Aos olhos de muita gente, Ricardo Araújo Pereira representa o maior fenómeno humorístico português. Foi o homem do ano em 2009, é autor de vários sketches dos Gato Fedorento e actualmente, faz o programa “Mixórdia de Temáticas” da Rádio Comercial. Ricardo Araújo Pereira tem um registo inesperado e o seu nome é sinónimo de humor em Portugal.
Sei que terminou a licenciatura em Comunicação Social e Cultura, na Universidade Católica. Embora não seja jornalista, escreve regularmente para a imprensa e participa em programas de rádio e de televisão. Os acontecimentos que marcam a actualidade são a principal fonte a que recorre para pensar e fazer humor? A actualidade é uma motivação do Ricardo humorista?
Depende do tipo de trabalho que estiver a fazer. Se for um programa de sátira política, é claro que dou muita atenção à actualidade. Nos textos da Comercial, por exemplo, isso interessa-me menos. Mais depressa escrevo sobre um miúdo que, visto de trás, parece uma velha (risos), uma ocorrência que, infelizmente, não costuma marcar a actualidade.
Conhece os media por dentro, tem noções de como se trabalha a informação e de como pode ser manipulada. Até 1974, viviamos essa manipulação às claras – com a censura. Hoje, a manipulação é muito mais subliminar, oculta. Na sua opinião, como podemos caracterizar a informação no Portugal de hoje? Ou será mais desinformação?
(Hesitação) Creio que actualmente, os principais problemas, são a falta de dinheiro e a concentração dos media nas mesmas mãos. Uma imprensa sem dinheiro é menos livre, porque é menos capaz. Não tem meios para fazer investigação e fica refém de “fontes”, cujas informações não pode ou não consegue (ou, às vezes, não quer) verificar. A concentração dos meios também é prejudicial, como é óbvio, não só porque reduz o pluralismo da informação, como também torna mais fácil silenciar alguém. Os media, em Portugal, são propriedade de três ou quatro pessoas ou empresas. Se uma voz não agrada a uma ou duas pessoas, é metade do mercado que se fecha.
Como finalista do curso de Ciências da Comunicação, preocupo-me com a eventual integração numa redacção, com o trabalho dos jornalistas e com atropelos constantes à ética e deontologia. Vale tudo para se conseguir um lugar? Vale tudo para se conseguir uma notícia?
Parece-me que os problemas dos jornalistas, de hoje, têm sobretudo a ver com a disseminação da informação. O público compra menos jornais, uma vez que pode aceder gratuitamente à informação na internet, por exemplo. Resta aos jornais distinguirem-se, fazendo aquilo que os blogues e os sites não conseguem: a investigação. Como esse tipo de jornalismo custa dinheiro, não se faz. Por isso, a qualidade dos jornalistas deixa de interessar. Na recente “reestruturação” do grupo Controlinveste, por exemplo, foram despedidos jornalistas como João Paulo Baltazar ou Eurico de Barros, apenas porque, sendo mais antigos, ganhavam mais. Não interessa se eram os melhores nas suas áreas.~
Todos temos heróis, ídolos, referências determinantes na nossa formação e na construção do nosso “eu”. Profissionalmente falando, quem são os seus? E no plano mais íntimo, pessoal?
Na minha secretária não há, mas devia haver, bustos de Woody Allen, de Groucho Marx e dos Monty Python. Depois, outra fila de bustos de Rabelais, Mark Twain, Dickens, Lawrence Sterne, Cervantes, Machado de Assis e Camilo Castelo Branco. A seguir, uma fila de bustos de senhoras, porque o busto das senhoras sempre foi uma grande inspiração para mim.
“O humor é mais requisitado em momentos de crise”
Costuma dizer-se que no amor e na guerra vale tudo. E no humor? Há limites para fazer rir?
Não há razão nenhuma para que os limites do humor sejam diferentes dos da liberdade de expressão. Recentemente, a propósito do caso Charlie Hebdo, perguntou-se se era possível fazer humor com a religião. O problema é que cada pessoa tem os seus temas sagrados. Para uns é o seu Deus, mas para outros, o partido, o clube, a família, o artista preferido, ou o seu hobby. Quando começamos a traçar limites, percebemos que muito rapidamente todos os temas serão interditos.
Os actores dizem, muitas vezes, que a melhor recompensa são os aplausos do público. E para um humorista? Mais do que os aplausos, as gargalhadas?
Sim. A comédia tem uma componente de eficácia, o que a distingue, por exemplo, da tragédia. Não se coloca em causa o valor de uma tragédia, se não fizer ninguém chorar. Mas, se ninguém rir de uma comédia, em princípio, alguma coisa está mal. Talvez se perceba melhor o valor das gargalhadas se pensarmos nos espectáculos de Vaudeville, o Straight Man (a personagem das duplas de comediantes que faz o papel sério, para que o carácter ridículo do companheiro sobressaia) que recebia 60 por cento do pagamento, porque as gargalhadas eram todas provocadas pelo parceiro. A gargalhada é tão valiosa que o Straight Man era indemnizado por não receber nenhuma.
Os Gato Fedorento surgiram em Abril de 2003, num país com um povo deprimido, pessimista, complexado. Como diz Umberto Eco, Portugal é um País onde se pratica diariamente a saudade nos miradouros sobre os rios… Serão estas características do povo português que explicam o sucesso dos Gato? Os Gato foram uma espécie de antídoto?
Costuma dizer-se que o humor é mais requisitado em momentos de crise. A vantagem de fazer humor em Portugal é porque o país está sempre em crise (risos). De qualquer modo, o humor tem muito pouco poder. As coisas más permanecem, mas são mais fáceis de tolerar se formos capazes de rir delas. Jesus Cristo dizia que os pregadores eram o sal da terra, espalhando a palavra, impedem a corrupção. Os humoristas são os orégãos, não impedem a corrupção, mas dão-lhe um saborzinho mais agradável, para que seja mais fácil de engolir (risos).
Depois dos Gato Fedorento, o Ricardo aposta numa “carreira a solo” (permita-me o paralelismo com a música). Não sente falta dos seus camaradas de trabalho? Não se sentia mais completo com os outros “gatos”?
Nós não somos “estrelas”, cuja vida é aparecer constantemente na televisão. Sempre fomos guionistas que, por acidente, passámos a interpretar os próprios textos. Quando nos apetecer, voltaremos a reunir-nos. O que não impede que cada um tenha os seus projectos pessoais.
“Posso falar de uma coisa diferente todos os dias”
Agora a rádio, “Mixórdia de Temáticas”, a rubrica que se ouve todas as manhãs na Comercial. Na sua opinião, a vida é mesmo uma mixórdia de temáticas?
A rubrica recebeu o elegante e duplamente esdrúxulo nome de “Mixórdia de Temáticas” porque isso me permite não estar refém de um formato rígido. Assim, posso falar de uma coisa diferente todos os dias.
A terminar, a pergunta da praxe: E projectos para o futuro? Pode desvendar alguns?
Não tenho. É raro fazer planos. Normalmente, são as televisões, as rádios e os jornais que me convidam para fazer coisas. Por mim, não saía de casa, a rua é uma mixórdia de encontros. (risos)
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular “Técnicas Redactoriais”, no ano letivo 2014-2015, na Universidade Autónoma de Lisboa.