Nascida a 13 de Novembro de 1936, em Lisboa, Anita Guerreiro, nome artístico de Bebiana Guerreiro Cardinalli, trabalhou em revista, televisão, cinema e cantou em casas de fado. A “menina do Intendente”, como ainda hoje é chamada no bairro, começou a cantar e a representar em criança, na coletividade local. A partir daí, nunca mais parou. Porque, assegura, é uma mulher de sorte. À boleia do mais recente teatro-revista que protagoniza, P’ró Diabo Kus Carregue, Anita Guerreiro fala da sua carreira. O UALMedia esteve com a atriz no Auditório Municipal de Vendas Novas.
Sei que em 1952, com apenas 17 anos, apresentou-se como candidata ao passatempo “Tribunal da Canção”, foi o seu primeiro trabalho?
Sim, foi quando comecei a trabalhar. O Marques Vidal, grande locutor de rádio na época, fazia o “Comboio das Seis e Meia” e fui lá para concorrer ao “Tribunal da Canção”. O Marques Vidal, quando estava a fazer a escolha, disse-me: “Pare lá aí um bocadinho! Não se importa de vir ali comigo ao escritório?” Para me apresentar aos chefes. Quando entrei disse-me: “Cante lá um bocadinho para eles ouvirem.” Eu cantei e eles ficaram os três a olhar uns para os outros. Quando o Marques Vidal lhes perguntou o que é que fazia, um deles respondeu para marcar para quinta-feira, mas para estrear. E nem cheguei a concorrer…
Como é que a sua família reagiu a esta mudança repentina?
A minha mãe faleceu de febre tifoide quando eu tinha apenas 12 anos e nunca me chegou a ver como artista. O meu pai nem sequer me queria deixar ir… Na altura, tinha 17 anos e ele não queria que eu fosse assim, ao Deus-dará. Foi então que o Toni de Matos e a mulher se responsabilizaram por tomar conta de mim e lá fomos para o Algarve.
“No teatro, nunca se fez nada de mal. É uma fábrica, uma oficina.”
Depois desta vitória o que se seguiu?
Quando regressei do Algarve, havia um rapaz, que era o pianista, que me ouvia sempre dizer que gostava era de teatro. Um dia, disse-me: “Olha lá, a minha tia é quem está a explorar o Teatro Variedades, no Parque Mayer. Se quiseres, apresento-te.” Assim que acabámos a tournée, lá fui. O Teatro Variedades nessa altura não estava a trabalhar, mas ia estrear uma revista no Teatro Maria Vitória. Fui logo apresentada, tive um ensaio em que me pediram para cantar e depois disseram-me: “Ah, ouvimos dizer que também fazes umas coisinhas como atriz…” Acharam-me muita piada e fiquei logo para estrear a revista.
Tanto sucesso em tão curto espaço de tempo. Como tudo aconteceu?
Foi tudo de repente. No ano em que me estreei no “Comboio das Seis e Meia”, fiz uma tournée e fiz uma revista como profissional. Estava habituada a fazer coisinhas soltas, lá na coletividade. A sério, a sério, nunca tinha feito nada. Quando entrei ali foi mesmo a sério! E tive a sorte de ir logo para uma revista em que participavam nomes como a Irene Isidro, Eugénio Salvador, Humberto Madeira, António Silva, Cardoso Lopes e Teresa Gomes. Para os mais jovens, não significam nada mas, naquela altura, eram a fina flor do teatro português.
Qual era a sensação de estar a trabalhar com artistas que eram os seus ídolos?
Era um grande contentamento. Acho que quando estamos naquelas emoções, não estamos ali para nos parecermos com eles. Podia estar ali a pessoa mais maravilhosa do mundo que eu era eu… Nunca tive essas pretensões. Fazia os possíveis por fazer o melhor.
Na altura, já tinha decidido que aquela seria a sua vida profissional ou tinha outros sonhos?
Sim! Não tinha outros sonhos. Antes era costureira, mas o meu sonho era cantar. E foi uma vizinha que me inscreveu no “Tribunal da Canção”, porque o meu pai não queria. Ser artista, naquela altura, era uma coisa do outro mundo. No teatro, nunca se fez nada de mal. É uma fábrica, uma oficina. Estava cada um nos seus camarins, com a sua televisãozinha, a ver o que se passava. No teatro, nunca se passava nada de mal, as pessoas é que tinham a ideia de que era assim. Havia os chamados “galifões”, que iam para as primeiras filas para verem as meninas. Mas isso é normalíssimo e só seguia essas pegadas quem assim o entendesse.
Na altura em que se estreou na música, o país passava por uma ditadura. Teve alguma canção censurada?
Ah, sim! Não se podia dizer ou cantar qualquer coisa. Tudo o que canto é muito baseado na alegria e no amor. Por acaso, houve um fado que me fizeram que foi todo cortado. Foi o único… Até lhe digo o estribilho: “Fado é esta raiva amordaçada, esta vileza algemada a que chamamos saudade/o fado é este grito angustiado de um povo escravizado, que ainda crê na liberdade.” Agora até estava bom.
“Sou a pessoa mais antiga das marchas populares de Lisboa, há 54 anos que participo. Sejam marchantes, músicos ou ensaiadores, não há ninguém mais antigo que eu nas marchas.”
Nasceu e cresceu no Intendente e foi lá que começou a cantar. Apesar do sucesso que obteve, nunca deixou de ser “A menina do Intendente”?
Nunca! Continuo a ser. Lá está, no Intendente, a coletividade com a minha fotografia.
Qual é a reação das pessoas que a conheceram noutros tempos e que a encontram, hoje em dia, no bairro? Tratam-na como a “estrela” do bairro?
Não, a maioria das pessoas já morreu. Já não é o mesmo bairro. Ainda há lá pessoas da minha época e, às vezes, vou lá à coletividade cantar ou vou passear, mas está tudo muito diferente, deixa-me triste. A maior parte das pessoas que lá vivem são de outros povos diferentes, já nada existe. Olho para a coletividade, o prédio está todo degradado. A minha rua está toda fechada com tábuas. A minha escola já não existe. Foi lá que fiz toda a minha vida e vou lá menos vezes porque me dói muito. Chego ali e fico perdida.
Costuma participar nas marchas populares da cidade de Lisboa e já foi madrinha de diversas marchas. Nunca participou como marchante?
Sempre como madrinha, nunca participei como marchante. E lá vou eu este ano outra vez. Agora estou na Marcha dos Mercados, porque sofria muito com aquilo, quando não ganham, sabe… Trabalham todos tanto e depois não ganham.
“Fiz de tudo e gostei de todos, mas as revistas do Coliseu dos Recreios foram muito marcantes.”
Há quantos anos pisa a Avenida da Liberdade nesse papel?
Sou a pessoa mais antiga das marchas populares de Lisboa, há 54 anos que participo. Sejam marchantes, músicos ou ensaiadores, não há ninguém mais antigo que eu nas marchas. O ano passado, homenagearam-me na avenida e o ex-presidente da câmara municipal veio cá abaixo dar-me um beijinho e perguntou-me: “Mas o que é isto?” E eu respondi-lhe: “O que é isto? Isto são 54 anos a pisar a avenida. Ainda o senhor não estava na barriga da sua mãe…” Ele achou muita graça, fartou-se de rir. E é por isso que, quando chego ao Marquês de Pombal, começa tudo: “Ó Anita! Cheira a Lisboa!” E nunca mais acaba!
É assumidamente bairrista?
Claro que sim, moro no Bairro Alto. Também por uma questão de comodidade, porque moro sozinha. Mas gosto muito do bairro.
Até hoje fez inúmeros trabalhos em televisão, cinema, revista… De todos eles, tem algum que a tenha marcado em especial?
Fiz de tudo e gostei de todos, mas as revistas do Coliseu dos Recreios foram muito marcantes. Foram espetáculos como nunca mais houve em Portugal ou até noutros países, com números lindíssimos. As enchentes eram tão grandes que o trânsito parava na rua do Coliseu. Foram as mais belas revistas de sempre e entrei em todas.
O que acha que leva as pessoas a já não irem tão assiduamente ver esses espetáculos?
As pessoas não têm trabalho, não têm dinheiro. E a televisão roubou muitos espectadores ao teatro. “Depois, logo dá na televisão!” As pessoas não vão porque acabam por ver lá… Os tempos são outros. Está tudo tão diferente que no Parque Mayer, o único teatro que está ativo, até ver, é o Maria Vitória. Tudo o resto são parques de estacionamento. E qualquer dia, todo o Parque Mayer vai ser parque de estacionamento. É uma pena.
Li no Diário de Notícias o seguinte: “Tive sorte e, desde o início, apareceram pessoas a oferecer-me músicas e poemas. O que canto é tudo meu.” (“DN”, 26 Julho de 2005). Tem uma canção favorita? Consegue escolher apenas uma?
Sempre tive muita sorte, cada revista que fazia, cada número que vinha para a rua, um sucesso. Nessa altura, também havia muito bons músicos e muito bons maestros a fazerem música popular…. Mas a canção que mais me marcou foi também a que talvez me deu mais nome. Foi uma canção que me fizeram quando os soldados foram para a guerra, na Índia. Em qualquer sítio que ia, toda a gente a chorava. Toda a gente tinha um neto, um primo, um filho ou um irmão que tinha ido para a guerra, logo, todos se identificavam e corri a província inteira por causa disso.
“Fazem-me inúmeras homenagens. Sempre fizeram… Ainda agora estive na América para receber dois prémios.”
Viveu alguns anos nos Estados Unidos da América. Aquando do seu regresso começou a cantar fados n’O Faia. O que é que aquele espaço significa para si?
Quando regressei, fui logo para O Faia. Significa muito para mim… Foram muito meus amigos numa fase em que o meu marido esteve com alzheimer. Ele ia para ali, cuspia o chão, eu ralhava, eles estavam sempre predispostos a ajudar. Trataram do meu marido como ninguém. Nunca me posso esquecer disso. Nem que me cobrissem de diamantes. Só saio de lá se me mandarem embora!
Continuando no fado. O fado foi elevado à categoria de Património Oral e Imaterial da Humanidade, pela UNESCO. Pensa que é uma forma de não deixar morrer a tradição?
As tradições nunca morrem. Existem ou não existem. O fado vai sempre continuar…
Já recebeu diversos prémios e foram várias as homenagens. A última foi em Novembro de 2014, em tom de celebração pelos seus 60 anos de carreira. O que significam, para si, estas e outras demonstrações de reconhecimento do seu trabalho?
Fazem-me inúmeras homenagens. Sempre fizeram. Ainda agora estive na América para receber dois prémios. Saí muitas vezes do palco a chorar. Há pequenas coisinhas que nos compensam. Sempre fui uma miúda sem pretensões. As pessoas gostam de mim e eu gosto delas. É uma festa!”
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular “Técnicas Redactoriais”, no ano letivo 2014-2015, na Universidade Autónoma de Lisboa.