Aos 97 anos, Ruy de Carvalho recusa-se a deixar os palcos. Depois do sucesso da peça Ruy, A História Devida, o ator está de regresso com A Ratoeira, no Centro Cultural Malaposta, em Odivelas. Um homem sem máscaras, tanto no palco como na vida.
Apanhamos o comboio da linha de Cascais até ao concelho de Oeiras, onde vive o ator. O coração acelera assim que tocamos à campainha, afinal trata-se do mais conceituado ator português. O seu nome é sinónimo de trabalho, respeito, mas igualmente de simpatia. Recebe-nos de braços abertos, com o sorriso fácil e carinho que o caracterizam. Para além das muitas fotografias, saltam à vista os prémios, as homenagens, as condecorações, fruto de uma vasta carreira de sucesso no teatro, no cinema e na televisão. O único pedido é que deixemos a formalidade à porta e responde a todas as perguntas com a sabedoria própria de uma vida tão longa.
Nasceu a 1 de Março de 1927, em Lisboa…
Sim, em Lisboa. Na Rua da Costa do Castelo, por baixo do Castelo de São Jorge.
Qual é a primeira memória que tem da infância?
Quando cheguei a África, em 1929, fiz dois anos em Luanda. Nunca mais me esqueci disso! Vivi lá até quase aos cinco anos. Como o meu pai era oficial do exército, foi para lá trabalhar e nós, a família, fomos com ele para lá viver.
Como chegou aos palcos pela primeira vez? Sempre quis ser ator?
A primeira vez que pisei um palco foi na Covilhã, onde vivi muito tempo. Tinha oito anos. Estava lá devido à profissão do meu pai que, depois de Luanda, foi também para lá comandar. Participei na peça A Carochinha. Ainda há tempos estive com a senhora que interpretou a Carochinha. Foi a minha mãe, que era pianista, quem nos ensaiou.
Foi aí que despertou o “bichinho” pela representação?
Tinha dois irmãos, ambos atores… O meu irmão João e a minha irmã Maria Cristina. Sou filho de um casal de viúvos. O meu pai tinha 46 anos quando nasci e a minha mãe 43. Acabei por ser ator um bocadinho por influência dos meus irmãos.
O seu filho e neto seguiram os seus passos…
Seguiram, sim. Acharam uma profissão tão digna. E é difícil, não é fácil!
O que lhes disse, se é que lhes disse alguma coisa, quando descobriu que era isso que queriam?
Trabalhem como eu trabalho e cumpram como eu cumpro. E eles fazem exatamente isso, seguem a minha disciplina. Tanto o meu filho, João, como o meu neto, Henrique. Ambos belíssimos atores. E tenho trabalho até morrer!
“A formação é fundamental em qualquer coisa que uma pessoa escolha como profissão”
Frequentou o Conservatório Nacional, no curso de Teatro/Formação de Atores… a formação é fundamental?
Fiz e terminei com 18,75 valores. Portanto, com certeza que sim… a formação é fundamental em qualquer coisa que uma pessoa escolha como profissão. Seja um advogado, um engenheiro, um médico, um pintor, um músico… até um ator. Mas também tem que ter jeito para esta profissão. Para a profissão de ator é preciso mesmo ter jeito. Mas também se pode servir sem se ter jeito, por amor. Escrever, encenar, pintar, fazer cenários, guarda-roupa, música. No teatro cabe tudo, até as novas técnicas.
Quando falamos na representação, dá sempre o exemplo do teatro…
Gosto mais de ser ator de teatro. São técnicas diferentes. A técnica de teatro é completamente diferente das outras. As outras têm mais a ver com o realizador e acredito que o teatro tenha mais a ver connosco. É diferente, há um clique.
Disse numa entrevista: “Quando precisam de nós [artistas] usam-nos, quando não precisam de nós mandam-nos embora.” Acredita que a cultura não é apoiada como deveria?
Isso é verdade. Tem acontecido algumas vezes. A cultura tem que ser apoiada. A cultura é a base de um país. Um país com cultura é um país vivo. É um país que está a viver a vida do mundo. E é mais fácil viver com cultura do que sem cultura. Com cultura ninguém nos engana, sem cultura enganam-nos , com certeza. Encarneiramo-nos, andamos à vontade dos outros.
Não posso deixar de reparar nos seus prémios…
Um dia vão para um museu… já tenho um teatro com o meu nome. Mas não cabem lá, são tantos que não cabem lá.
Ganhou inúmeros: o Prémio Carreira, em 1998; Personalidade do Ano em Teatro, em 1999; Melhor Ator de Ficção e Comédia, em 2002; Prémio Sophia, em 2017… ainda em 2017, o Prémio da Lusofonia. E mais recentemente, um Globo de Ouro. Há algum prémio que ainda gostasse de receber?
Já ganhei um Globo de Ouro. Mas não… trabalho para servir e trabalho para dar o meu trabalho aos meus semelhantes. Não penso nisso.
É indiscutível a sua longa carreira, repleta de sucessos… e fracassos, teve algum? Há algum projeto que se arrependa de ter feito?
Uma peça infantil há muitos anos, que não estava ‘bem servida’. E as crianças têm que ser ‘bem servidas’, pois merecem tudo o que nós lhes temos para dar.
Ficou com um brilho no olhar quando falava nas crianças…
Gosto muito de crianças. Eu sou ainda o avô João e foi já há 20 anos que fiz o Inspetor Max. Às vezes ainda me perguntam se os cães estão vivos.
Tem uma longa vida de sucessos, mas teve também um longo casamento ao lado da sua esposa Ruth…
62 anos! Nove de namoro e 53 de casados. E ela partiu há 16 anos, já… a minha querida Ruth.
Se nos pudesse deixar um conselho…
Sirvam com amor a profissão que escolherem. E não desistam nunca de trabalhar no melhor sentido e de ajudar os vossos semelhantes. A maior honestidade, a maior cultura da verdade. Temos que ser assim. Temos que cultivar a verdade, pois a verdade é uma coisa que se cultiva.
Disse-me há pouco que tinha trabalho até morrer. A morte é algo em que pensa?
Não, a morte é certa… não vale a pena pensar nela. Vale a pena pensar na vida. Temos que viver a vida que nos foi dada, seja ela curta ou comprida. Vivam essa vida. Vivam, vivam, vivam.