Aos 27 anos, conta com uma carreira promissora na indústria gastronómica que o levou a sair do Barreiro rumo a Barcelona. Chama-se Rúben Alves, enfrentou muitos desafios, entre eles uma lesão que o obrigou a abdicar de ser ginasta, mas nenhum como a Covid-19. Durante o confinamento na Catalunha, costurou máscaras que ofereceu a vizinhos e a sem-abrigo.
Quando é que percebeu que a pandemia chegara?
Quando começou a ser notícia constante. No final de fevereiro, 15 dias antes de o Governo declarar o Estado de Emergência, tivemos uma reunião para nos prepararmos. O pior cenário seria fechar as portas do restaurante. Foi aqui que comecei a ficar um pouco assustado. Itália já estava a colapsar. Sentimos que os clientes foram deixando de aparecer gradualmente, mas trabalhámos até ao último dia.
Como foi assistir ao silêncio que se foi instalando nas ruas?
Tal como eu, as pessoas começaram a ficar mais conscientes de que tínhamos de nos preparar. Ninguém sabia bem era como. Há sempre quem ceda ao pânico. Senti que foi uma bomba. Não estávamos devidamente informados. Tive turistas a pedirem-me ajuda, cheios de medo de não conseguirem voltar para casa. Eu moro ao pé da praia. Uma vez tentei lá ir, mas fui logo parado pela polícia. Ouviam-se sirenes dia e noite. Ir às compras era uma missão e cheguei a não conseguir comprar nada. A situação só acalmou mais para o final de março, o tal silêncio. Há um hotel aqui perto e lembro-me quando ligaram um coração gigante. Eu estava à janela. Percebi que tinham fechado e que aquela seria a mensagem. É complicado. (suspira)
No que consiste a quarentena obrigatória em Espanha?
Era tudo muito limitado. As pessoas tinham de estar em casa. Não era como aí, que podias passear o cão à hora que querias. Eram 15 minutos e apenas duas vezes por dia, salvo erro. Sair pelo tempo estritamente necessário. Era relativamente fácil de controlar porque a polícia andava em todo o lado. O Governo fez a ERT [semelhante ao layoff] a todos os trabalhadores ativos. Parte consistia em cobrir 70% dos salários tirando esse fardo de cima das empresas. A 11 de maio, entrámos na primeira de quatro fases até podermos voltar à nossa vida habitual, se é que isso está em questão. Pelo menos este ano, mas é a minha opinião. Ainda não existe vacina e acho prudente que seja um processo gradual, até para aliviar os sistemas de saúde de forma significativa.
Conhece alguém que testou positivo para a Covid-19?
Quatro, todas em Espanha. Duas trabalhavam comigo. O meu superior nem fez o teste. Foi tratado em casa, e é o único de quem tenho notícias. Conseguiu recuperar.
Como surgiu a oportunidade de vir para Barcelona?
A minha turma ganhou uma viagem para fazer parte de um projeto em 2013. Aprendi com os melhores. Estagiei no Murmuri, que vai fechar por causa disto. Foi a minha casa. Vou chorar… (emociona-se) Alguns colegas diziam que as cozinhas eram um inferno e choravam constantemente com saudades de casa. Eu não. Aquilo era a minha onda. Voltei para Portugal e acabei por ter experiências aí. Adoro o meu país, mas sinto que não se dá valor ao trabalho português e rapidamente te vês numa situação estagnada. Em 2016, vim cá de férias. A maioria dos que conhecia já estavam como chef e um deles disse-me: “bora, vem para cá que eu arranjo-te trabalho”. Percebi que provavelmente seria uma oportunidade única. Vim com a ideia de adquirir o máximo de conhecimento possível para que pudesse evoluir.
Quais os maiores desafios que encontrou na cultura?
A língua, sem dúvida. Quando cheguei, estavam num rescaldo por causa da independência, ainda mais inflexíveis, e isso dificultou-me a vida. Porque o povo é mesmo assim. São muito fechados na cultura deles e ressentem-se com facilidade. Naquela altura, lembro-me que o ambiente ainda estava bastante tenso, muito também pelo mediatismo à volta da questão dos presos políticos. Mas consegui integrar-me. Comecei por aprender a estudar a forma como agem e pensam, toda uma dança para que sentissem que fazia “parte do grupo”. (risos) Eu era muito miúdo e vim completamente à aventura. Só quando cá cheguei é que comecei a tratar de documentos e a pensar num sítio para ficar. Tive uma história complicada com baratas, por exemplo.
9 Reinas Gourmet é o projeto mais recente. O que se deve esperar do conceito?
É diferente do que já tinha feito, mas vim cheio de força para enfrentar o desafio. A chefia não estava a resultar e deram-me a oportunidade de ser eu a tomar decisões. Sabe bem quando o teu esforço é reconhecido. Somos reconhecidos pela exclusividade das nossas carnes. O conceito e o modelo são argentinos e dispomos de menus de degustação. Também temos tártaros, peixes à brasa, ao sal, entre outros. É um projeto com mais requinte e mais focado no cliente.
Há algum prato que não goste particularmente de fazer?
Cada receita tem a sua essência. Não há nada que não goste de fazer, mas os pratos mais prazerosos de executar são os que são levados ao detalhe.
A pandemia alterou a sua dinâmica familiar?
Dei por mim numa preocupação constante. Ligava à minha mãe duas a três vezes por semana, e agora falo com ela várias vezes por dia.
De que forma lida com a impossibilidade de os poder visitar brevemente?
De forma ansiosa, óbvio. Inclusive, tinha férias marcadas. Mas tenho de aguentar. Vou tendo notícias e sei que todos estão bem e para já é isso que me conforta.
A saudade levou-o a considerar o retorno a Portugal?
Muitas vezes. As circunstâncias do que estamos a viver colocam-nos à prova, pensamos sobre o que realmente é importante na nossa vida. Ir de mota ou de carro até à fronteira, arranjar voos manhosos com escalas de dois dias, pensei em mil e uma coisas. Até em infiltrar-me num camião de mercadorias.
Quais são as suas motivações para contornar esta questão?
Os meus projetos que estão por arrancar, uma equipa que precisa de mim. E, claro, saber que tenho sempre possibilidade de regressar a casa.
Sentiu necessidade de se reinventar?
Sim. Comecei a dedicar-me mais à cozinha, a aproveitar o tempo para estudar e aprofundar técnicas. Também tenho muitos hobbies, um deles é a costura. Fiz 40 t-shirts que me renovaram o guarda roupa. (risos) Fiz máscaras e andei a distribuí-las por vizinhos e sem-abrigo. Fiz compras a quem precisasse. Sinto que fiz parte da solução de forma consciente. Estou orgulhoso disso. Pintei quadros e, agora, já posso fazer desporto ao ar livre.
O turismo vai ser claramente afetado. Fale-me dos seus objetivos para o grupo sobreviver a esta situação.
Investir mais em projetos guardados na gaveta. O negócio vai desvalorizar mas, com os recursos que felizmente temos, podemos apostar em novas soluções. O takeaway vai fazer parte do processo de reabertura. Estamos a fazer estudos de mercado para que nos possamos diferenciar. Apostar mais no cliente local. Esse é o futuro. E, claro, o espírito de equipa nunca teve tanta força. A administração chegou a colocar a possibilidade de reduzir salários caso não se despedisse ninguém e todos concordámos. Precisamos uns dos outros.
Quais são as suas expectativas para um futuro pós Covid-19?
Este é o momento de nos reinventarmos. Um aspeto que considero positivo nisto tudo é que vamos recomeçar todos do zero e ao mesmo tempo. A tecnologia provou, mais uma vez, que é um fenómeno que está longe de atingir limites. Temos de nos adaptar à nova realidade com empenho, união e paixão. É uma forma de pensar muito “à português”. (risos) Parece que já não existem ideias novas, mas podemos recriar de forma inovadora.
O que retira desta experiência?
Consegui testar os meus limites e ser ainda mais objetivo e direto naquilo que pretendo. Estar sozinho e isolado fez-me pensar no número de pessoas que estariam na mesma situação, mas que não tinham a sorte de conseguir ver as coisas com clareza, de ter uma rotina relativamente normal. Encontrei saídas no isolamento, se isso faz sequer sentido. Todas as respostas estão dentro de mim. Consegui ajudar muita gente entre as minhas quatro paredes e quero continuar a fazê-lo.
Perfil do entrevistado
O chef que queria ser ginasta
Rúben Alves nasceu na cidade do Barreiro, a 5 de novembro de 1992. Diz que sempre teve objetivos muito marcados. Aos 5 anos, decidiu que queria ser ginasta. “Eu vivia para saltar.” Uma queda grave num ensaio, a dois dias do campeonato internacional, afastou-o desse mundo para sempre. Tinha 12 anos. Nem a medalha que acabou por receber, nem o carinho dos colegas fizeram com que a dor passasse. A revolta foi crescendo naquela cama de hospital ao longo de seis meses.
Com os seus maiores sonhos destruídos, passou por uma adolescência muito rebelde. Começou a fumar para esquecer. “No entanto, estava sempre a rir, não me lembro de ninguém que relatasse o contrário. A rebeldia pode ser atraente. Quem aparenta não ter medo de nada, quem aceita todos os desafios.” A alegria exterior era contagiante. Sempre teve muitos amigos e namoradas. Sempre gostou de ajudar os outros. Mas a mágoa estava lá.
Passou de ginasta condecorado a miúdo que chorava sozinho. Levava a vida ao limite para provar aos outros que não se importava com o que lhe tinha acontecido à perna. Mas a paixão pela vida e a necessidade de ter um objetivo também nunca o abandonaram. Começou a sentir falta da adrenalina que admite constituir a vida perfeita.
Aprendeu a tatuar, a costurar, a pintar, a cortar o cabelo. É muito perfeccionista, o que escolhe fazer tem de ser bem feito. Gosta de ser um exemplo para os outros. A ginástica esteve sempre lá. Aos 18 anos, trocou-a pela cozinha. E hoje tem outro sonho. No lugar do trampolim, hoje estão as facas. Saiu do país e está a construir uma carreira. Continua a querer ser melhor, continua a querer ajudar os outros. E está, de facto, sempre a rir.