As pessoas em situação de sem-abrigo têm, em Portugal, acesso a um direito humano básico: uma habitação. É UMA CASA, projeto da Associação Crescer em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, aposta na inclusão de grupos excluídos e vulneráveis. Aqui se contam duas histórias de luta pela dignidade: as de Júnior e Jacinto.
Numa manhã fria de inverno, uma pequena porta está aberta num beco sem saída em Alcântara. Algumas pessoas chegam a pé para procurar ajuda e algum alimento. As temperaturas registadas pelo termómetro à entrada revelam estados de hipotermia depois de uma noite na rua. Eles vêm e vão, e sempre que passam por alguém há um cumprimento e um sorriso.
O que há depois dessa porta é revelador de todo o empenho e dedicação das pessoas que fazem parte do projeto É UMA CASA. Não há abraços em tempos de pandemia, mas os olhos sorriem para todos os que chegam. Rapidamente se começa a encher um saco de bens essenciais.
Para todos, há uma pergunta: O que faz falta? Precisas de ir ao médico? Precisas de ajuda com alguma coisa? Esta é a preocupação que move os voluntários e as equipas de psicólogos que fazem o acompanhamento destas vidas que lhes são dadas a conhecer diariamente.
A Crescer é uma IPSS fundada em 2001 com o propósito de intervenção comunitária e acompanhamento de grupos excluídos e vulneráveis. As áreas de ação são diversas, mas a preocupação é única: dar alegria aos outros porque esse é o caminho certo para a felicidade.
Esta forma de encarar a missão é transmitida por Diana Gaspar, psicóloga responsável pela equipa de intervenção das pessoas em situação de sem-abrigo. Partilha ainda a sua preocupação com o respeito por todos os que dependem das suas diretrizes.
A conversa é curta porque é necessário fazer mais um saco para um senhor que acaba de entrar pela porta, de bicicleta pela mão.
Júnior: O coração gigante da casa
Faz uma aproximação calorosa e cumprimenta toda a gente. De seu nome Júnior, alto e bem-parecido, 50 anos de histórias para contar. Depressa a sala fica cheia de boa disposição. Estamos perante um homem que, depois de desacreditar a vida, integra hoje a equipa da Crescer.
“A vida da rua é muito agressiva. Não ter onde tomar banho ou uma refeição quente… passamos tanto frio… É muito desgastante e leva a que muitos dos que vivem em situação de sem-abrigo percam a vontade de agarrar uma nova vida.”
Os olhos de Júnior brilham. Ele, que hoje é a pessoa responsável por visitar diariamente os moradores de algumas casas do projeto, “começou a andar na rua aos 23 anos”, depois de uma separação conturbada. Nunca imaginou que tal fosse possível. As questões emocionais e a omissão por vergonha não permitiram a partilha com a família. Acabou por desorganizar a própria vida e foi viver para a rua. Nunca imaginou que tal fosse possível.
Com a mesma certeza que afirma terem sido anos muito duros, garante que hoje está de corpo e alma no trabalho com a Crescer. “Quando as equipas de rua vinham ter comigo queria estar ao lado deles para os ajudar com os meus colegas.”Foi esta vontade que resgatou o Júnior. A vontade de ajudar. O dia mágico em que integrou a equipa depois de aceitar o desafio proposto de reorganizar a sua vida, traçar um caminho e ficar a estagiar na Crescer. “Não me vejo a fazer outra coisa. Faço a minha parte e o principal problema continua a ser o tempo de resposta por parte das entidades. Há pessoas a viver na rua há 30 anos… São pessoas!”
Incrível o olhar de preocupação que lança. Como um murro no estômago. Sabemos que são pessoas. Antes de pegar de novo na sua bicicleta e seguir caminho para a primeira visita, faz questão de dizer de novo: “São todas pessoas. Não são sem-abrigo! São pessoas em situação de sem-abrigo! Não são todos dependentes de drogas, nem de álcool! São pessoas que estão nessa situação!”
Diz estas frases como se de uma missiva se tratasse: “Digam a toda a gente que assim é que deve ser. Todos são pessoas!”
Diana Gaspar revela um orgulho enorme no trabalho de Júnior e afirma que ele é muito importante para a aproximação com os “inquilinos”, pois consegue compreendê-los como ninguém.
O projeto tem como finalidade dar uma casa e uma oportunidade de vida aos sem-abrigo que o integram. “Já chegámos às 120 casas e esta metodologia é eficaz. Têm o seu espaço e podem organizá-lo e decorá-lo. O inquilino é a parte mais importante. Nós tratamos de todo o processo desde a procura da casa até aos contratos de luz, água, até estar tudo pronto. É dado um valor mínimo mensal de sustento, mas, apesar de os acompanharmos e estarmos atentos, não somos polícias. Eles estão a tomar as rédeas de uma nova vida.”
A psicóloga espera um inquilino que aceitou dar um testemunho. Feito dificil, porque na maioria dos casos não é de ânimo leve que o fazem. O estigma fica gravado e nas opiniões recolhidas sentem todos que, aos olhos dos outros, permanecem sempre como “os sem-abrigo”.
Jacinto: O amante de livros
Um senhor de olhos verdes, bem-parecido, bem vestido, de cachecol e chapéu preto a completar uma indumentária bem cuidada. O cheiro da colónia sente-se no espaço da receção apesar das máscaras colocadas. Temperatura normal. Pode ser um membro da associação, mas não. É apresentado como Jacinto, inquilino na Mouraria.
A sua educação é distinta na forma como cumprimenta. Começa logo por dizer que não aceita fotografias, nem recolha de vídeo. Que aceitou conversar sobre “as vicissitudes da vida apesar de não confiar muito em ninguém”.
E ei-lo. Ele mesmo. Jacinto, 66 anos, nascido na ilha de S. Miguel, Açores. Reservado, com uma postura corporal rígida, mas sempre educado. A mensagem é nitidamente de alguém que está disposto a falar do que quiser e como entender.
“Comprei o meu primeiro livro aos 11 anos sobre o JFK. Custou-me, na altura, um escudo e oitenta centavos. Considero-me uma pessoa curiosa e peculiar. Conheço Israel, França, Itália, Noruega, Islândia, Dinamarca… praticamente todo o mundo!” É o início de uma descoberta incrível. Este homem viveu na rua durante 20 anos.
Estudou Contabilidade e teve o seu próprio negócio não sabendo o que era falta de dinheiro, quando, em janeiro de 1999, depois de um divórcio, resolveu ir para o Brasil para casar com uma senhora do nordeste brasileiro. Acabou por não correr como planeado e, quando o dinheiro acabou, Jacinto pediu ajuda ao consulado para que lhe pagassem a viagem de regresso a Portugal.
Chegou em dezembro do mesmo ano e ficou a viver no aeroporto, na rua. Por ali esteve cinco meses, a arrumar carrinhos. Apareceram depois trabalhos temporários na Europa, dos quais regressava de bolsos vazios.
Fumava as beatas dos cinzeiros do centro comercial e comia os restos que as pessoas deixavam nos tabuleiros. Orgulha-se de não ter usado mochila e de ter sempre uma malinha com as suas ‘coisas’ de higiene. “Eu sou diferente dos outros nessa parte de dormir na rua. Quem olhava para mim, não dizia que eu era sem-abrigo.”
Também viveu na Gare do Oriente. Confessa que, no inverno, passava a noite no autocarro que fazia o percurso até ao Cais do Sodré. Demorava uma hora para cada lado. Era a maneira de conseguir fugir ao frio que só tolerava quando estava “anestesiado”.
“Todos nós temos o nosso próprio diabo! Eu tenho uma doença terrível! Sou alcoólico.” Repetiu a palavra “terrível” três vezes, com a intenção de reforçar a gravidade desta “doença” que ainda hoje o acompanha e perante a qual se sente impotente muitas vezes.
A questão cultural foi determinante para ele. Com apenas 11 anos era normal os rapazes beberem em casa um cálice de vinho, licor ou aguardente. O pai também foi alcoólico e, apesar desta ligação do pai e de todos os homens da familia ao alcoolismo, esboça um sorriso para nos dizer que era muito, muito chegado à mãe. E, de repente, há um homem pronto a responder a tudo.
Confessa que uma das frases que nunca esquece foi a da Dª Maria da Conceição, em 16 de outubro de 2004, na sua primeira ida aos AA (Alcoólicos Anónimos): “Seja muito benvindo!” Diz: “Isso marcou-me. Senti-me gente!”
Passava os dias com a Dª Clotilde na biblioteca ou na Fnac, onde as “meninas” já o conheciam. Passou dias e dias a ler filosofia, psicologia, ciência, aventuras ficcionadas e tudo o que lhe despertasse interesse. “Adoro a minha profissão, mas, se fosse agora, adorava fazer investigação.”
É interessante perceber que registou mentalmente o nome de todas as pessoas, médicas, assistentes sociais, voluntários das equipas de intervenção de rua e companheiros de “residência” ao longo desses 20 anos.
Tem três filhos. Um deles já faleceu. Diz com muito orgulho que um é economista, o outro engenheiro agrónomo e o que morreu tinha a sua profissão, contabilista. Nunca partilhou com eles a sua vida e passou oito anos sem ter qualquer contato, nem mesmo por telefone.
Fala diariamente com a ex-mulher e pondera partilhar com a família tudo o que aconteceu ao longo dos anos de afastamento. Não sabe muito bem quando chegará esse dia, mas até lá dedica-se ao cinema, música, às suas leituras e continua a seguir várias séries televisivas.
É notável a disponibilidade e a partilha. Mas, num instante, desarma e revela uma vontade escondida. O seu desejo de suicídio. Ele que sente alegria nas colaborações com a Crescer nos dias de angariação de fundos, que gosta de apreciar várias formas de arte, que tem uma casa da qual fala com orgulho depois de viver 20 anos na rua. “Penso muitas vezes no suicídio. A humanidade faz muita falta. Sou uma pessoa com casa, mas sem nada.”
Este desfecho demonstra que cada história é diferente da outra, mas cada pessoa tem direito a ser ajudada, sempre com respeito por todos os seus direitos. É este o desafio da Crescer e de outras instituições. Nem tudo está nas suas mãos, mas será sempre de louvar o empenho em dar um caminho de esperança a muitas vidas que permanecem em pausa.