A perda de um ente querido tornou-se ainda mais difícil. O último toque desapareceu. E o luto complicou-se. As agências funerárias e a Igreja têm um papel crucial nestes momentos.
São 10 horas, o sol brilha. Mas este é o dia mais cinzento para as pessoas que veem o seu ente querido partir para outro lugar. Depois da morte, a família tem de fazer várias escolhas em relação ao funeral. Para não entrar em contacto com os funcionários da agência funerária é facultado um catálogo online para poder selecionar o que se pretende. Depois das escolhas, está no momento de preparar o funeral no armazém da agência.
O frio e o silêncio caracterizam o armazém onde a funerária guarda todo o material. Há uma grande sala, que tem de estar no mínimo a 3º C, onde se encontra a câmara frigorífica que reserva os corpos das pessoas que morrem em casa ou nos lares. Ao fundo, há duas bancadas de aço com vários produtos, desde maquilhagem, secadores de cabelo, até às seringas com produtos químicos que fazem a tanatopraxia, que é a preparação e conservação do cadáver. Mas, em tempos de pandemia, a tanatopraxia não é realizada. No restante armazém, as filas de caixas em papelão são intermináveis, cruzes de vários tamanhos e materiais, urnas para colocar as cinzas e três carros funerários.
Os funcionários usam os equipamentos de segurança pessoal, etiqueta respiratória e luvas descartáveis. Começam por ir buscar a urna escolhida pela família; colocam o crucifixo; as pegas laterais; pulverizam o caixão com uma solução desinfetante, por dentro e por fora; e, por fim, desinfetam o carro fúnebre e colocam o caixão tapado com um manto branco. De seguida, vão buscar o óbito à casa mortuária do hospital de Torres Vedras. “O corpo já vem reconhecido pela família, é colocado dentro de um saco hermeticamente fechado, sem roupa nem nenhum pertence pessoal, pois, até à data a administração do hospital não permite que sejam vestidos”, explica João Pedro Sobreiro, proprietário da Agência Funerária João Sobreiro.
O corpo é de seguida levado até à capela mortuária onde se realiza uma pequena vigília pois, segundo as orientações para o setor funerário dadas pela Direção-Geral da Saúde (DGS) em colaboração com a Associação Nacional de Empresas Lutosas (ANEL) a 20 de maio, já é possível fazer um breve velório com cerimónia religiosa, preferencialmente, ao ar livre e/ou no cemitério. Segundo o sacerdote da Paróquia de Torres Vedras, Álvaro Bizarro, “até à data, 15 de junho, foram realizados 71 funerais e todos beneficiaram de exéquias cristãs, com a presença de padre e de um núcleo reduzido de familiares”.
No cemitério, o número de pessoas tem de ser controlado, mas quem é que faz esse controlo? “Ninguém, estamos a falar de sentimentos melindrosos, porque no final de contas, a pessoa perde um ente querido, e partir daí toda a gente tem receio de abordar a família. É a agência funerária que dá a cara, mas até agora não houve excedentes”, assume o agente funerário, encolhendo os braços. Neste momento de fragilidade, reina o bom senso, mas o facto de a família e amigos não poderem abrir a urna e despedir-se uma última vez do seu ente querido, pode ter implicações no processo de luto.
Luto limitado
As últimas orientações dadas pelas entidades reguladoras, DGS e ANEL, desaconselham a abertura da urna, poderá é ser colocado “uma tampa de vidro que permita a visualização do cadáver”, aconselha Sérgio de Oliveira, consultor de comunicação da ANEL.
Para João Sobreiro, a abertura da urna “vai da mentalidade das pessoas, mas os mais idosos gostam de se despedir naquele último momento, querem dar um beijo, um afago e para essas pessoas é muito mais difícil”. Sendo Torres Vedras uma cidade em que 21% da população tem mais de 65 anos, a adaptação a esta nova realidade não tem sido fácil para os mais idosos, nem para os torrienses mais jovens. Segundo a psicóloga clínica, Ana Gomes, este impedimento colocado aos familiares e amigos é complicado de gerir emocionalmente. “É um processo que racionaliza o término de uma vida e que pode permitir desenvolver fantasias, porque o ver e o despedir-se não é só um ato simbólico; é, de facto, o fechar de um capítulo que é preciso ficar bem fechado para que o luto saudável se processe.”
Teresa Morgado perdeu o pai durante o período de estado de emergência e confessa que a mãe de 87 anos não consegue iniciar processo o luto. “Para ela, o meu pai não morreu, como não o viu, não quer acreditar. Ficou muito revoltada por não permitirem abrir a urna, nem fazer o velório com a família”, assume com tristeza por não conseguir ajudar a mãe a superar esta fase complicada e que só origina fantasias em relação à morte do ente querido.
Nesta nova realidade, o sacerdote Álvaro Bizarro teve um papel fundamental na comunidade. “Cheguei a receber 30 chamadas por dia de fiéis que necessitavam da palavra de Deus”, relembra. O luto sempre foi um momento doloroso e frágil para as pessoas, mas agora tornou-se despido de gestos, frio e solitário. A agência funerária chegou a fazer cinco funerais por videochamada, e esses casos, ainda se tornaram mais complicados para fazer o luto. “Sinto que, nestas alturas, a agência tem um papel crucial em ajudar a família a superar esta fase”, afirma João Sobreiro.
(Esta reportagem foi realizada durante o estado de calamidade, em Torres Vedras, com a Agência Funerária João Sobreiro, e reporta as normas referentes ao mês de maio. As novas orientações atualizadas a 3 de julho não acrescentam muitas mudanças, apenas dão mais abertura sobre o limite máximo de presenças, tanto no funeral como no velório, mas a decisão fica a cargo da autarquia local).