande e o Eurosport ajudou bastante”. E acrescenta: “Em Portugal, as audiências de snooker são enormes e, talvez por isso, em dezembro de 2014, acolhemos a primeira prova internacional e profissional de snooker, em Lisboa. Passaram mais de 5 mil pessoas pelo pavilhão do Casal Vistoso e, por isso mesmo, podemos considerar que o ‘Lisbon Open’ foi notável.”
O gerente do Snooker Club considera ainda que “a esmagadora maioria das pessoas tem uma noção das regras, mas não são fáceis. São muitas variantes e há muitas circunstâncias. Por vezes, em cada bairro, as pessoas têm as suas próprias regras. As regras são diferentes no país inteiro, o que não devia acontecer, mas é consequência da falta de divulgação. Embora ainda não seja respeitado em todo o país, hoje já temos acesso e já se começa a jogar com as regras oficiais”.
Em Portugal o snooker só é praticado oficialmente desde 2010, mas a história do bilhar no nosso país é riquíssima pois nasceu em 1930 com a criação, no Porto, da Federação Portuguesa dos Amadores de Bilhar que, em 1932 organizou, em Espinho, o III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre. A representação Portuguesa coube a Alfredo Ferraz e a Portugal da Mata, sendo a prova ganha pelo espanhol Butron que, com uma série de 500 carambolas iguala o recorde do mundo.
Em Portugal, só em 1936 nasceu, em Lisboa, a Associação Portuguesa de Bilhar. Segundo documentos históricos, “o aparecimento destes organismos decorre, sobretudo, pelo facto de existir um bilharista com extraordinários recursos, Alfredo Ferraz, que disputa competições internacionais, inscrito pela Federação de Espanha, antes de existirem em Portugal provas oficiais”.
Alfredo Ferraz foi um caso aparte. Era um autodidata que, por ser dotado de um talento invulgar, chegou a campeão do mundo em partida livre – o primeiro desportista português a conquistar um título mundial, a vice-campeão do mundo a uma tabela, modalidade então desconhecida em Portugal, a vice-campeão da Europa sendo, ainda, o primeiro vencedor de uma prova de bilhar artístico, de âmbito internacional, quando a modalidade se designava por “Fantasia Clássica”.
Segundo documenta a Federação Portuguesa de Bilhar, graças ao seu prestígio internacional, Alfredo Ferraz acabou por ser o responsável pela organização do bilhar desportivo português. Só em 1958 o bilhar europeu passou a dispor de uma organização, a CEB – Confederação Europeia de Bilhar, englobando 15 federações, entre as quais a Federação Portuguesa de Bilhar. Um ano mais tarde, criou-se a UMB – União Mundial de Bilhar, que vai alargando a sua zona de influência a quase todo o mundo.
Modalidade com futuro
O snooker não faz parte dos conteúdos habituais de cultura e educação do País. Miguel Sancho e outras personalidades ligadas à modalidade procuram inverter este cenário: “A modalidade pode oferecer muito ao nosso sistema de ensino, tal como de resto já é feito na China ou em Inglaterra. A China olha para o bilhar, neste caso, na variante de snooker, como uma modalidade vital para qualidade do ensino de crianças e jovens pois estimula bastante a concentração.” Por isso, continua Miguel Sancho, “há mesas de snooker em quase todas as escolas públicas chinesas e foi criado um programa de captação de jovens a partir dos três ou quatro anos de idade, o que faz com que haja milhões de chineses a jogarem snooker. Em Portugal, não temos essa capacidade, pois o regime é diferente do nosso. Aqui, o desporto não é acarinhado nem protegido pelo Ministério da Educação. Vamos tentar levar mesas para dentro das escolas, mas é algo que faremos com tempo, pois precisamos de imensas autorizações e isso envolve muita burocracia.”
O futuro da modalidade passa por casas como o Snooker Club Lisboa e outras que têm nascido nos últimos anos. Neste lugar quase intemporal, todos se sentem em casa: adultos e crianças, homens e mulheres, gente de todo o mundo que vem a Lisboa conhecer a cidade e os seus recantos.
O bilhar é cada vez menos visto como uma modalidade de homens, de álcool e de vício, estereótipo do cinema, e assume o profissionalismo que entra dia a dia, nos ecrãs de televisão dos portugueses. Apesar de não estar longe de ter a importância de outras modalidades, como o futebol ou o futsal, Miguel Sancho mostra otimismo quanto ao futuro do snooker, em Portugal: “A modalidade está diferente e para melhor. Mais abrangente, menos elitista, mais sã, menos ligada a tabaco e álcool, mais plural e capaz de explorar outros contextos, como as escolas ou as academias desportivas. Temos um potencial imenso, com mais de 5 mil praticantes, e só precisamos de unir as mãos e trabalhar.”
Com as mãos suadas, os jogadores dão tacadas estratégicas. Durante o treino, perdem a noção do tempo e do espaço. Os campeonatos e os mundiais são transmitidos pelo Snooker Club Lisboa através de oito televisões de grande dimensão e nos jogos mais importantes de um projetor de dimensões significativas.