Na equipa da Rasta Care, em Alfornelos, o dia a dia é repleto de boas energias, paz, amor e união. Venha conhecer um espaço onde as rastas e os seus cuidados são tema dominante de conversa.
Ao abrir a porta da loja, o primeiro sentido a ser despertado é a audição. No ar, há uma harmoniosa música de reggae cantada por uma das vozes mais icónicas desse estilo musical, o costa-marfinense Alpha Blondy, interpretando “Cocody Rasta”. Dentro do estabelecimento estão já três das quatro pessoas que compõem a equipa de trabalho da Rasta Care: Nádia, Zimbas e Edson.
Nádia tem 25 anos e vive em S. João da Talha, mas nasceu em S. Sebastião da Pedreira, Lisboa. Trabalha há cinco meses na Rasta Care (R&C). Começou por fazer tererés e rapidamente passou para as rastas. Antes de vir trabalhar para a R&C já fazia rastas e chegou a tê-las, mas teve de cortá-las por causa de um emprego. “Ia trabalhar numa loja no Colombo, mas impuseram que tinha de cortar as rastas. Foi o que fiz.” O seu amor pelas rastas começou quando andava na Escola Secundária António Arroios. Enquanto andava na escola, Nádia conta que não gostava de participar nas aulas: “Entrava na sala e sentava-me lá atrás. Não queria que a professora me perguntasse nada”[risos]. Mas frisa que “o que eu fazia não é para fazer!!”
Outro membro desta equipa é Daniel, também conhecido como “Zimbas”. “Quando estava na escola havia mais dois rapazes na turma que se chamavam “Daniel” e para nos distinguir a professora deu-nos alcunhas. A mim chamou-me Zimbas porque eu nasci no Zimbabué.” Ainda sobre a sua terra natal acrescenta: “No Zimbabué, fala-se inglês e shona, que é um idioma de lá. Em casa, falo com os pais em inglês, mas já não sei falar muito bem shona, porque não falo com ninguém em shona em Portugal.” Tem 22 anos e veio para Portugal com oito. Admite que sentiu um grande choque de culturas. Aos 16 anos começou a fazer rastas, depois, passou para as tatuagens. Alguns anos mais tarde, focou-se numa das suas maiores paixões, a robótica, e tirou um curso profissional dentro dessa área. De maneira a formar-se melhor em robótica, está a pensar entrar no ensino superior para complementar o curso que tirou, mas refere: “A prioridade é o ensino superior, se não correr bem volto para as rastas.”
Não menos importante, é Edson. Tem 21 anos e nasceu em Cabo Verde, na ilha de Santiago, e veio com seis anos para Portugal. Há três meses que ingressou na R&C, mas a sua experiência com rastas começou aos 15 anos, quando fez as suas próprias rastas e as dos amigos. Quando lhe foi proposto que viesse trabalhar para a R&C, ficou um pouco reticente. “Quando me convidaram para vir para a R&C não aceitei logo porque nunca tinha trabalhado com outras pessoas. Sempre trabalhei sozinho e fazia o meu próprio horário. Mas vim experimentar para ver como eram as coisas. Depois desse dia, decidi que devia aceitar este trabalho. O ambiente é muito bom e as pessoas que trabalham cá também.”
De modo a passar o tempo até chegar o cliente que está marcado para a manhã, Nádia, Zimbas e Edson falam sobre as rastas de cada um, memórias dos tempos da escola e minorias sexuais que são constantemente marginalizadas e colocadas de parte na sociedade. Debatem sobre estes assuntos enquanto organizam um carrinho que tem o material necessário para a elaboração de rastas: Agulhas (“os soldados da paz” que restabelecem a “ordem” nas rastas dos clientes, na maioria são agulhas de crochet 0,75); elásticos (o início da construção de uma rasta, começa com um elástico. Serve para estabelecer e selecionar as raízes); tesouras (para aparar as rastas no fim da manutenção, cortar pequenos cabelos na ponta ou no corpo da rasta); água oxigenada (para tratar as feridas nos dedos causadas pelas agulhas, consequência da contínua batalha de proporcionar aos clientes a maior resistência possível nas suas rastas).
Chega o mentor da R&C, Pierre. Com 31 anos, Pierre nasceu em Paris, França, é filho de pai angolano e mãe congolesa e veio para Portugal com seis anos. Este projeto surgiu em 2013 e Pierre explica que a R&C começou com ele próprio a fazer rastas na rua. Admite que “sabia que ia passar um pouco mal no início. Mas sabia que ia compensar”. Também admite que a R&C surgiu de uma necessidade pessoal: “As pessoas associam as rastas ao Bob Marley e eu tinha a necessidade de criar algo para mostrar o que é a rasta. E também havia pessoas que tinham rastas e que precisavam de arranjá-las. Foi também por essas pessoas que surgiu a R&C.” Com cinco anos de vida, Pierre afirma que a presença da R&C em festivais (por exemplo: Musa e Boom) é muito positivo para expandir a marca. Relativamente ao assunto de abrir novos postos R&C em outros pontos do país, diz: “Isso só é possível com as pessoas certas.”
“Lisboa é o meu quintal”
São 11:40h, chega o primeiro cliente do dia. Chama-se Nuno, tem 37 anos, e ao entrar na loja mostra uma personalidade jovem, alegre e tranquila, resultado do estilo de vida que leva. Para se ter mente e corpo são, defende que se deve viver a vida ao máximo e não comer muita carne. Antes de começar a manutenção às cerca de 30 rastas, são tiradas fotografias para, depois, poder ver a diferença do pré e pós-manutenção. Enquanto Pierre fica encarregue das fotografias, Nádia, Zimbas e Edson vão colocar-se em posição para começarem a trabalhar. Assim que Nuno se senta na cadeira, três agulhas começam o seu árduo trabalho de dar às raízes de Nuno um aspeto mais saudável. Ao sentar-se, Nuno pede: “Não apertem até à raiz, porque eu não gosto de ver as rastas todas certinhas. Gosto que pareçam o mais natural possível.” Com seis mãos ocupadas com as rastas de Nuno, Pierre vai organizar a agenda para o resto da semana, começando a telefonar aos clientes a confirmar a data e a hora da sua marcação. A manutenção de Nuno decorre ao som de Lucky Dube, um dos grandes nomes do reggae dos anos 70 e 80. Ao ouvir o som característico do músico sul-africano, Nuno confessa que conhece a maior parte dos integrantes dos sound system que estão sediados na capital portuguesa. Apesar de ter bastantes contactos dentro do mundo do reggae, a sua paixão no mundo musical é techno e house. A sua ligação à música é tão grande que um dos seus hobbies é produzir música techno e house, para além de surfar e fazer asa delta. À medida que a manutenção avança a olhos vistos, a música de fundo muda de intérprete. Lucky Dube “dá a vez” a uma dupla incontornável do reggae: Twinkle Brothers. Ao som de um dos muitos êxitos do duo jamaicano, “Jahoviah”, Nuno conta a sua história de vida. Começou a trabalhar aos 16 anos, o que lhe proporcionou imensas experiências profissionais. “Já trabalhei no Oceanário, em restaurantes, na FIL e muitos outros sítios.” Se fez um pouco de tudo em termos profissionais, também visitou muitos países. Nuno enuncia os sítios por onde passou: “Já vivi em Inglaterra, nas Canárias, duas vezes em Ibiza e passei um ano a viajar pela América do Sul.” Foi em terras de Sua Majestade que viveu um dos melhores momentos da sua vida, mais principalmente no Sul de Inglaterra. “Brighton é como Londres, mas com pessoas «alternativas», fora do sistema, com uma mentalidade mais aberta. A maior parte das pessoas que lá moram são quase todas de fora.” Dentro do território nacional, já morou em inúmeras localidades de Norte a Sul. Atualmente, trabalha com o seu Tuc-tuc e aponta como fatores positivos poder fazer o seu próprio horário de trabalho e as “chorudas” gorjetas que os turistas lhe dão. Para qualquer guia turístico, falar vários idiomas é fundamental. Nuno não é exceção: fala inglês, francês e espanhol fluentemente. Para conseguir chegar rapidamente aos turistas dos quatro cantos do mundo, que visitam a capital da Ocidental praia Lusitana, Nuno optou por arrendar casa na Mouraria. Sobre a cidade mais populosa de Portugal, refere “Lisboa é o meu quintal.”
Hora certa. São 14:00h quando a última agulha sai de dentro da última rasta de Nuno. O resultado é bem visível. Quando chegou havia imensos cabelos “novos” que se confundiam com as rastas. Ao fim de duas horas e meia, de constante movimento das três agulhas para trás e para a frente, as rastas de Nuno estão num estado bastante mais regular do que quando chegaram. São tiradas as fotos do “pós-manutenção”, que irão ficar para a posterioridade, foi a primeira vez que Nuno veio à R&C.
Antes de chegar o segundo e último cliente do dia, Pierre, Nádia, Zimbas e Edson aproveitam para almoçar rapidamente e estarem prontos para, às 14:30h, fazerem uma criação de rastas numa cabeça toda. A refeição é feita com a equipa da R&C a escutar atentamente as palavras de Damian Marley que canta “Speak Life”. Passavam 30 minutos das duas da tarde, quando chega o esperado cliente.
“Eu surfo por gosto”
Os seus primeiros passos dentro da loja mostram um jovem de 22 anos, calmo e um pouco tímido, como uma criança no primeiro dia de escola, mas com uma grande vontade de fazer rastas. Repete-se o processo relativo às fotografias. O rapaz senta-se confortavelmente na cadeira, vai ser o trabalho mais longo do dia. Chama-se Hiershi Takada e, apesar do nome remeter para o oriente asiático, fala a língua de Camões, mas com sotaque brasileiro. O próprio explica que isto só é possível porque o pai é brasileiro e a mãe japonesa. Apesar da sua pronúncia ser do país do samba, já perdeu alguma, por morar em Portugal há quatro anos. A decisão de atravessar o Atlântico foi causada por um acontecimento muito negativo. “Eu morava no Brasil com a minha mãe e meus dois irmãos. Mas o irmão do meio morreu e decidimos vir para cá. Lá a energia era ruim.” Uma vez em Lisboa, decidiu estudar e ocupar os tempos livre com um part-time num café, cujos donos são seus amigos. “Eu sou amigo dos donos do café. Isso é bom porque me permite fazer rastas e não ter o problema de lidar com a insatisfação dos patrões. Eles são muito mente aberta, e isso é bom para mim.” À medida que oito mãos, cada uma com uma agulha 0,75, vão transformando o cabelo do Hiershi em rasta, a playlist da tarde muda para a voz do cantor nigeriano de dancehall Wizkid, que vai estar presente no festival Meo Sudoeste. Quando ainda estava no Brasil, queria fazer rastas porque sempre teve uma grande admiração por toda a mística relacionada com este modo de vida. Mas conta que era impossível concretizar esse sonho no seu país natal, devido à situação económico-financeira. “Trabalhava numa loja de surf e recebia 1200 reais de salário. Para fazer rastas no Brasil tinha de pagar 1000 reais. Não dava.” Se Hiershi fala na mística que envolve as rastas, nada melhor do que continuar o processo de criação das mesmas com a voz do rei do reggae a entoar nas colunas da R&C o tema “Natural Mystic”. O facto de ter trabalho numa loja de surf não é obra do acaso. Hiershi admite que esse desporto é uma das suas grandes paixões, para além da natação. Questionado sobre o que pensa do destino mais procurado para o surf em Portugal, Nazaré, Hiershi é muito categórico: “As ondas da Nazaré são demasiado grandes. Dão uma adrenalina para a qual ainda não estou pronto.” E deixa uma garantia: “Eu surfo por gosto.”
São 17:00h, tempo para fazer uma pequena pausa. Enquanto os dedos de Pierre, Nádia, Zimbas e Edson repousam para fazerem o último esforço do dia, Hiershi partilha mais uma das suas paixões, a música. Comenta que gosta especialmente de tocar harmónica. Ao fazer essa revelação, vai direto à sua mochila e tira o seu porta-chaves. Ao reparar melhor no objeto, salta à vista uma harmónica minúscula que Hiershi encontrou em Lisboa: “Fui passear junto ao Campo Pequeno. E olhei para uma loja e tinha lá esta harmónica. Pensei: tenho mesmo de comprá-la! E comprei” [risos]. Num ápice, o solo de harmónica de Hiershi consegue realizar uma das mais hercúleas tarefas no mundo da música, relegar as melodias de Bob Marley para segundo plano. Foi um momento digno de um concerto, que, de certeza, iria esgotar em pouquíssimo tempo.
Passaram 30 minutos deste o começo do intervalo. São 17:30h. Estes são os últimos metros da derradeira etapa do dia. Uma etapa que teve, por vezes, momentos que pareciam a subida de uma montanha extremamente ingreme, mas ultrapassável devido à força de vontade que cada membro desta equipa tem. São enrolados os últimos cabelos e preparam-se para começar a fechar as pontas das cerca de 50 rastas que Hiershi vai carregar na cabeça. Primeiro, dobram a ponta da rasta, de seguida, introduzem a agulha na rasta de modo a pôr a ponta para dentro do corpo da rasta. Este processo repete-se mais 40 e poucas vezes.
O relógio marca 19:15h quando a última rasta é fechada. Agora o último passo: aplicar o bálsamo nas raízes. A aplicação deste produto é bastante importante, ajuda a manter a raiz saudável e limpa de resíduos. Por volta das 19:30h, Hiershi está despachado. Sai com um grande sorriso nos lábios e agradece, individualmente, a cada membro da R&C o excelente trabalho que fizeram.
Com a última marcação já ultrapassada, é tempo de dar um pequeno jeitinho à loja e deixar tudo arrumado para o dia seguinte, que promete ser mais um dia cansativo, mas compensador. Antes de fechar a porta da loja, Pierre deixa uma garantia: “Quem visite o nosso espaço pode esperar espírito de família, paz, união, esperança e amor. A Rasta Care é o vosso aliado!”