Jornalista da CNN Portugal e da TVI, Sérgio Furtado tem dedicado a sua carreira à cobertura de conflitos armados. Esteve na Bósnia, no Afeganistão, na Somália, na Ucrânia e em Israel. Em entrevista ao UALMedia reflete sobre o seu percurso enquanto profissional de informação, retrata os bastidores da guerra e reconhece a humanidade no meio do caos.
É um contador de histórias reais. Traz-nos pessoas, lugares e realidades longínquas. Sobre si e as motivações que lhe pertencem, pouco se sabe. O que o levou a querer ser jornalista?
Quando estava a estudar segui eletrónica, por influência do meu pai, que também estava na área. Foi por meio da eletrónica que entrei na primeira rádio para a qual trabalhei, Rádio Mais Amadora (que já não existe). Foi-me proposto um estágio para a parte técnica, mas sempre me interessou a comunicação radiofónica e por isso fui experimentando. Sempre gostei muito de rádio. Recordo-me de que, quando era pequeno, imitava os locutores que estava habituado a ouvir. O jornalismo foi um acaso, talvez fruto de carolice minha, porque sempre me fascinou. A admiração pela profissão surgiu em 1991, durante a primeira guerra do Golfo, em que assistia a relatos de jornalistas internacionais, que estavam no Iraque, quando o Saddam Hussein invadiu o Kuwait. Fiquei impressionado com a coragem dos profissionais e com os contornos daquela atividade. Através da rádio surgiu a oportunidade de começar a fazer jornalismo e hoje dedico-me a 100% à profissão.
Formou-se enquanto jornalista?
Tenho de dedicar as aquisições que tenho a nível de conhecimentos à rádio onde trabalhei. Foi lá que me ensinaram, praticamente, tudo. Mas formei-me. Fiz todos os cursos do Cenjor. Conciliar a formação com a experiência também ajudou, trabalhava durante o dia (como jornalista) e estudava à noite.
Quando começou a trabalhar como jornalista já queria ir para a guerra?
Enquanto jornalista, a primeira área sobre a qual comecei a trabalhar foi a militar. Gostava. Não porque gosto de armas, aliás, não gosto dos efeitos que as armas provocam, mas aquele meio sempre me suscitou muita atenção. Não era a guerra em si, mas aquilo que provocava, principalmente a nível humanitário.
“Devíamos estar em cima de tudo aquilo que provoca sofrimento e a perda de vidas humanas”
As especulações sobre os jornalistas enviados para conflitos armados são muitas. Há quem diga que têm “formação militar” e por isso capacidade de defesa, para proteção própria. Os requisitos do envio de jornalistas para áreas de conflito são pouco claros para os cidadãos comuns. Quais são os critérios?
Não tenho qualquer formação militar. Contudo, as forças militares dão cursos destinados aos jornalistas, apesar de nunca ter tido a oportunidade de estar num deles. Os critérios, por parte da direção, remetem para a confiança no profissional, em relação à sua competência para fazer um bom trabalho, num contexto com particularidades. Da parte do jornalista passa pelo querer muito ir e a consciência do sítio para onde se vai. Ninguém é obrigado a ir para um cenário de guerra.
Até que ponto é necessário os conflitos chegarem para que haja a decisão do jornalista ser enviado?
Existem vários fatores. A proximidade é um deles. Temos muitos conflitos no mundo, onde nem sequer lá pensamos chegar. Estive na fronteira com a Somália, no Quénia, e na altura não era uma situação muito falada. Temos o maior campo de refugiados do mundo à porta da Somália e a repercussão não foi tão grande como a da guerra na Ucrânia. A proximidade é muito importante.
A dimensão também é objeto de análise para o envio, não só a dimensão daquilo que se passa no terreno, mas também a dimensão das consequências. Todos estamos a pagar o preço de termos uma guerra na Europa. Os preços estão a subir, temos refugiados para receber e fornecemos ajuda militar. O mundo inteiro está a sofrer com isso. A Ucrânia é um dos maiores fornecedores de cereais a nível mundial. Isso assume uma dimensão maior do que um conflito regional, em qualquer ponto do mundo, que não afeta mais ninguém a não ser as pessoas daquele local.
Há sempre outros conflitos, as guerras nunca pararam e, infelizmente, nunca pararão. É triste passarmos ao lado de algumas. Devíamos estar em cima de tudo aquilo que provoca sofrimento e a perda de vidas humanas. Mas nem todas têm a mesma visibilidade e o mesmo peso informativo. Há muitos gastos associados ao envio de jornalistas para a guerra e têm de se fazer escolhas.
“Estamos sempre de um lado a reportar a guerra, porque não nos é possível estar nos dois”
É também o interesse das pessoas que constrói a prioridade de cobrir determinados conflitos?
A atenção do público relativamente aos acontecimentos é importante. A Ucrânia foi atacada em 2014 e ninguém quis saber. Mas foi aí que começou a guerra a que assistimos hoje. Contudo, os olhos do público começaram a estar mais atentos quando houve uma invasão em larga escala. O conflito no Médio Oriente não começou a 7 de outubro, mas esse foi o maior ataque à população israelita depois da Segunda Guerra Mundial.
Depende sempre muito da perceção de quem nos vê, mas também nos compete trazer esses assuntos para a ordem do dia. Não estamos e não podemos estar reféns daquilo que as pessoas querem ver. Os jornalistas estão cá, para mostrarem o que consideram que as pessoas devem ver e que é importante mostrar. Caso contrário o jornalismo seria de opinião pública e esse não deve ser o princípio. Mas há muito o conceito de “Não vamos dar isto, porque as pessoas não querem ver”. Não pode ser assim.
Quais foram as principais diferenças que sentiu, enquanto jornalista, entre a cobertura que fez em Israel e a que fez na Ucrânia?
Na Ucrânia tínhamos maior liberdade de movimento, estivemos na linha da frente. Em Israel foi mais complicado. Apesar de alguns canais terem conseguido, entrar em Gaza é muito difícil. Para nós, jornalistas portugueses, era ainda mais difícil. O acesso era facilitado aos órgãos de comunicação social norte americanos, de grande audiência.
Se em cenários de guerra a movimentação dos jornalistas é limitada, como é que consegue procurar informações que vão além daquilo que lhe é apresentado, para assim garantir o equilíbrio nos relatos?
Estamos sempre de um lado a reportar a guerra, porque não nos é possível estar nos dois. No conflito entre a Rússia e a Ucrânia, não podíamos estar do lado da Rússia, porque éramos impedidos de o fazer. No Médio Oriente, não podíamos estar na Faixa de Gaza. Queríamos, mas não podíamos. Aquilo que tentamos fazer é um equilíbrio dos factos mesmo estando só de um lado. Recuso, praticamente sempre, fazer os chamados media tours, em que juntam um grupo de jornalistas e os levam ao local para verem uma determinada situação. Gosto de ir sozinho. Mas às vezes não nos dão autorização e por isso vamos com os outros jornalistas.
Aquilo que é preciso fazer, sempre, é não se ficar preso ao que nos estão a dizer, é para isso que serve um jornalista, estamos lá para sermos os olhos, os ouvidos e a consciência, que não podem ser absorvidos pelo que nos querem incutir. Todos os lados têm a vontade de passar a sua visão das coisas. Não é só na guerra, é em tudo. Quando nos contam uma história temos de questionar sempre tudo. É uma regra básica do jornalismo. Não podemos ser o megafone daquilo que nos querem impingir.
“Dormimos ao som de bombardeamentos”
A decisão de ir para um sítio do qual não sabemos se regressamos, devido ao conflito que o envolve, é certamente reflexiva. Não tem medo do que poderá acontecer quando escolhe ir?
Faz parte, o medo. Se não fizesse, era completamente inconsciente. Aquilo que temos de fazer é, tendo consciência daquilo que pode acontecer tomar medidas para que possamos estar mais seguros, dentro da insegurança. A decisão de ir a determinado lugar é tomada pela equipa, composta por mim, um repórter de imagem e um produtor local, que conhece o terreno e estabelece os contactos precisos, que permitem a movimentação. Não se trata de uma democracia, basta que um não se sinta confortável para não irmos.
Os jornalistas são protegidos de alguma forma na guerra?
Ficamos de preferência num hotel, porque são sítios que estão identificados. Há aquela sensação de que o outro lado sabe que ali estão civis e, por isso, um ataque será menos provável. Procuramos sempre segurança, mas estamos numa guerra, onde há mísseis, drones e armas. Tudo pode acontecer. Estava em Kharkiv, na Ucrânia, quando abri a janela do meu quarto caíram dois mísseis do outro lado da rua. É um jogo de sorte. Mas procuramos estar “protegidos”, principalmente à noite, para descansarmos.
Conseguem dormir realmente?
É sempre um descanso limitado. Por vezes dormimos ao som de bombardeamentos. Temos a consciência daquilo que estamos a ouvir, pelos sons, sabemos que tipo de arma, a direção que assume e que tipo de estragos pode causar. A experiência oferece-nos essa sensibilidade. Dá para descansar, mas estamos sempre em alerta. O instinto jornalístico, a necessidade de reportar o que está a acontecer, também nos faz acordar e ir para a varanda filmar o que ocorre.
“São atingidos pelo conflito e não têm armas na mão”
Enquanto estava na Ucrânia, em entrevista à SELFIE disse que, aquilo que lhe importa é a condição humana. Depois de ter feito cobertura de alguns conflitos tornou-se menos sensível às histórias que lhe trazem, por já lhe serem “habituais”?
Arrepiei-me repetidamente e continuarei a arrepiar-me. É inesgotável. Não me imagino insensível a qualquer história, quando assim for é porque a minha passagem por ali terminou. São civis, involuntários na guerra. São atingidos pelo conflito e não têm armas na mão. É impossível ser insensível a isso. Há histórias idênticas, mas cada pessoa é diferente. Nunca é só mais uma. Não deixei bagagem na Ucrânia, nem em Israel, trouxe todas as histórias comigo, o cheiro, o sentimento e a imagem. Quando penso nelas regresso àquele momento.
Há uma história que me marcou. A da senhora Ludmila, de 80 anos. Morava num apartamento no centro da cidade de Kiev, num prédio que ficava muito próximo de um outro que havia sido destruído por um míssil. O que acabou por causar estragos, também, nas casas próximas. Deixou-nos entrar em sua casa para vermos os estragos. Não queria falar. Respeitamos sempre esse direito. Ficámos por lá um bom bocado a recolher imagens. Ela estava a olhar para a rua através de uma janela. A imagem parecia encomendada e por si só já valia muito, a luz do sol batia na janela, ela olhava lá para fora, onde estava um edifício completamente destruído. Estávamos a filmar. Ela saiu da janela virou-se para nós e disse “Se estivesse ali tinha morrido”. Começou a contar a história. O tempo que por lá passámos deixou-a confortável para o fazer. Tomei a liberdade de ir fazendo perguntas e ela respondia. Foi uma história impactante porque era inesperada. Achei que não fosse falar.
Não gosto de contar as mesmas histórias que os outros. Os “zé-ninguém” sempre me interessaram. Estive em aldeias que não registaram grandes estragos. As pessoas não percebiam o que fazia por ali. Ninguém queria saber das suas histórias, mas eu queria. Abraçaram-me e agradeceram por lá ter ido. Por alguém querer ouvir as suas vozes.
Ao retratar a história de Ludmila descreveu a imagem daquele momento como valiosa. É apaixonado por fotografia. Através das suas redes sociais partilha algumas das capturas que faz em tempos de guerra. As imagens transmitem aquilo que as palavras não conseguem dizer?
Às vezes as palavras são completamente dispensáveis. A fotografia tem um poder superior a todas as outras formas de imagem. Aquele momento não se repete. Se a imagem for corrida não damos pelos pormenores. A fotografia imortaliza-os. A imagem é importante em televisão. E os sons também. Na televisão não temos cheiro e por isso temos de estimular o sentido visual e o auditivo. A união perfeita entre a imagem e o som transporta aquele que assiste para o local. Quando não digo nada, as pessoas focam-se naquilo que lhes mostro. Isso capta a atenção e o pensamento.
“O que me move são as vidas a que posso dar vida”
Recentemente, foi-lhe atribuído o prémio Mário Mesquita, que reconhece o seu rigor e trabalho exímio, enquanto jornalista. Como percebe a premiação?
Nunca esperei receber um prémio na vida. Esse objetivo não me pertencia. Foi uma surpresa. É uma honra ver o meu trabalho reconhecido. Mas, os prémios não nos podem mudar. O trabalho deve continuar a ser exigente. O que me move não são os prémios, mas as vidas a que posso dar vida.
O que mudou em si depois da guerra?
Não acho que a guerra me tenha mudado, mas acrescentou muito em mim, sobretudo humanidade, tornou-me mais rico enquanto ser humano. Seres humanos a matarem-se uns aos outros é inconcebível. O dinheiro que se gasta na guerra quando é preciso acabar com a fome, quando é preciso se curarem pessoas, quando é preciso investir na educação e criarem-se melhores condições de vida, é ridículo e deixa-me triste. O ser humano é assim. É pena.