No ano em que se comemoram os 40 anos do 25 de Abril, Sara Chaves, cantora e uma das primeiras locutoras da Emissora Oficial de Angola, recorda o seu trajeto na rádio e conta como esta contribuiu para o sucesso da “Revolução dos Cravos”, em 1974.
Nasceu a 5 de maio de 1932, no Soyo, antigo Santo António do Zaire, em Angola. Desde muito cedo revelou gosto pela música. Que artistas ou autores a influenciaram na sua caminhada pelo mundo da música?
Francamente, acho que foi o cinema que me influenciou. Os artistas de cinema, principalmente. Havia em Luanda, num largo ao ar livre, todas as noites, um cinema ambulante. Os meus pais levavam-me muitas vezes ao cinema, a ver filmes de desenhos animados, musicais, que eu adorava e aos quais dava sempre preferência. Adorava ver a Charlie Temple, uma artista de palmo e meio, de sete ou oito anos, americana. Ela dançava, cantava ao microfone e usava uns caracóis, uns canudos, com muito fixador. As minhas amigas e as miúdas dessa idade copiavam a Charlie Temple, porque gostavam muito dos caracóis dela. Penso que essa artista e outras, como Deanna Durbin ou Judy Garland, mãe de Liza Minnelli, influenciaram-me muito. Eu queria ser como elas.
Para além de cantora, foi uma das primeiras locutoras da Emissora Oficial de Angola. Quando e como foi o seu primeiro contato com um microfone?
Foi no Rádio Clube de Angola, numa emissão infantil. Tive que ser submetida a testes. Fui chumbada no primeiro teste e no segundo. Não levava a canção bem ensaiada e só ao terceiro é que fui apurada. Então, entrei nessa emissão. Eu nem queria acreditar. Era a realização de um sonho, cantar na rádio! Às vezes, costumava dizer (e a minha mãe fartava-se de rir com isso) que os bebés quando nascem, choram, e eu, quando nasci, parece que nasci a cantar, talvez uma música de Carmen Miranda que cantava muito em pequena, com três anos: “Mamã eu quero, mamã eu quero, mamã eu quero mamar, dá-me a chupeta, dá-me a chupeta, dá-me a chupeta para o bebé não chorar.”
Trabalhou no Rádio Clube de Angola. Como foi essa estreia?
A estreia deixou-me muito feliz. Quando terminou o programa, comecei a ficar um bocadinho nervosa, com medo, porque tinha entrado nessa emissão à revelia dos meus pais. Não lhes tinha dito que andava a ensaiar e que ia cantar na emissão do Rádio Clube. Quando cheguei a casa, contaram-me que a vizinha do rés-do-chão chamou pela minha mãe e perguntou: “Então, a sua filha está a cantar na rádio? A senhora não está a ouvir?” A minha mãe perguntou: “Na rádio? Não, a minha filha não está nada a cantar na rádio! Está ali a estudar na casa de uma amiga, a Magda Borges.” E a senhora: “Está? Então ligue para o Rádio Clube e vai ouvir onde ela está!” A minha mãe e o meu pai só tomaram conhecimento dessa atuação nessa altura. Quando cheguei a casa, fiquei muito feliz. O meu pai abraçou-me e a minha mãe deu-me os parabéns. As pessoas na rua, os meus colegas do liceu, toda a gente me felicitou. Aí vi que o poder da rádio, das ondas hertzianas, tinha dado a conhecer, em Luanda, uma pequena cantora chamada Sara Chaves.
Na época, as músicas que ouvíamos na rádio eram todas gravadas em estúdio. Como era ser cantora de rádio?
Era cantar exclusivamente para a rádio. Cantar exclusivamente para os ouvintes que, em casa, escutavam a rádio. Tinha uma preparação prévia na rádio, com ensaios, com um dirigente. Na Emissora Oficial de Angola havia um centro/escola de preparação de artistas da rádio que foi, durante muito tempo, dirigido pelo célebre cantor português Luís Piçarra. Os jovens eram ensaiados, preparados e chamavam-se, depois, artistas da rádio. Eram recrutados para espetáculos da própria emissora, os chamados “Serões para Trabalhadores”. Enquanto atuassem na rádio e estivessem nesse centro de preparação eram artistas de rádio.
Percurso pelo mundo da música
Já em adulta começou a cantar composições angolanas. A partir de então, a caminhada pelos sons da sua terra nunca mais parou. Foi o princípio de uma viragem na sua carreira?
É verdade, houve realmente uma viragem no meu reportório. Até aí, era muito influenciada pela música portuguesa. Cantava as músicas que ouvia na rádio de Portugal, na Emissora Nacional portuguesa. Cantava também muita música brasileira, música espanhola… Em determinada altura, ouvi Eleutério Sanches, um poeta, pintor, um rapaz com muito talento, e fiquei apaixonada por uma canção chamada “Canção do Subúrbio”. Uma canção sempre atual que nos mostrava um postal evocativo dos subúrbios de Luanda. Uma canção lindíssima, maravilhosa. Comecei a pensar: afinal, tenho cantado toda a minha carreira, desde miúda, música que não é da minha terra!
A partir da “Canção do Subúrbio”, comecei a descobrir outros compositores angolanos e dediquei-me a essa música. Acho que nunca mais cantei música portuguesa.
Mais tarde, assumiu a responsabilidade do sector musical da Emissora Oficial de Angola. O que tinha a seu cargo?
Era um contato diário com música. Havia música clássica que era transmitida numa determinada onda e havia música ligeira. O setor tinha cinco assistentes musicais. Eu, pouco mais ou menos, tinha que dar instruções para elaborarem as rubricas dos programas com uma certa lógica. O setor musical tinha a seu cargo todos os espetáculos que a emissora organizava e todos os programas musicais. Para além disso, também dirigia e organizava os serões para trabalhadores, espetáculos de variedades de música ligeira. Tinha sempre a preocupação de escolher os melhores artistas.
O reconhecimento efetivo do talento de Sara Chaves chegou quando ganhou o Prémio de Interpretação no Festival da Canção de Luanda, com a famosa “Maria Provocação”. As recordações são ainda intensas?
Ganhei o prémio de interpretação, cantando uma música que foi desclassificada. Não tem lógica nenhuma, mas vou explicar o que aconteceu. A canção foi incluída nas músicas concorrentes a esse festival. Chegou a minha vez, fui anunciada e cantei a canção. O público levantou-se a aplaudir. Aquela canção era uma “pedrinha no charco”, falava da prostituição. Era um tema tabu. Todos sabiam que existia, mas ninguém se referia a isso. A letra é de Ana Maria de Mascarenhas, compositora angolana que ainda hoje compõe, e de Adelino Tavares da Silva, jornalista português, que escreveu músicas fantásticas de “sabor angolano”. Essa música não foi incluída. Quando foram conhecidos os resultados do festival, ficámos a saber que “Maria Provocação” fora desclassificada. Foi uma surpresa muito grande, porque a música agradou ao público. Pensámos que o tema havia tido influência nessa desclassificação, porque ofendia a moral burguesa desse tempo. Disseram-nos também que foi desclassificada porque o conjunto N’gola Ritmos, os instrumentos do conjunto, não estavam integrados na orquestra. Foi um caso muito discutido. Apesar de tudo, “Maria Provocação” foi a música que ficou. Ainda hoje se canta e se recorda em Angola. Já estive em Angola duas vezes depois da independência e fui obrigada a ir ao palco cantar a “Maria Provocação”.
40.º aniversário da “Revolução dos Cravos”
Este ano faz 40 anos que a “Revolução dos Cravos” se deu, a 25 de Abril de 1974. Quais as mudanças mais evidentes no mundo da rádio?
A rádio foi crucial para o êxito do 25 de Abril. As principais mudanças relacionam-se sobretudo com liberdade de expressão e nacionalização das rádios em Portugal.
Em Outubro de 1975, veio para Portugal. Porquê?
Vim para Portugal porque, depois de 1975, o clima de insegurança era enorme. No bairro onde eu morava, um bairro suburbano, viam-se caixotes e carros a arder. Um dia invadiram-me a casa, à procura de armas. Não podíamos lá estar. Com dois filhos, ir trabalhar e deixar os miúdos em casa era muito perigoso e preocupante. Resolvemos vir, mas sempre com a ideia de voltar. Para trás, ficaram muitos anos de vida, numa terra que me é muito querida. Deixei a vida artística. Deixei os vestidos à Belita Palma, uma grande amiga, vocalista da banda N’gola Ritmos. Deixei tudo o que restou de uma vida feita de trabalho, de muito amor à terra…
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular de Técnicas Redactoriais II da licenciatura em Ciências da Comunicação.